Segredos, de Domenico Starnone
Por Pedro Fernandes
Mas se tornar adulto ― disse para mim ― é
de fato renunciar a sermos perfeitos.
Em Segredos,
de Domenico Starnone
Em certa altura da vida será possível nos confrontar com uma pergunta de
matriz existencial: o que é a maturidade? A ela poderíamos agregar outra
variedade de interrogações, como, quando sabemos que a alcançamos, existirá um
instante que se afirma acima de tudo o que vivemos e a partir disso podemos ver
o começo da maturidade, ser adulto pode se descrever como um traço essencial do
maturo, ou ainda, que elementos nascidos na tenra infância carregamos,
explicitamente ou à surdina de nós mesmos, por toda a vida ao ponto de baldear
nossa compreensão sobre o antes e um depois da maturidade? Embora esses
questionamentos se constituam a partir de demandas subjetivas, podem ― e isso demonstra uma
plena assunção de uma era dos subjetivismos ― inquirir importância também a nível coletivo,
sobretudo, no interior das crises em processo do fim século XX e início do
século XXI. Mas, avancemos por partes.
Toda a narrativa de Segredos se desenvolve a partir das memórias
de um narrador que se confronta com o que podemos designar como dilema do
sujeito contemporâneo. Situado muito à frente dos episódios que organiza e
registra, às vezes parece-nos que Pietro é um homem integralmente mergulhado num
tempo anterior ao da primeira metade do século passado. O que não é verdade,
uma vez que a personagem e narrador do primeiro relato é um herdeiro da
falha a partir da qual uma crise da maturidade começou a se estabelecer. Todos aqueles
que conheceram o mundo depois da Segunda Guerra Mundial, quando se prolongaram
as alternativas de estabelecimento sobre os seus futuros, se viram em confronto
com a posição que os determinam alinhados ao tempo do maturo. É verdade que o
estabelecimento da adolescência e toda sorte de exigências sociais para a vida
adulta resultaram numa extensão de adiamentos e isso, dentre outras
consequências, produziu um esgarçamento do que vimos designando como
maturidade.
No caso de Pietro não é o adiamento que o faz mergulhar numa crise, mas
o torvelinho para o qual é empurrado; de um flerte irrisório, vê-se casado com uma
mulher que larga toda uma situação de vida para se dedicar à vida doméstica e
garantir, assim, o sossego necessário ao trabalho intelectual do companheiro. Dois
passos depois, nasce-lhe o primeiro filho ao mesmo tempo que um pequeno ensaio
sobre a situação da educação pública no seu país ganha notoriedade ao ser
percebido por um desses loquazes pensadores e o nosso protagonista embarca,
sempre ao remanso da maré, numa vida de intervenções públicas sobre a educação no
seu país. Todas essas situações se multiplicam, inclusive a prole, mas, em tudo
o acompanha certa sombra de seu outro tempo, do passado mais distante (a
difícil relação familiar), e de poucos momentos antes do casamento com Nadia,
seu enovelamento amoroso com uma aluna, Teresa, de futuro tão ou mais brilhante
que o do professor depois que ela vai estudar e se fixa nos Estados Unidos. Isso
que não deixa de acompanhar a vida adulta de Pietro é parte do que designa o
título do romance, além é claro, de ser o nó górdio que uma vez desfeito pode
ameaçar todo esse pequeno mundo de prosperidade construído depois de uma sucessão
de pequenos golpes do destino ― mesmo que não sendo de destino o que trata essa
narrativa.
De maneira muito apressada ― que isso demanda uma investigação de maior fôlego
e não cabe neste movimento ― podemos compreender este romance de Domenico
Starnone como uma tentativa de flagrar sobre o aparecimento da linha-limite que
separa o sujeito imaturo do maturo, mesmo que pareça ser uma espécie de
investigação sobre a obsessão amorosa (com todos as implicâncias e
consequências resultantes disso), um exame de consciência, uma justificação
sobre algumas camadas de sombrio passado, ou mesmo uma expiação, sem qualquer
interesse de redenção, das atitudes de seus narradores, o que não é baixeza ou
frieza, porque todos parecem se revestir da ciência de que seus casos são,
mesmo particulares, de alguma maneira, universais. Bem sabemos que há muito o
literário deixou de se importar com uma natureza que distinga entre os homens os
de elevada ou baixa moral; atitude, aliás, que se confunde com o próprio
estabelecimento da forma romanesca como um todo.
