Sobre a complexa relação entre literatura e história: apontamentos a partir de Juan Rulfo
Por Ronaldo González Valdés
1. A primeira coisa que se
deve presumir, com Saramago (ou com Ortega y Gasset ou com O’Gorman ou com quem
vocês queiram dos não poucos que disseram algo semelhante, sejam historiadores
ou escritores), é que a história é de alguma forma uma invenção. Burckhardt e
Nietzsche foram os primeiros a afirmar que o historiador é um criador.
Ampliando um pouco o time, como escreveu Luis González y González em El oficio
de historiar, talvez devêssemos começar concordando que o historiador é um “criador
de romances verídicos”. Por isso Burckhardt afirmava que se pode partir do
mesmo ponto, navegar nas mesmas águas em um barco muito parecido e, no entanto,
chegar a portos diferentes aos de outros navegadores pelos mares de Clio. Como
se duas histórias fossem escritas sobre o mesmo personagem ou evento; ambas
podem se apoiar nas mesmas fontes e contar histórias diferentes. E se forem
feitas com rigor, ambas serão “romances verídicos”.
2. Ler literatura, ler
romances, então, tem a ver, entre outras coisas, com a possibilidade de o
historiador estimular a imaginação. E não apenas qualquer imaginação. Temos
aqui, na linha proposta pelo historiador catalão Jordi Canal, aquele elemento
do romance que entra na oficina do historiador: a imaginação moral. Certa vez,
perguntaram a Carlo Ginzburg o que aconselharia aos jovens que querem se
dedicar à história, ao que o historiador italiano respondeu de maneira muito
categórica e sem sombra de dúvida: “Ler romances, muitos romances”. Por quê?
Porque a imaginação moral ― lembra Canal ― também é própria ao bom historiador,
diferente da mera fantasia. A fantasia prescinde o objeto, a imaginação o
incorpora, o recria: torna-o crível, dá-lhe sentido. Por isso dizemos que
existe uma “verdade literária” e uma “verdade histórica”, o que equivale a
dizer que a literatura nos confronta com o mistério do sentido do mundo, da
vida, às vezes tão desprezados pelo historiador com a pretensão de certeza, com
uma pretensão seca da objetividade.
3. Aqui está uma primeira
ideia de como a leitura da obra de um autor como Juan Rulfo é relevante para a
pesquisa e a escrita histórica. José Ignacio Uzquiza González, historiador
espanhol, em seu ensaio “Símbolo y história en Juan Rulfo”, encontra nos
personagens e na trama de Pedro Páramo uma ruptura íntima que denuncia
uma ruptura social: há uma ruptura nessa cidade chamada Comala em que tudo é “pura
errância de pessoas que morreram sem perdão”. Há pecado em Pedro Páramo e em
todos os personagens do romance, em todos os personagens que sucumbiram ao
mando, inclusive aquele que deveria dispensar o perdão e preferiu fugir
apavorado com o próprio pecado de submissão e cumplicidade com o patrão: Rentería,
o padre da aldeia.
4. Esse pecado mantém as
almas no limbo do purgatório, na dor, e desarticula suas vidas. Em várias
ocasiões, o próprio Rulfo afirmou que Pedro Páramo é a história de um
povo antes da de uma tribo: como Luvina de Chão em chamas, que cai
diante da lei de Deus, Comala sofre sua própria queda ao se render à lei de um
só homem. É de alguma forma, visto dessa perspectiva, a saída da história.
E assim saíram da história todas aquelas pessoas e povos devastados pela
revolução e pela guerra Cristera naquela região do país. No entanto, convulsões
sociais como a Revolução (“Agora estamos com Carranza; Agora estamos com o general
Obregón”)¹ são apenas circunstâncias externas, a chefia e a serventia à chefia
constituem a circunstância interna: a queda, a passagem da Comala de dona
Eduviges Dyada, aquele lugar de “... Planícies verdes. Ver subir e descer o
horizonte com o vento que move as espigas, o ondear da tarde com uma chuva de
ondas triplas. A cor da terra, o cheiro da alfafa e do pão. Uma cidade que
cheira a mel derramado...”. Dessa Comala à Comala que é, nas palavras de
Abundio, o arrieiro, aquele que descreve seu pai Pedro Páramo, o pai-cacique de
todo um povoado, “em cima das brasas da terra, bem na boca do inferno. Digo que
muitos dos que morrem por lá, quando chegam ao inferno voltam para buscar um
cobertor.”
5. Por isso, Luis González
y González recomendou que, quando o historiador aspira a reviver um passado, deve
ler literatura: “Se você aspira escrever sobre a sociedade do sul de Jalisco em
tempos da cristiada” — escreve o autor de Pueblo en vilo — , não pode dispensar
a leitura dos três livros de Juan Rulfo e La Feria de Juan José Arreola”
(suponho que, além de Pedro Páramo e Chão em chamas, González y
González se refere a O galo de ouro). A partir daí, uma imagem
temporária do passado começa a ser forjada, diz. Ou seja, a partir daí a
imaginação criativa começa a desempenhar um papel, senão sobre o passado, pelo
menos no estabelecimento de perguntas sobre. Perguntas diferentes para cada
leitor, para cada historiador. Porque é bem verdade que, recorrendo a Borges,
somos os livros que lemos, mas não é menos verdade que os livros são, por sua
vez, o que o leitor leu neles. Essa é, diria Roger Chartier, a magia da
recepção, da apropriação do texto que se dá na experiência de leitura, aquela
que ocorre em princípio com a leitura da literatura stricto sensu.
