Ruy Guilherme Barata
Por Pedro Fernandes
Em alguns casos, não fosse a
presença de um nome entre as referências da crítica ficaríamos por conhecer e
cairia no total esquecimento determinados autores e obras, ou ainda, ficaria a
obra circunscrita à lembrança dos mais próximos e do chão onde habitou o seu
autor. Entre essas circunstâncias de limbo ― recorrente mesmo entre
escritores vivos ― está o caso de Ruy Guilherme Barata. Para muitos, sobretudo
os de fora da terra de origem do poeta, o primeiro contato com este nome se
desenvolve a partir da leitura de um texto, nem tão conhecido assim na farta
obra que escreveu, de Antonio Candido. Chama-se “Poesia ao norte” e foi
publicado pela primeira vez quando o jovem crítico havia assumido, há não muito
tempo, uma coluna no importante jornal Folha da manhã¹.
Foi nesta seção, batizada de “Rodapé”,
que Candido deu a conhecer alguns nomes que mais adiante se tornariam fundamentais
na cena literária brasileira, entre eles Clarice Lispector e João Cabral de
Melo Neto. E é justamente no texto propenso mais a Pedra do sono, o
primeiro livro do poeta pernambucano, que se registra também o nome de Ruy Guilherme
Barata. Na verdade, “Poesia ao norte” é uma leitura sobre dois livros: o outro
era Anjo dos abismos. A crítica de Antonio Candido é ácida e por ela
apenas um leitor curioso se dedicaria a encontrar e ler o livro do autor. O
caso é que, agora em 2020, se celebra o centenário desses três escritores
descobertos pela caneta do homem que escreveu A formação da literatura
brasileira. Dos dois primeiros, sabemos, pela projeção alcançada, sobram
lembranças pela data. Mas, e sobre Barata, que nasceu a 25 de junho de 1920 em
Santarém, no Pará?
Sua presença numa casa de
importante peso como a José Olympio, onde publica seu primeiro livro, tem a ver
com o desenvolvimento de sua formação. O filho único de Maria José Parantinga e
Alarico de Barros Barata com nome herdado da admiração paterna por Rui Barbosa
tinha o apoio decisivo de um importante nome da literatura desenvolvida no
Norte do Brasil, Dalcídio Jurandir. Antes disso, a vida foi feita de algum
improviso: foi alfabetizado em casa pelo pai e só aos dez anos vai morar num
colégio interno para dar continuidade aos estudos. É ainda no trânsito por
essas escolas sustentadas por padres católicos quando se forma o interesse pela
literatura, incentivado pelo professor e intelectual Francisco Paulo Mendes.
A dedicação aos estudos leva-o
cedo ao ensino superior. Em 1938, ingressa na Faculdade de Direito do Pará,
ocasião quando aprofunda sua formação literária pelo encontro com obras de
poetas como Federico García Lorca, Pablo Neruda e Maiakóvski (fundamentais para
a raiz engajada que assumirá futuramente como poeta), T. S. Eliot, Mallarmé,
Carlos Drummond de Andrade (para se desatar dos modelos poéticos institucionalizados
que certamente foram os oferecidos na primeira formação).
Quando conclui o curso de Direito,
em 1943, decide não advogar e passa a colaborar com o jornal Folha do Norte;
este é um momento de grande efervescência intelectual em Belém. Uma variedade
de nomes se encontra no Central Café: Mário Faustino e Benedito Nunes são dois
exemplos de figuras com as quais Ruy Barata trava proximidades. E se o clima no
Brasil não era um dos melhores, na história do Pará, reinava rivalidades de
variada sorte, entre elas a violência de caudilho liderada no baixo Amazonas
por Joaquim Magalhães de Cardoso Barata.
O calor político empurra o jovem
advogado e jornalista para a política. Se faz deputado para Assembleia Constituinte
do Pará pelo Partido Social Progressista e Ruy Barata inicia um militância que
entre as pautas principais reivindica a luta em defesa da Amazônia, região tornada
em lugar de especulação e exploração de toda sorte pelos militares, e contra a
acachapante desigualdade social que imperava naquela parte do Brasil. Mais tarde,
é preso pela ditadura e fecham-se seus postos de trabalho: no cartório e como
professor na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará. Neste que
terá sido, um dos períodos mais difíceis, sobrevive escrevendo textos assinados
por terceiros para os jornais e se dedicando a advocacia.
