A vez e a voz das escritoras latinas

Por Fernanda Fatureto
 
 
Mariana Enríquez. Foto: Nora Lezano.


Mariana Enríquez é uma das principais escritoras latino-americanas em destaque no exterior; esteve na 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ano passado para falar sobre o seu trabalho e lançar um novo livro Este é o mar (Intrínseca)publicado no Brasil este ano. Nascida em Buenos Aires em plena ditadura militar argentina, na década de 1970, presenciou os horrores da repressão e das disfunções sociais causadas pelo regime político. A escritora faz parte de uma geração de escritoras latinas que tem conquistado reconhecimento e os principais prêmios internacionais junto a nomes como a argentina Samanta Schweblin, a mexicana Valeria Luiselli e a brasileira Ana Paula Maia. Ganhou o prêmio espanhol Herralde de Novela em 2019 pelo romance Nuestra parte de noche. Também recebeu o prêmio Ciutat de Barcelona, dois anos antes. 

Mariana Enríquez é autora de mais de dez livros, como As coisas que perdemos no fogo (Intrínseca), coletânea de contos traduzida em mais de 20 idiomas e publicada no Brasil em 2017, tornando-se sucesso de crítica e venda. Nesta entrevista exclusiva, Mariana Enríquez fala sobre como as mulheres latinas têm alcançado maior visibilidade na literatura e conta as dificuldades de se viver em um continente tão marcado pela violência e a desigualdade – dando material para sua escrita que transita entre o terror, a ficção científica e a fantasia.
 
 
 Na Flip 2019 você afirmou que retrata a realidade social e política em seus contos de maneira intencional. De que maneira ter nascido durante a ditadura militar na Argentina contribuiu para que sua ficção fosse permeada por temas como a violência e por disfunções político-sociais?
 
Contribuiu muitíssimo. A ditadura argentina é um tema que se segue discutindo, que impregna as conversas diárias e os posicionamentos políticos. Ocorreu quando eu era criança, então as lembranças que tenho são muito vívidas e muito estranhas, como normalmente ocorre com as recordações da infância, retalhos de experiências, de conversas, de uma sensação de não saber de todo o que ocorria mas com a seguridade de que era mau.
 
 Em Paraty você também disse que não lhe interessa tratar destas questões a partir de um realismo puro. Como a literatura fantástica cumpre na sua escrita o papel de denúncia e de espelho da realidade em que vive?
 
Sempre fiz literatura fantástica. Não está separada da realidade e da experiência, só pensa certos temas com outra linguagem. A ficção científica, acredito, é um dos gêneros mais políticos que existem:  Philip K. Dick pensou em um futuro de escravidão dominado por máquinas e no controle dos cidadãos pelos estados;  Ursula K. Le Guin escreveu sobre mundos anarquistas, sobre políticas de gênero, sobre sistemas políticos repressores; Orwell, Zamiatin, também. Em terror, Stephen King é um enorme escritor social – em novelas como  Carrie fala de  bullying e massacres escolares, em El resplandor de violência familiar, na trilogia de Bill Hodges tematiza o desemprego e a pobreza... o gênero pode abordar a realidade igual a qualquer outro. O realismo também é um gênero, uma construção, apenas trata de imitar a realidade. Eu, em particular, para a abordagem do real prefiro a crônica (estou falando da minha escrita, não do que gosto de ler. Eu leio de tudo).
 
3 – Seu livro de contos As coisas que perdemos no fogo foi editado em 20 países e ganhou o prêmio Ciutat de Barcelona ao mesmo tempo que outras escritoras latino-americanas têm alcançado o mercado literário internacional e os grandes prêmios. Como esse fenômeno pode ser visto? Há de fato um reconhecimento maior das escritoras latinas?
 
Creio que neste momento, sobretudo no mundo anglo-saxão e na Europa há um interesse pelos discursos das minorias, existe uma busca por mais diversidade. Não sei quanto pode durar, mas é bem-vinda. Acredito que tem a ver com a aparição muito visível dos imigrantes e com as mudanças nas sociedades e, claro, os problemas que causa a convivência de culturas. Assim que sim, há um maior reconhecimento e avidez, ao menos mais do que há vinte anos.
 
