Ingênuo. Super, de Erlend Loe
Por Pedro Fernandes
Erlend Loe. Foto: Adrian Nielsen |
Este romance reúne todo o
despretenciosismo do sujeito trivial. Passado o seu aniversário de vinte e cinco
anos, o narrador toma uma série de decisões quando recebe a proposta do irmão
para que fique responsável por seu apartamento enquanto viaja a negócios aos
Estados Unidos ― informações estas demonstradas como parte das pequenas
descobertas por ele operadas. A personagem tranca o mestrado, desfaz o vínculo
de colaborador com o pequeno jornal da cidade, recolhe seus poucos pertences e
se entrega, pelo tempo de ausência do irmão, ao ócio total. Apesar da narrativa
variar entre volições psicológicas e ações manifestadas no presente contínuo, as
características recorrentes na metaficção, quais sejam o registro pessoal do narrador
sobre uma consciência do que se narra ou as decisões tomadas nas escolhas da
narração, por exemplo, não se demonstram de fora da tessitura do que se conta,
mas no próprio movimento e desenvolvimento das situações. Só assim é possível
inferir que uma das alternativas encontradas pela personagem, além dos
joguinhos que elabora para si como passatempo, é o ato de registrá-los. Mas,
diríamos que Erlend Loe constrói um romance em que a metaficção se manifesta na
prática escritural, isto é, encontramo-nos numa obra que se sabe metaficcional,
sem dizer que o é.
Fixado em listas, um dos
passatempos preferidos da nossa personagem consiste em propor para ela própria
registros dos menos ortodoxos, sempre arregimentados pelo nonsense da sua nova
vida; são enumerações dos objetos que constituem seus bens materiais e de
outros que gostaria de possuir ou mesmo substituir da lista original, de
características sobre objetos que gostaria de obter para conseguir preencher
seu tempo vazio, decidido por uma bolinha vermelha e um conjunto de martelar; de
coisas que costumavam empolgar o narrador quando criança; dos animais que
conheceu propriamente; dos gostos pessoais etc. Esse jogo que em nada tem de organizacional
se desloca por extensões para o seu melhor amigo, para o seu inimigo, para o
irmão e para o pequeno Børre, seu vizinho. Expande-se mesmo para a estrutura da
narrativa, integralmente organizada por textos soltos, mas em diálogo, com
títulos fundamentados num objetivismo também numerativo: “A parede”, “A bola”,
“A árvore”, “O tempo”, “A bicicleta”, “O mestre”, “Vida”, “A floresta”, “Os
animais”, “Quatro”, e assim por diante. Quer dizer, forma e conteúdo se
implicam, recuperando outro traço recorrente nos romances metaficcionais.
A objetividade da lista não se
corresponde apenas com a enumeração organizacional da narrativa; está implicada
ainda na maneira como se articulam os conteúdos frasais. Estes são breves,
diretos e precisos. Em alguns casos, se manifestam como uma justaposição. O
narrador pouco se beneficia de conectivos. Por vezes, estaremos tomados pela
ideia de que o romance de Erlend Loe se apropria dos modelos estruturais
recorrentes nos textos para crianças, explicação esclarecedora que de alguma
maneira justifica sobre a atitude desse narrador-personagem. O intervalo de
vida estabelecido entre as responsabilidades comuns e a existência livre delas se
caracteriza como um retorno do sujeito às suas primeiras faculdades mentais no
intuito de encontrar uma resposta sobre o seu lugar no mundo. Nada difere,
portanto, dos dramas recorrentes a outros sujeitos do romanesco; o que se
define como novidade são as escolhas propostas pelo romancista na sua
composição. Um jovem exilado no interior dos modelos da vida adulta.