O primeiro livro de Ruy Barata foi
aquele que chegou às mãos de Antonio Candido e lido por ele como pura emulação
da poesia de Augusto Frederico Schmidt. “Vento, mar, noite, morta amada, janelas
abertas ―
não falta nada”, sublinha. É um livro que reúne pouco mais de duas dezenas de
poemas escritos entre os anos 1939 e 1942. Sobrepunha-se, então, mais o homem
que o poeta (ainda não era uma poesia engajada mas a de tom subjetivo marcante
e tendencioso para o simbolismo). Marcava-se, assim uma predileção que escapava
de uma poética em-si, trabalhada com o rigor da palavra, descoberta com
os poetas que lê durante a faculdade. Reina, em absoluto, o traço de raízes
mais profundas, como as dos tempos de estudante dos colégios internos
católicos.
O próximo livro tardará chegar. Só
em 1951, pelas Edições Norte. A linha imaginária. Uma antologia com
vinte poemas. Violão de rua sai em 1962 e é seu trabalho literário mais
engajado, colocando-se, em definitivo, contra os modelos da arte pela arte. Depois,
veio a promulgação da Lei de Anistia e seu retorno às atividades docentes na
universidade como professor. Morreu no dia 23 de abril de 1990 durante uma
cirurgia em São Paulo. Havia ido à cidade para coletar dados sobre a passagem
de Mário de Andrade pela Amazônia. Depois da sua morte, publicou-se Antilogia,
em 2000. A coletânea já havia sido organizada e revista pelo próprio autor e
reúne catorze poemas e correspondências trocadas com Mário Faustino. Em Paranatinga, um livro organizado por Alfredo de Oliveira em 1984 e reeditado seis anos mais tarde registra ainda mais poemas do poeta e o seu trabalho como letrista.
Ainda voltando ao texto de Antonio
Candido no jornal Folha da manhã, é impossível não reparar um fenômeno
curioso: aparentemente, o livro de Ruy Barata chegava com maior poder de
impacto ―
estava publicado pela prestigiada editora José Olympio ―,
enquanto o do poeta pernambucano, por sua vez, veio à luz por conta própria,
numa edição de 340 exemplares distribuída entre amigos e quatro dezenas vendida
como produto de luxo para custear parte dos gastos com a publicação. Mas
sobressaiu este como previsto pela leitura do crítico.
Também intelectual engajado ― suas
reservas para com Pedra do sono são justamente pelo alheamento do poeta
para com o seu entorno, algo que Cabral de alguma maneira corrigirá ―, Candido
não abdicou do critério estético na sua leitura cerrada da obra de Ruy Barata. Se
a literatura de feições sociais é a mais coerente porque fala ao povo, na
concepção do poeta paraense, o que justifica então certo apelo popular exercido
pela obra de um João Cabral, mesmo restrito porque circunscrito a uma
intervenção de outras expressões artísticas para Morte e vida severina?
Tantos anos depois é possível oferecer
uma resposta para esses impasses. Sabe-se que, em literatura, o tempo
é menos cruel com os autores de dicção singular e capazes de imiscuir os dramas
individuais ou sociais na grande bateia dos sentidos universais. Nesse sentido,
não se fala de uma sobreposição do estético sobre o ético ou vice-versa, como
sondou Ruy que se descuidou da lição oferecida pela crítica, mas do equilíbrio dessas
dimensões, o que parece mais bem conseguido na poesia de João Cabral de Melo
Neto. Toda literatura presa demais aos dogmatismos de um campo ideológico está
predisposta ao silêncio do tempo futuro. Isso não justifica certo ostracismo da
obra de Ruy Guilherme Barata, mas o explica. Parece que a vivência literária do
poeta paraense esteve circunscrita num exercício de fazer a palavra não objeto
mas instrumento. Agora, isso não o reduz. Coloca-o apenas noutro lugar onde
vez ou outra é sempre necessário visitar ― sobretudo porque, nesse caso, entre a obra e o
criador se sobressai um homem que fez a vida campo de luta por uma sociedade mais
afeita ao equilíbrio e à liberdade, coisa que sempre (menos ou mais) carecemos.
Notas:
¹ “Poesia ao norte” foi depois publicado em vários outros meios, como na revista Remate de Males, edição de 1999, dedicada a organizar textos dispersos de Antonio Candido, na edição 157-158 da revista Colóquio-Letras e na edição 21 da revista 7faces, número celebrativo ao centenário de João Cabral de Melo Neto. Em livro, o texto aparece coligido por Vinicius Dantas em Textos de intervenção (São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002).
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