Os diários de Sylvia Plath: uma leitura tortuosa

Por Rafael Kafka


Sylvia Plath em registro do amigo Gordon Lameyer, 1953.


Diários de autores famosos são obras que nos servem para indicar diretrizes de investigação de processos literários os quais se conectam às existências dos escritores por nós analisados. Obviamente, não defendo aqui uma visão do processo literário presa aos elementos biográficos de uma dada existência, o que seria empobrecer demais a literatura. Mas em alguns contextos, vida e obra estão tão conectados que é impossível não se pensar em mecanismos de entendimento mútuo.

Sylvia Plath é um exemplo perfeito dessa situação. A autora cometeu suicídio muito jovem e é autora de um romance muito interessante chamado A redoma de vidro, obra que revela muito a dimensão de abuso por ela sofrida de um ambiente patriarcal brutal. Na figura de Esther, Plath conta a história de uma jovem moça mutilada entre o sonho de ter uma carreira bem sucedida enquanto contém dúvidas sobre o futuro ao lado de uma família tradicional.

Esse tipo de mutilação é algo presente em diversas páginas dos diários de Plath. A autora em diversos momentos escreve longos parágrafos fragmentários os quais revelam a dimensão de si cindida entre a mulher livre e a que deseja o lar americano conhecido por todos nós das obras fílmicas. No começo do livro que compila seus relatos, esse tipo de situação é mais comum, ao mesmo tempo em que histórias de abusos sexuais surgem revelando todo o terror que Sylvia começa a adquirir dos homens.

O modo de escrita nesses momentos lembra por demais a escrita romanesca e há muito dos poemas também. O fluxo de consciência toma conta e uma variedade de simbolismos é usada no sentido de reforçar os efeitos produzidos na consciência da autora pelos fatos narrados. Aos poucos, surgem autocobranças cada vez mais intensas a respeito da produção de trabalhos literários e começamos a entender que os diários na verdade viraram uma espécie de produção literária improvisada.

São neles que Plath consegue colocar em prática o seu labor de uma maneira que ainda não consegue nos livros e nos poemas e contos enviados a diversas revistas. Aliás, os fracassos em obter aprovação desses periódicos são algo que afetará demais a psique de Plath, a qual ao longo dos anos, mesmo jovem, começará a se ver como alguém que viu seu tempo passar. Por conta disso, os diários se mostram com uma certa dimensão de terror psicológico, pois vemos a mente de Plath se deteriorar ao longo dos anos.

Como tentativa de controle, ela cria lista de mandamentos, metas, estratégias de leitura e de trabalho, esquemas de ação e outros recursos para conseguir se manter raciocinando e produzindo o seu trabalho. Ao mesmo tempo, em diversos momentos a obra assume um aspecto descritivo focado no ambiente externo, como uma tentativa da autora de se manter ligada ao mundo real sem se perder tanto em devaneios. A escrita se torna repetitiva como ocorre em boa parte dos diários, mas aqui penso que o elemento primordial de repetição não são os fatos do cotidiano em si, mas as tentativas de elaboração, em um sentido psicanalítico, do que ocorre consigo e ao redor.


Em diversos momentos desde o começo do livro, o vocabulário psicanalítico dá as caras como um recurso Plath de desbravar as suas neuroses. Há momentos em que ela explora o rancor pelos homens a partir da tradicional ideia de inveja ao pênis trazida por Freud e outros autores. As mulheres teriam esse rancor em si por conta da liberdade que os homens têm e elas não e isso se demonstra mesmo dentro do casamento. Ao mesmo tempo, ela aborda demais a relação com a mãe como uma forma de enxergar em si um sentimento de culpa e de insatisfação pessoal do qual não consegue se livrar. A autora usa mesmo registros de sua terapia após a primeira tentativa de suicídio como uma estratégia de desvendar o que se passa consigo, ainda mais após a primeira tentativa de suicídio.

O casamento com Ted Hughes também é explorado nesses diários, mesmo que de um jeito mais tácito.  Sylvia fala de como Hughes consegue um grau de sucesso em aprovar seus textos que ela não consegue. A priori isso soa como admiração, mas após um pouco surgem elementos de ressentimento na sua escrita. Enquanto Hughes voa livre pelos mares literários, Sylvia se vê presa a uma rotina de dona de casa que drena ainda mais suas energias e cada vez mais seus planos e esquemas se mostram obsessivos com a ideia de melhorar sua produção e seu ritmo de aprovação de trabalhos.

Não é fácil ler os diários de Sylvia Plath. Mas a leitura é necessária para se entender ainda mais o processo mental que a levou tanto à produção de obras importantes na prosa e na poesia, quanto ao seu fatídico suicídio. Além disso, em tempos nos quais o debate sobre suicídio volta a ficar em voga, com todos em tese confinados com medo de um vírus assassino, mergulhar nos meandros de uma psique como a da autora é um apelo a que pensemos com mais urgência sobre os temas da saúde mental, em uma sociedade como a nossa que cobra demais, em especial das mulheres, produtividade em diversos setores de sua existência.

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