Tema ou técnica? II – Mário de Andrade e a verdade pessoal do artista
Por Guilherme Mazzafera
“a obra é tanto mais artística quanto
mais definidos os seus canais de expressão”
Herbert Read1
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Kazimir Malevich. Três mulheres. |
Em “A raposa e o tostão”, texto originalmente publicado em 1939, Mário de Andrade alerta sobre os jovens escritores de então que, dotados de evidente valor, mas apressados e “ignorantes dos problemas da forma”, pensam que escrever é simplesmente “deixar correr a pena sobre o papel” (ANDRADE, 1944, p. 93). Em um diagnóstico mais amplo, reconhecendo a grande vitalidade e produtividade do período, Mário observa:
“A literatura brasileira está numa fase de apressada improvisação, em que cultura, saber, paciência, independência (só pode ser independente quem conhece as dependências) foram esquecidos pela maioria. E foi principalmente esquecida a arte, que por tudo se substitui: realismo, demagogia, intenção social, espontaneidade e até pornografia.” (p. 94)
Diante desta situação, Mário advoga
pela necessidade do apuro formal em face da predominância do interesse pela
política e sua incorporação direta na obra literária, em que pesava a demissão
dos cuidados com a forma. A presença da intenção social nessas obras é vista
por Mário como algo “facilmente intimidável”, ou seja, que não atende a uma
necessidade íntima nem passa pelo processo técnico necessário para torná-la
orgânica ao texto. Defendendo-se da pecha de “formalista” ou mesmo
“parnasiano”, Mário se vale do exemplo de Manuel Bandeira, “um esteta” que
domina em profundidade “o segredo de adequação de uma forma a seu conteúdo”, o
valor exato dos vocábulos, evitando, assim, o emprego perigoso de “uma palavra
em falso”. Foi justamente com um artigo de Mário intitulado “A palavra em falso”,
no qual critica o livro Onda raivosa (Joel Silveira), que teve início uma
interessante polêmica envolvendo o autor paulistano na qual nos deteremos um
pouco.2
O cerne dessa polêmica reside em
duas posições antagônicas: de um lado, a defesa da técnica por parte de Mário,
em resposta ao uso não criterioso do verso livre e à obsessão com a realidade
por retratar nos romances documentais então em voga; de outro, um de seus mais
famosos praticantes, Jorge Amado, e o nome vilipendiado, Joel Silveira; por fim,
atuando como uma espécie de árbitro, Graciliano Ramos. Em réplica ao artigo de
Mário, Jorge Amado critica a atitude preciosista do primeiro em escrutinar
minúcias em busca das tais “palavras falsas” no livro de Silveira, em vez de
atentar para a mensagem da obra (SALLA, 2006, p. 65).3
A resposta de
Mário, em “A raposa e o tostão”, além dos argumentos já expostos, concentra-se
na recuperação de um programa construído em artigos anteriores em que o ato
crítico deve ser direcionado para a busca de uma “verdade transitória”, em
fluxo contínuo entre o pragmatismo imediato e o per se estético, procurando ir
além das obras com o intuito de lhes precisar o contexto e a singularidade
(ANDRADE, 1944, p. 96).
Jorge Amado responde novamente, destacando que a atitude
de retorno à torre de marfim por parte do artista combativo dos anos 1920 é
inaceitável, em especial em um momento de tensões planetárias deflagrado pelo
início da guerra europeia (SALLA, 2006, p. 67).4 Embora reconheça a
importância da técnica, sugerindo que seu estudo até possa ser preponderante em
momentos menos conturbados da história, Jorge Amado entende que naquelas
circunstâncias ela se torna eminentemente secundária, e a insistência em sua
valoração, um posicionamento artístico inconsequente.
A participação de Joel
Silveira é bastante discreta,5 enquanto a intervenção de Graciliano
é mais interessante, pois, se por um lado revela certa adesão ao grupo dos
“sapateiros da literatura” e à formulação de seu realismo crítico contra a
postura autossuficiente da intelectualidade “por nomeação”,6
reconhece como verdade intuitiva a aguerrida demanda de Mário de que os
escritores devem propriamente saber escrever, sendo ele mesmo um grande
defensor da técnica literária associada ao domínio dos temas e situações que se
deseja representar literariamente.