4 – É difícil ser escritora e latino-americana? Como a questão de gênero e de origem dificultam a divulgação de uma obra literária? Para você essa fronteira existe?
 
O que é difícil é ingressar em outros mercados. Embora exista mais interesse, existe a barreira do idioma, da cultura, há leitores que não estão interessados em ler sobre outras realidades. Existe uma fronteira, mas talvez a um escritor húngaro passe o mesmo a respeito do mercado latino e de língua espanhola. Acredito que, por exemplo, também há dificuldades de difusão dos escritores hispânicos no Brasil, e é um país de nosso mesmo continente e, embora com suas diferenças, de culturas muito similares e reconhecíveis. O que é claramente difícil é o financiamento, em nossos países a maioria dos escritores necessita trabalhar de outra coisa que não seja escrever, há poucas bolsas de estudo, pouco estímulo, sempre se trata de conseguir ajuda de países mais ricos. E isso causa uma diferença social entre escritores, um tema de classe que me parece complicado. O gênero em termos de ser mulher não me parece particularmente difícil em meu caso e neste momento, porque hoje existe um interesse pela literatura escrita por mulheres, um interesse que creio é inédito.
 
 Você afirmou na Flip 2019 que o terror na sua escrita vem da violência policial e institucional na América Latina. Em que medida a literatura consegue exercer seu papel  de  denúncia social?
 
Não creio que seja denúncia, não escrevo denúncia. Só que quando escrevo terror, escrevo sobre o que me dá medo e essas coisas me dão medo, me aterroriza que nossos países sejam tão desiguais e violentos. Mas não é denúncia, não gosto de literatura panfletária.
 
 A literatura pode mudar a realidade? Como você delimita as fronteiras entre realidade e ficção na sua obra?
 
A literatura não pode mudar a realidade. Pode mudar certas percepções dos leitores, mas não acredito que produza mudanças profundas ou importantes, tampouco acredito que seja sua função. O que a literatura pode fazer é abrir mundos, ativar a imaginação, ajudar a pensar em outras formas de vida e pensamento. Isso pode causar mudanças, mas são lentas.
 
7 – No seu livro mais recente, Este é o mar, você cria seres mitológicos e fantásticos para narrar como acontece o culto às celebridades do rock. Podemos traçar uma metáfora ao que vivemos hoje em meio aos influencers e celebrities do Instagram e Facebook? No seu livro há uma crítica à era digital e a toda essa pressão por likes e fama?
 
Não creio que no meu novo livro haja uma crítica à era digital, e sim uma reflexão sobre os “fandoms” e as celebridades e a relação de amor e ódio que se produz em um sistema capitalista, onde existe uma adoração de deuses pagãos pelas celebridades. Mas só pensei o digital como a plataforma onde isso acontece hoje. Acredito que aconteceu sempre e as formas de difusão e conhecimento destes seres adorados muda porque mudam os tempos. Mas não tem a ver com influencers nem nada pelo estilo – pode ser lido assim, estou aberta a essa leitura, mas não pensava neste termos no momento de imaginar o relato durante a escrita do livro. E sim pensava na solidão de ambos, do famoso e do devoto, e as raízes antigas desta necessidade de completar nossas vidas com alguém a que por no lugar de divino.

***
 
Conheça os livros de Mariana Enríquez publicados no Brasil pela editora Intrínseca:

As coisas que perdemos no fogo (2017)
Tradução de José Geraldo Couto

Com histórias protagonizadas, em sua maioria, por personagens femininas, o livro põe em evidência a desigualdade de gênero, pobreza, discriminação, abandono, violência policial e heranças da ditadura. São doze contos onde o insólito se mescla ao terror e ganham o leitor pela tensão narrativa e a voz singular da autora.



Este é o mar (2019)
Tradução de Elisa Menezes
Nesta novela, Mariana Enríquez cria uma mitologia própria para explicar o nascimento dos rockstars. Seres chamados Luminosas se alimentam da devoção incondicional das fãs a seus ídolos do rock. Nesta trama sobrenatural, a escritora questiona a relação de adoração que permeia a sociedade junto às celebridades. Uma crítica que se estende a todos em nossos tempos.

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