Esse perscrutar sobre as linhas da maturidade parece se constituir numa questão
recorrente na literatura italiana do entre-séculos; uma observação aqui marcada
a partir do contato com a obra de Domenico Starnone e Elena Ferrante ― toda ela uma investigação
acurada sobre os meandros dessa questão, seja sob o prisma do homem ou mulher,
seja da interrogação sobre as suas atitudes individuais, seja ainda dessa
obsessão pelos seus lugares nos laços de ordem familiar ―, de Alessandro Baricco ou
Paolo Giordano. Pietro procura a todo tempo em qual parte da sua biografia pode
se descobrir onde vive ele próprio e não uma farsa de si, se não é um sujeito que
forjou um pequeno mundo feito das certezas determinadas pelos outros. A
princípio isso pode se confundir com mania, perfeccionismo, insegurança, medo
de uma intervenção repentina de um acaso destruidor ou que este seja a
ressurreição de um passado.
No caso do primeiro narrador de Segredos, a maturidade começa a
adquirir seus contornos quando este se descobre capaz de estabelecer contato
com a pior parte de si, ocultando-a, e com a possibilidade de administrar os
intrusos capazes de estourar a pequena bolha de vaidades segurada com, ao que parece,
o desinteresse de quem nunca estabeleceu para si um destino feito. Será? Se
pensarmos que a persona ideal é provavelmente apenas produto de uma
ficção, fabricada por nossas obsessões e pelos que gratuitamente usam delas, logo
cuidaremos de perceber que toda unanimidade construída sobre nós e sobre o
outro é apenas isso: uma construção. E isso nada tem a ver com ser bom ou ser
mal. Nem que a ficção que fazemos (ou os outros fazem) de nós nos reduza ao
mais pervertido dos sujeitos. Todos têm e escolhem sua maneira de preservar seu
quinhão. E é isso o que descobre esse professor-aprendiz ― isto é, a condição de
professor crítico de sua condição não puro acaso neste romance ― nesse seu périplo sobre a
obsessão amorosa. Esta, logo, é apenas o fio que o desvia para o maior dos
enganos: a certeza sobre a maturidade.
O romance de Domenico Starnone funciona como uma espécie de arquivo
documental, ou um livro dentro do livro. O primeiro relato, espécie de livro de
memórias interrompido por terceiros e-ou modificado da sua forma original para
angariar outra forma é logo contraposto por uma tentativa fracassada de narrativa
de outras duas pessoas próximas a Pietro, a filha de olhos obsessivos para o
pai e a aluna-amante Teresa. Assim, o que poderia ser a imagem final, cuidadosamente
pensada como monumento para a posteridade é integralmente colocada em questão. Isso
significa que a maturidade é, então, um espectro para o qual corremos ou somos
empurrados para correr. É um estamento social que outorga a nossa presença
dentro ou fora desse estamento. Mas, quanto mais avançamos para ele, mais ele
se afasta de nós. E quando finalmente acreditamos que o alcançamos, a morte nos
rouba.
A perda da certeza sobre o lugar da maturidade não significa seu
apagamento, nem que o seu fantasma seja inexistente. Só nos revela que esta não
é o-um lugar específico a ser alcançado por graça ou merecimento depois de uma
jornada, isto é, a maturidade não é uma conquista. Também não nos chega quando
as responsabilidades da vida se nos impõe ou nos são impostas, ainda que muito
careçamos dela nesse curso. A maturidade é situação, logo, feita de situações em
que exercitamos melhor ou pior uma saída legal e-ou moral capaz de nos
preservar para o outro e para nós mesmos nesse mundo que direta ou
indiretamente construímos diariamente.
Nesse sentido, parece interessante recuperar um episódio relatado por
Pietro que nos levou a pensar assim. Depois de casado com Nadia e quando a vida
adquire a projeção de um interventor público, o protagonista de Segredos,
envolvido pela companhia quase onipresente de sua editora, firma de ampliar a
relação de companheirismo para o sexo. É numa viagem a Milão para apresentação
do segundo livro que se confirma o episódio mencionado: a primeira vez, por
acordo mútuo, os dois adiam o encontro sexual pelo cansaço físico da longa
viagem entre Roma e cidade onde estão; depois, Pietro é arrastado pela tentação
do reencontro com a amante-escolar que fora vê-lo na palestra de
apresentação do livro. Não que os dois tenham uma queda pelo viveram no passado;
findada a relação dele com Teresa, depois que os dois confessam-se do pior dos
seus segredos, o que se desenvolve é uma extensa relação epistolar feita de afetos,
confissões, ironias, ameaças, acusações, aconselhamentos, e a primeira vez do
reencontro dos dois desde quando ela foi viver nos Estados Unidos é um prolongamento
desse exercício. Na mesma noite, atrasado para o encontro com sua editora,
Pietro nega a possibilidade de levar adiante o jogo sexual começado no dia anterior.