O que podemos chamar de regresso a
uma condição do infante se recupera não apenas no conteúdo formal do romance,
mas nas atitudes assumidas pelo narrador, como seu interesse repentino por
objetos desse universo ― os brinquedos ― pelas preocupações inerentes à criança, sua
relação com o tempo e o espaço, o retorno variável à memória da sua própria
infância e a simetria no intercâmbio que desenvolve com Børre, o filho do vizinho
do irmão. É notável que essas duas personagens conseguem estabelecer um
convívio de trocas e interesses comuns, algo que nos laços com a vida adulta
parece sempre recair numa crise. De alguma maneira, esse jovem de vinte e cinco
anos parece assumir uma dupla posição: a do irmão sob as asas do mais velho,
posição sempre assimétrica e só em parte resolvida depois desse estágio de asilamento
social; e do sujeito que se entrega ao fluxo da existência até encontrar-se com
uma alternativa que o permita se reintegrar à dinâmica social.
O envolvimento da nossa personagem com
as dimensões de tempo e espaço, no entanto, se guiadas pelo espírito curioso da
criança, tem uma amplitude nada infantil. Começa e é mediado pelo contato com
um livro encontrado na casa do irmão que trata sobre o assunto sob a perspectiva
dialogada entre saberes da física e suas implicações no cotidiano não
perceptível das pessoas. Lido espaçadamente como se um acompanhamento nesse
pequeno intervalo de re-descobertas, o livro se apresenta como o mestre buscado
pela personagem; amplia seu retiro da vida alienada à medida que restaura seu
espírito para as coisas ínfimas e sua vertiginosa grandiosidade. As
inquietações sobre o tempo formam, assim, o tema principal de Ingênuo. Super.
Elas são visíveis no semblante desse narrador-personagem desde essa
tentativa de conseguir abrir uma pequena fresta no tempo vigente para fazer
cumprir uma existência trivial e paradoxalmente alheia ao trivial, visto que as
perquirições desse narrador-personagem repercutem numa tentativa de restaurar os
sentidos de um tempo vivido que foi, como é sempre em toda recordação, mais íntegro
que o tempo presente.
O que observamos até agora neste livro
de Erlend Loe se situa na camada da estrutura e da forma, com algumas incursões
pelo conteúdo. Mas, se fôssemos nos deter nos elementos da galáxia de símbolos
que constitui outra dinâmica de significação do texto, analisando alguns
elementos ou aspectos da narrativa, descobriríamos muito mais coisas. Isso
significa que a ingenuidade do que se narra não compreende em nada às
complexas proposições sugeridas pelo romance ― outro aspecto que se associa à
dinâmica da fábula infantil. Um exemplo possível de acrescentar aqui são as
listas construídas pela personagem quando vai ao encontro do irmão em Nova York;
a viagem é um presente pela maneira como administra à distância a tarefa de
resolver um dos negócios de interesse do irmão. Recortamos abaixo excertos a
fim de esclarecer melhor o que dizemos; os identificados pelo número 1 estão no
capítulo intitulado “Hopi” e os do número seguinte, correspondem ao capítulo “Mais
burros”.
1.
Antes de
dormir eu anoto as lembranças mais nítidas dos meus dois primeiros dias nessa
cidade:
― Um homem
uniformizado que saiu correndo de um prédio para carregar a bagagem de uma
mulher elegantemente vestida que descia de um táxi
― Quatro meninos
de feições asiáticas que jogavam vôlei na grama do parque
― Um homem
que tocava violão numa estação de metrô [...]
― Um judeu
ortodoxo de walkman e tênis vermelhos de corrida
― Uma
garota que estava distribuindo um novo tipo de chiclete dizendo que era grátis
só hoje
― Um
homem que estava sentado com um cartaz onde dizia que ele não tinha dinheiro e
era HIV positivo [et al]
2.
