As sílabas de Amália, de Manuel Alegre
Por Maria Vaz
Escrever sobre Amália Rodrigues é sempre um
risco, na medida em que acaba por ser semelhante a quando entramos no mar e
vemos e sentimos as ondas mas, do nada, ficamos sem pé ante a profundidade que
a intensidade que os sentidos lhe faziam ressoar pela voz e encantar multidões.
Um risco superado com distinção, como outra coisa não seria esperar, pelo poeta
Manuel Alegre a quem, dentre outras distinções literárias, foi atribuído o
Prémio Camões, em 2017.
As sílabas de Amália foram melodias que
arrebataram aplausos em palcos de todos os cantos do mundo, num tempo muito
menos globalizado do que aquilo que é nos dias de hoje.
Compreender o que Amália representou para o
fado e para a cultura portuguesa, em geral, é complexo. E é complexo porque foi
um fenómeno com muitas peculiaridades capazes de superar a humildade das suas
origens e a sua timidez natural, que se desvanecia completamente quando entrava
em palco.
Tinha a voz, a presença, a elegância e,
sobretudo, a capacidade de transmitir aquilo que todo um povo sentia ao dar voz
aos versos dos grandes poetas da língua portuguesa. Por isso, foi também uma
das maiores divulgadoras da língua de Camões ao longo do século XX pelos cinco
continentes.
“quando ela diz fado está a dizer o nosso
próprio nome e pronuncia essa palavra com a mesma entoação que provavelmente
Camões lhe dava. Suspeito mesmo que foi para ela que Camões escreveu alguns dos
poemas que Alain Oulman transformou em fado.”
O poeta escreveu este livro para Amália
Rodrigues, por tudo aquilo que ela representou e ainda representa para a nossa
cultura, como forma de tributo pelo centenário do seu nascimento. Ela, que era
uma referência para o poeta desde os tempos em que estudara em Coimbra.
O livro, publicado em julho de 2020, pela
Editora Dom Quixote, começa com a captura de um momento entre ambos, na sessão
de lançamento de inéditos de Amália, Segredos, corria o ano de 1997. Com base
nessa e noutras vivências em que partilharam momentos, como o da fotografia que
consta no início do livro, Manuel Alegre afirmou que a gaivota de O’ Neill “só
podia ser de Amália , não só por ser uma gaivota do Tejo mas, sobretudo, por
ser a metáfora da nossa própria alma”.
Manuel Alegre surpreende, assim, os leitores
ao tornar públicos alguns pormenores da sua proximidade com a cantora
portuguesa e com Alain Oulman e torna público, com este livro, que tudo começou
com uma carta vinda de Paris.
A carta, escrita por Alain Oulman, dirigia-se
a Manuel Alegre com a notícia de que tinha musicado um dos seus poemas mais
conhecido, a “Trova do vento que passa”.
Naquele tempo, o facto de Alain Oulman musicar
aquele poema para Amália tinha todo um significado misto de surpresa e emoção
para o poeta, que se encontrava no exílio e que vira toda a sua obra apreendida
e proibida em Portugal. “A trova do vento que passa” saiu no álbum Com que
Voz; corria o ano de 1970.
Diz o poeta que, “quando ela cantou o “Com que
voz”, encontrou-se a si mesma. Porque encontrou essa outra voz de que fala
Octavio Paz, a voz da poesia. Ela é o povo que lava no rio, como, melhor do que
ninguém, sabia Pedro Homem de Mello. Mas na verdade, como revelou David Mourão
Ferreira, o seu nome próprio é Maria, “seu apelido Lisboa”. De facto, quando
ela canta, é sempre de conchas no vestido e “tem algas na cabeleira. É a sua
coroa de rainha, porque nós não temos outra, temos Amália, a que consegue
exprimir aquela parte de um povo que nunca ninguém tinha conseguido dizer
assim.”
Além dos textos introdutórios das partes que
constituem a obra, também reúne os poemas que o poeta escreveu sobre Amália ao
longo da vida, bem como aquilo que dela é totalmente indissociável – o fado. Para
tal, dividiu o livro em quatro partes: “quando ela diz fado”; “quatro poemas
cantados por Amália com música de Alain Oulman”; “teoria do fado”; e “eu queria
dar-te um fado”.
Amália Rodrigues, eterna musa inspiradora
dessa arte vibrante, que é o fado. Única e, ao mesmo tempo, plural. Porque, como
Manuel Alegre deixa bem claro, “na tua voz há tudo o que não há\ há tudo o que
se diz e não se diz\ há os sítios da saudade em tua voz\ o passado o futuro o
nunca o já\ as sílabas da alma de um país\ porque tu mais tu és todos nós.”
A obra tem, ainda, um poema original de Manuel
Alegre – divulgado durante a primeira vaga da pandemia Covid-19, inclusive pela
Página do Instituto Camões, que menciona Amália e serve de mote para esta prova
coletiva de resistência ao vírus –, o “Lisboa Ainda”.
Lisboa não tem beijos nem abraços
Não tem risos nem esplanadas
Não tem passos
Nem raparigas e rapazes de mãos dadas
Tem praças cheias de ninguém
Ainda tem sol mas não tem
Nem gaivota de Amália nem canoa
Sem restaurantes sem bares nem cinemas
Ainda é fado, ainda é poemas
Fechada dentro de si mesma ainda é Lisboa
Cidade aberta
Ainda é Lisboa de Pessoa alegre e triste
Em em cada rua deserta
Ainda resiste.
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