A leitura de “A raposa e o tostão”
delineia uma associação intrínseca entre os períodos construtivos da arte e a
centralidade da preocupação formal, assim como defende a ideia de que é pela
forma expressiva que a mensagem se eterniza. Tais aspectos serão retrabalhados,
assumindo feição distintiva no ensaísmo de Mário na famosa “Elegia de abril”,
em que o escritor recorda as dificuldades enfrentadas no rodapé do Diário de
Notícias por tornar a técnica seu “cavalo de batalha”: a incompreensão geral
daqueles que não enxergavam a coerência no projeto de alguém que, “tendo
combatido, não pela ausência, mas pela liberdade da técnica num tempo de
estreito formalismo”, torna-se, em um novo contexto marcado por um liberalismo
artístico que parecia descambar para mera “cobertura da vadiagem e do apriorismo
dos instintos”, um acalorado defensor da “aquisição de uma consciência técnica
no artista” (ANDRADE, 2002, p. 193). Como indica Roberto Schwarz (1981), parece
ser nesse texto que Mário atinge uma espécie de superação dialética da oposição
anterior entre lirismo e técnica, tornando-se esta a condição de realização
daquele em sua dimensão mais particular, ou seja, a expressão de uma verdade
pessoal que universaliza o indivíduo:
“Imagino que uma verdadeira
consciência técnica profissional poderá fazer com que nos condicionemos ao
nosso tempo e o superemos [...] se o intelectual for um verdadeiro técnico da
sua inteligência, ele não será jamais um conformista. Simplesmente porque então
a sua verdade pessoal será irreprimível... Será preciso ter em conta que não
entendo por técnica do intelectual [...] somente o artesanato e as técnicas
tradicionais adquiridas pelo estudo, mas ainda a técnica pessoal, o processo de
realização do indivíduo, a verdade do ser, nascida sempre da sua moralidade
profissional. Não tanto seu assunto, mas a maneira de realizar seu assunto
[...] a superação que pertence à técnica pessoal do artista, como do
intelectual, é o seu pensamento inconformável aos imperativos exteriores. Esta
a sua verdade absoluta.” (ANDRADE, 2002, p. 193)
Mário associa, portanto, o preparo
técnico à possibilidade de realização do artista, que se dá sempre a partir de
uma especificação de seus elementos formais (a maneira de realizar o assunto).
O domínio profissional da técnica liberta o artista de seus condicionamentos
mais imediatos, permitindo uma clara visão de seu tempo e mesmo além dele,
culminando na impossibilidade do conformismo com qualquer verdade proveniente
de “imperativos exteriores”. O trabalho do artista, deste modo, baseia-se na
expressão de verdades pessoais, expressão tornada possível pela consciência
técnica, entendida não mais como “adequação do verbo à psicologia do autor”,
mas sim “como critério da estrutura da obra, que ganha então autonomia”
(SCHWARZ, 1981, p. 22).
Como ponto de chegada, a
conferência “O movimento modernista”, de 1942, marcada por um criterioso olhar
retrospectivo com os pés cravados no presente, concretiza a definição dos
famosos três princípios fundamentais, dentre os quais o autor destaca a
“normalização do espírito de pesquisa estética, anti-acadêmica, porém não mais
revoltada e destruidora” como a maior “manifestação de independência e de
estabilidade nacional que já conquistou a Inteligência brasileira” (ANDRADE,
2002, p. 272). Refletindo sobre o que foi seu outro cavalo de batalha, a
construção de uma língua brasileira, Mário observa que sua invenção deu-se de
modo demasiado rápido, sem as bases críticas e institucionais necessárias,
acabando por se restringir a manifestações individuais que trouxeram em seu
bojo um inevitável senso de atraso (p. 268). Pensando na disseminação de certo
“brasileirismo estilístico”, Mário observa que o anseio modernista de
“reverificar nosso instrumento de trabalho” acabou se mostrando, como outrora
com os românticos, não “uma superação da lei portuga, mas duma ignorância
dela”, daí ser curioso notar a presença de “lusitanismos sintáticos ridículos”
entremeados à “expressão já intensamente brasileira” de muitos dos melhores
prosadores daquele momento. Por fim, prevalece a lição fundamental do
aprimoramento técnico constante e consciente de sua dimensão expressiva e
comunicativa: “Saber escrever está muito bem; não é mérito, é dever primário.