6. Em outro sentido, em seu
ensaio “Lección de arena. Pedro Páramo”, Juan Villoro assinala que: Pedro
Páramo não pretende ser um romance histórico, mas a ideia da História é um
elemento decisivo no seu labirinto eloquente. Os arredores de Comala têm os
nomes apropriados Os Confins ou La Andromeda; aí (nesses lugares), a história
segue seu curso. Nesses lugares se realiza uma revolução, uma guerra cristera: nos
Confins e La Andromeda se desenvolve o que logo será conhecido como História.
Existe algum significado histórico oculto aqui no sentido literário do romance?
No mesmo texto, Villoro afirma que “a dimensão política de Pedro Páramo
é especificamente literária. A história dos que não podem ter História”. É uma
outra história, um tipo peculiar de intra-história com sua temporalidade social
e metafísica próprias, aquela que joga os personagens para si mesmos, que os
expulsa da História.
7. Em Pedro Páramo
há murmúrios. Juan Preciado, já sabendo que está morto, diz à sua companhia de
caixão: “Pois é verdade, Dorotea. Os murmúrios me mataram”. Os murmúrios marcam
o território dividido de um povoado em que tudo se desfez, em que ninguém fala
realmente com os outros. Daí a alegoria da expulsão da história. Forçando
Cioran ―
e temos o direito de forçar um pensador que forçou tudo ― diríamos que essas pessoas
fizeram uma história que acabou se desfazendo elas mesmas. Cioran escreveu que:
“O homem faz história; a história, por sua vez, o desfaz”. Os personagens de
Rulfo não foram desfeitos pela História, foram desfeitos por sua
história.
8. Mas há esperança com
nome e sobrenome: Susana San Juan, a mulher que Pedro Páramo amou, aquela que
se tornou sua obsessão de toda a vida, aquela que ele fez vir para Comala, a
que matou seu pai, Bartolomé San Juan, para que precisasse de proteção, porque
é isso que lhe é oferecido: subordinação, silêncio cúmplice e sem
questionamentos, aquiescência com o arbitrário e injusto, vida que não é vida, submissão
que é pecado. Susana não cede, Susana prefere render-se à loucura a ceder a
Pedro Páramo, Susana guarda esperança nas suas memórias reais ou nas suas
memórias inventadas, no seu mar que a abraça e acaricia embora nunca o tenha
conhecido. É por isso que ela é a única que fala de seu caixão pessoal. É ela
quem mantém o vínculo com o outro mundo, o da esperança, a que não se doou às puras
sombras, aos murmúrios. Usquiza González afirma que “Pedro Páramo nunca teve
realmente acesso ao mundo de Susana, um mundo possuído de visões do inferno,
mas também de sonhos de prazer e de felicidade”:
“O mar molha meus tornozelos” ―
diz Susana no seu devaneio ― e vai embora; molha meus joelhos,
minhas coxas; rodeia minha cintura com seu braço suave, dá voltas sobre meus
seios; abraça ao meu pescoço; aperta meus ombros. Então me afundo nele, inteira.
E me entrego a ele em seu bater forte, em seu suave possuir, sem deixar um
pedaço [...]. E no outro dia estava outra vez no mar, me purificando. Entregando-me
às suas ondas.”
Existe na Susana, diz o mesmo
autor, uma relação de amor e primordial, quase cosmogónica com o mar. Embora nunca
o tenha conhecido, exceto em sonhos, como o próprio Rulfo disse em uma
entrevista. Nesta purificação, Susana recupera a sua melhor autoconsciência, os
seus laços mais antigos e profundos com a terra. Isso a faz agarrar-se aos
próprios laços, não aos da História ou da história dos condenados de Comala.
Como se ela tivesse escolhido que ambas saíssem de si mesma. Apegar-se a uma
memória erigida por suas memórias e esquecimento. Existem pessoas assim, e o
paradoxo é que são pessoas que forjam a história no relato do romancista e do
contador, ou são pessoas que dão sentido à História na escrita do “fazedor de romances
verídicos”.
9. Não esqueçamos o óbvio,
algo que Jordi Canal também aborda em seu ensaio “El historiador y las novelas”:
Pedro Páramo é um romance (Chão em chamas, um exercício
literário, contos) que faz parte da história da literatura e da história
cultural (que não são a mesma). Também neste sentido está ligada à história, é
objeto da crítica literária, da história da literatura ou da história cultural.
Que explicação teria dado um crítico como Sainte-Beuve à decisão de Rulfo de
não publicar outra obra acabada depois de Pedro Páramo e Chão em
chamas? Que explicação o historiador literário e o historiador da cultura daria
(deu) a isso?
10. Por fim, a narrativa de
Rulfo, outra obviedade que o historiador tende a ignorar, possui um desejo de
estilo, certamente muito além do antigo costumbrismo que em grande parte
é recorrente na crônica no México. Algo poderá servir à esquecida busca de
estilo de quem continua a cultivar as artes de Clio no século XXI.
Notas:
¹ As traduções são do romance de
Juan Rulfo são as de Eric Nepomuceno, da edição brasileira de Pedro Páramo
(Rio de Janeiro: Record, 2008).
* Este texto é uma tradução de “Sobre la
compleja relación entre literatura e historia: apuntes con Juan Rulfo”,
publicado aqui, em Nexos.
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