Os encantos multifacetados de Ozark
Por Rafael Kafka
Ozark é comumente associada
a Breaking Bad por conta de sua temática ― um homem de meia-idade sem
grandes traços psicológicos um dia se envolve com práticas criminosas sem ser o
estereótipo do criminoso visto em filmes e gerando uma reflexão sobre a
ambiguidade da condição humana por meio da ruptura com o maniqueísmo ainda tão
forte em nossas visões. Essa comparação inclusive me levou a ver a série, pois Breaking
Bad é uma de minhas obras favoritas de todos os tempos ao lado de sua pré-sequência
Better Call Saul.
Ozark entrou em minha vida
numa fase de luto em relação à segunda série, a qual tenho acompanhado com
afinco nos últimos anos. Mas na tentativa de reviver um pouco dos encantos de Breaking
Bad, eu me deparei com um seriado que mesmo no começo tendo dificuldades de
assumir uma identidade própria depois se torna dona de um ritmo próprio de
contar histórias e de uma forma mais fluida de abordar temas mais
contextualizados.
Breaking Bad e Better
Call Saul se caracterizam por um hermetismo narrativo no qual tudo o que se
passa ao redor é de certa forma canalizado pelas lentes dos olhares das
personagens. Em Ozark vemos mais a cidade que dá nome à série, seus
pontos turísticos, características físicas, laços sociais bem como a relação
com cidades próximas.
Assim como as duas mencionadas
acima, Ozark assume um ritmo lento no começo da história, em uma
preocupação clara de desenvolver personagens em todas as suas nuances. O ritmo
acelerado aparece na série já no final da segunda temporada e em toda a
terceira, o que pode tornar a sequência dos episódios algo bem irritante por
muito tempo. Mas a produção assume um de ar de independência bem interessante
em relação ao ritmo acelerado cobrado pelas audiências extasiadas
contemporâneas e isso nos faz ficar presos buscando entender os produtores
esperam mostrar na sequência do que é exibido.
Essa demora no começo também faz pensar
na dificuldade em romper laços com Breaking Bad, como fosse preciso
afirmar uma estrutura narrativa que negasse toda a influência da história de Walter
White na de Marty Byrde. Seja qual for a teoria, aos poucos Ozark ganha
vida própria e mostra temas não abordados na série supracitada, pelo menos não
com igual profundidade.
Ozark consegue explorar as
relações familiares, os jogos de interesse entre diversas organizações
criminosas, as múltiplas facetas das personalidades das pessoas, as questões de
saúde mental etc. É como se aqui os temas abordados na série criada por Vince
Gilligan não assumissem apenas um ar existencialista, mas também dialogassem
com outras áreas do saber humano, como a contabilidade, os filmes de máfia e a
psiquiatria.
A partir da segunda temporada,
fica difícil definir quem é bom e mau na série, as fronteiras se tornam turvas,
confusas, até mesmo inexistentes. Mesmo com um ar mais didático, Ozark,
assim como suas séries irmãs, assume uma narrativa fluida nesse sentido e
começamos a observar como o mundo do crime no audiovisual é um espaço
privilegiado para se discutir uma gama de temas. Concomitantemente, não há uma
resposta pronta para as problemáticas apresentadas e o enredo começa a assumir
um ar mais desafiador, deixando lacunas a serem preenchidas pelo telespectador.
Na terceira temporada há a adição da
questão mental com Ben, irmão de Wendy Byrde, companheira de Marty. Ben é
maravilhosamente interpretado por Tom Philney e promove uma reflexão
interessante sobre o conceito de desajuste. Em uma sociedade como a mostrada em
Ozark, o desajuste chega a ser uma virtude. Todavia, Ben precisa se
encaixar de alguma maneira e nele vemos bem o drama do sujeito cujo tratamento
afeta sua intensidade de vida, mas é imprescindível para uma rotina normal.
Ben sofre de transtorno bipolar e
seus choros e longos monólogos trazem todo o amargor existencial que pode ser
experienciado por quem sofre de problemas mentais e não tem o devido
acolhimento. Os seus surtos trazem interessantes momentos na série e se revelam
uma ideia genial da Netflix em sua tentativa de abordagem social de temas
pontuais. Afinal, como uma das personagens da série diz, o mundo do crime não é
um espaço para doenças mentais, sendo um meio bem conservador.
Isso pode ser reparado também
acerca das obras que falam desse ambiente. Mas a produtora, que em alguns
momentos quer abordar tais temáticas de maneira muito colorida e alegre, aqui
acerta em cheio e nos mostra uma consonância perfeita entre o ambiente do mundo
gângster, mesmo que mais high-tech, e as perturbações trazidas pela
mente humana adoecida ― ou que se sente adoecida.
Ozark exige paciência no
começo, mas recompensa a espera com um enredo cheio de densidade poética e
existencial. Para aqueles que procuram uma boa história sobre como o ser humano
é imprevisível e indefinido em sua essência, com boas atuações e belíssima
fotografia e trilha sonora, é recomendável. Sem dúvida alguma, das grandes
obras do audiovisual dos últimos anos que sabe usar a crise de identidade a seu
favor para criar um jeito próprio e charmoso de ser.
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