Mas o problema verdadeiro do artista não é esse: é escrever melhor. Toda a
história do profissionalismo humano o prova. Ficar no aprendido não é ser
natural: é ser acadêmico; não é despreocupação: é passadismo” (p. 270).
A síntese dialética de Mário se
mostra em grande sintonia com as demandas da arte moderna mundial por meio da
conjugação do “máximo de verdade interior” com o “máximo de pesquisa formal”,
da subjetividade completa com a objetividade completa, tal como propõe Alfredo
Bosi em Reflexões sobre a arte (2010, p. 70). Posto de outro modo, em contexto
político polarizante e exacerbado, impulsionador de uma abordagem pendente ao
documental na literatura, o zelo consciente pela técnica artística defendido
por Mário ecoa profundamente a divisa poética de Wassily Kandinsky recolhida e
empregada por Bosi como fio condutor do seu pequeno e inestimável livro: “Todos
os procedimentos são sagrados quando interiormente necessários”.
No último texto desta série,
procuro esmiuçar um pouco como Graciliano Ramos refrata esta divisa em sua
paleta particular.7
Notas
1 Citado por Alfredo Bosi em Reflexões
sobre a arte (Ática, 2010, p. 57)
2 O leitor interessado na polêmica
pode consultar o seguinte trabalho: SALLA, Thiago Mio. “Palavras em falso e
literatura engajada nos anos 30: Mário de Andrade e ‘A raposa e o tostão’”. Magma,
São Paulo, n. 9, p. 61-70, 2006.
3 O artigo-resposta de Jorge Amado
se intitula “O tempo que vai” e foi publicado no periódico Dom Casmurro em 12
de agosto de 1939.
4 O segundo artigo-resposta de
Jorge Amado se intitula “A solidão é triste” e foi publicado no periódico Dom
Casmurro em 2 de setembro de 1939.
5 O artigo de Joel Silveira,
publicado em Dom Casmurro em 12 de setembro de 1939, intitula-se “Fala um
tostão”. Nele, o autor se limita a utilizar a própria alegorização monetária de
Mário para reforçar seu papel de vítima, considerando-se um mísero tostão
acuado perante a pujança intelectual de 50 contos de réis que atribui ao
escritor paulista.
6 A participação de Graciliano se
dá por meio de “Os sapateiros da literatura” e “Os tostões do sr. Mário de
Andrade”, ambos de 1939 e recolhidos em Linhas tortas (Record, 2005).
7 Convidamos o leitor interessado
à leitura de “Tema ou técnica? I – Notas sobre um debate crítico-literário”, já
publicado aqui no Letras, e “Tema ou técnica? III – Graciliano Ramos e a
matéria romanceável”, a sair no próximo mês.
Referências
ANDRADE, Mário de. “A raposa e o
tostão”. In: O empalhador de passarinho. São Paulo: Livraria Martins Editora,
1944.
ANDRADE, Mário de. Contos novos.
São Paulo: Livraria Martins Editora, 1947.
ANDRADE, Mário de. “Elegia de
abril” e “O movimento modernista”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2002.
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a
arte. São Paulo: Ática, 2010.
SALLA, Thiago Mio. Palavras em
falso e literatura engajada nos anos 30: Mário de Andrade e “A raposa e o
tostão”. Magma, São Paulo, n. 9, p. 61-70, 2006.
SCHWARZ, Roberto. “O psicologismo
na poética de Mário de Andrade”. In: A sereia e o desconfiado: ensaios críticos.
Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1981.
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