A não-realização da traição não significa a manutenção do ideal homem casado
fiel à esposa mas é, nesta ocasião, uma atitude que revela uma maturidade:
envolvendo-se os dois, descobrirão na viagem de volta para casa, poderia estrear
a crise que colocaria em risco o que até então os dois construíram juntos: a
amizade, o sincero convívio familiar e, claro, o enlace financeiro, uma vez que
Pietro é parte importante nas receitas da casa editorial que mantém sua obra. A
escolha sincera dele o favorece não carregar outro peso mais grave que o passado
e funciona como se uma ética das relações pessoais.
Se a maturidade não se determina como uma forma fixa, o que nos coloca em
dúvida sobre onde e quando deixamos de ser quem éramos e quem somos, nada impede
que o passado ― revelado ou silenciado ― interfira no que somos e nos arraste para a
imaturidade. Se pudéssemos medir esse movimento pendular, muito provavelmente
nos surpreenderíamos com o elevado valor do imaturo. Vivemos por tentativas e a
descoberta que não fomos maturo só nos ajuda a conceber melhor o que para cada
um são os princípios da maturidade. O problema se coloca quando, tomados pela
força egocêntrica que tudo corrompe, deixamos de reparar nesse ritmo volátil responsável
em parte pela ordem e funcionamento das coisas. Está aqui um indício para o
mistério estabelecido entre Pietro e Teresa desde o início da narrativa e o fim
do caso amoroso dos dois. Mas aqui também está uma pista que nos empurra a
pensar a maturidade como uma questão coletiva, afinal, as crises que vimos
atravessando são nada mais que resultadas de atitudes egocêntricas e, logo, da
incapacidade de lidar com os complexos do nosso passado ― seja pela proposital
ignorância sobre nossa história, seja pelo esquecimento seletivo favorável aos
nossos interesses individuais e capazes de minar o
coletivo.
Ora, a
obsessão amorosa de Pietro, por exemplo, favorece que compreenda tudo o que com
ele convive, primeiro como objeto ideal, depois como posse, o que
significar dizer que a maleabilidade capital, nem sempre admitida ou admitida
por deslize (é notável quando assume os lucros com o primeiro livro como seus),
participa da negação sobre sua condição egocêntrica. A certa altura, ao pensar
sobre o seu casamento com Nadia, o narrador reflete como nos apaixonamos por pessoas
que parecem verdadeiras, mas que não existem, são uma invenção nossa ― uma
constatação um tanto óbvia se pensarmos no desfazimento da histeria do amor
romântico ―, mas, curiosamente, não consegue assumir uma atitude acerca do rumo
do casamento, mesmo quando percebe que, para sua companheira, a vida
profissional se deixa ressequir pela vida doméstica.
A partir daqui,
é possível perguntar: o que motiva as personagens ao acovardamento (ou à
imaturidade para ficarmos na linha que aqui estabelecemos) em que a simples revelação
da verdade poderia resolver um impasse cujas fronteiras só tendem a expansão
até absorvê-las integralmente de suas idiossincrasias? As respostas podem ser
muitas, mas aqui, vigora o que podemos compreender como a necessidade de nos
apegarmos às circunstâncias para manter em funcionamento o mundo que criamos
sob nossa posse. Admitir que fracassamos parece ser a pior das situações. A isso
chamamos medo. E parece um dos fatores fundamentais, juntamente com a
aparência, no desfazimento da maturidade.
Dessa maneira,
a história de amor (ou as histórias) que constitui Segredos é uma desses
exercícios ficcionais feitos com a precisa oportunidade de nos empurrar para
suspeitar de aspectos que se formam na intimidade das relações pessoais e se
expandem adquirindo feições capazes de nos empurrar para o necessário confronto
com o mundo ou o lugar que aí forjamos. É sempre uma agradável surpresa (ainda
que sempre improvável) mergulharmos nas múltiplas camadas que a literatura
desse italiano nos propõe. Seus textos constituem sempre peças de perturbação
porque nos colocam em confronto com o que muitas vezes segredamos para nós
próprios e, mais tarde, percebemos incapazes de contornar nossos dilemas. Quer
dizer, a intimidade que estabelecemos no enredamento das situações que são uma
parte de todos é, até agora, o melhor da sensibilidade criativa de Domenico Starnone.
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