Essas foram
as coisas que eu vi hoje:
― Um homem
negro que chamava bicicleta de bitch
― Uma loja
que vendia equipamentos de bombeiro
― Uma pintura
de Dalí com relógios derretidos
― Dois
judeus com quipás correndo para fora de uma ambulância
― Cinco jovens
negros que passeavam no parque, cada um com um toca-fitas no ombro. Eles
falavam uns com os outros, mas ninguém pode ter ouvido nada além da música
― Um
arranha-céu em construção
― Um
menininho usando drogas no parque [et al]
A primeira coisa que o leitor notará
das enumerações é que elas propõe o que nos romances comuns se designam como
descrições; elas situações recuperadas pelo olhar do estrangeiro revelam seu
contato com este novo mundo cujos limites foram sempre vendidos com as cifras
do progresso, da liberdade e da multiplicidade harmoniosa de culturas. Entre
esses valores encontramos também aqueles que demonstram como duas divindades
dos estadunidenses: o dinheiro e acúmulo. Mas, nada é tão despretensioso nessas
listas exibidas aqui em parte.
Entre os itens que reforçam certa
identidade da vida capitalista, alguns se mostram claramente como uma denúncia
ou o resultado perverso de todo idealismo decorrente da meritocracia dominante
dos novos Hopi: a miséria, o abandono e escravidão do homem pelo
capital. Chamamos atenção para os itens que colocamos destacados em itálico.
Também se revelam o grande fosso entre as gentes demarcado aqui pela posição
que desempenham uns em relação aos outros. Tudo isso aparece rebaixado pelo que
sugere os títulos: os selvagens e aqueles que arrotam a petulância de centro do
mundo quando são os de pouca inteligência.
É notável que isso favorece dois
caminhos: um polêmico porque reaviva uma estampada xenofobia do europeu em
relação à América, situação mais explícita na opinião do pai da personagem que
manifesta interesse de que o filho levasse consigo um manifesto no qual
ressaltava a hipocrisia do estadunidense; e uma diatribe que revela os impasses
de um sistema incapaz de reconhecer suas cisões mais graves: a desumanização e
a submissão de todos a uma ordem que é feita a apoteose para uns e a condena
para muitos.
Dissemos que o isolamento desta personagem
do mundo comum pode ser interpretado em parte como uma descrença sobre os
destinos coletivos do homem. Assim, entre os dois caminhos possíveis aventados
acima melhor se justificam pela segunda leitura. Isso pode se somar ainda a
vários outros episódios desse romance que reanimam a generosidade como um
elemento recorrente entre nós: algumas são atitudes do próprio
narrador-personagem, como o cuidado com o pequeno Børre durante uma viagem dos
pais, a dedicação da tarefa delegada pelo irmão, o cuidado com o cão deixado no
apartamento do irmão em Nova York, a ajuda com as sacolas de uma mulher para
subir as escadas; outras são reparadas por ele nas atitudes alheias, como a descrição
de um situação registrada pela televisão em que a atitude de um policial desencadeia
toda uma rede de apoio e transformação da vida de uma mãe que traz a filha
internada num hospital para tratamento de câncer e foi assaltada das poucas
posses que tinha. É este mesmo narrador quem admite em certa passagem que
“gostaria de fazer do mundo um lugar melhor” porque entende que “[a] pior
alternativa é ser uma pessoa que faz do mundo um lugar pior.”
O romance de Erlend Loe, portanto, recorta
a vida de um jovem em adultecimento que, tomado por uma dessas crises que
assomam a todos, decide, por conta própria instituir uma pequena primavera
capaz de oferecer uma compreensão mais coerente sobre seu destino; essa
percepção da bondade talvez seja a principal das lições que nos fica. Embora pareça
que a vida quase não tenha mais disso, é preciso reparar o que ainda resta e colocar
em relevância, sem deixar de compreender, obviamente, que nossa natureza é mediada
por uma variedade de forças que não nos fazem inteiramente bons, tampouco melhores
ou piores do que já fomos. Se a existência é um emaranhado muito complexo, cabe
a nós encontrar o simples, capaz de nos favorecer a vida tal como se nos revela,
no seu movimento contínuo desde a origem do tempo.
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