Desonra, de J. M. Coetzee

 Por Pedro Fernandes



 
É recorrente entre os leitores de J. M. Coetzee que uma de suas principais frentes criativas reside em revelar a complexidade étnica-social de seu país natal com o acurado interesse de alguém em distanciamento mas incapaz de negar os estreitamentos da pertença. É possível que este conceito seja derivado de Desonra uma vez ser este o romance do escritor sul-africano mais provocativo nesse sentido, principalmente se atentarmos para as implicaturas entre campo e cidade, ou mesmo certa dificuldade entre as leis pessoais e o estamento jurídico herdado, como se sabe, dos modelos ocidentais. Nele repousa a síntese de perfeita e radical impotência do sujeito, capaz de nos colocar entregue a certo fatalismo do fim, com todas as características do ocaso, a ruína, a perdição, a usura, a penúria, o opróbrio, a injustiça, marcas que transformam o futuro numa impossibilidade, o recomeço numa utopia inviável. Isso significa que este lugar forjado pelo romancista não é exclusivamente uma metonímia sobre a África do Sul, mas uma fábula sobre as profundas crises que nos atravessam no crepúsculo de uma civilização ainda incapaz de responder racionalmente pelos problemas nela instaurados.
 
Nessa conjuntura, o romance sequer deixa de se fazer um questionador sobre as fronteiras determinantes de sua forma enquanto tradição. É nesse sentido que Desonra se aproxima explícita e implicitamente de tantas obras singulares da literatura, fazendo-se acreditar ora como um diálogo identificador quando o que busca é uma alternativa desalienadora do estabelecido porque só assim pode encontrar uma saída para os dilemas agora impostos numa era de Babel como a que atravessamos. Não seria exagero afirmar que todo estratagema narrativo ― magistral, sublinhe-se ― encontra-se nesse princípio a meio caminho modernista e pós-modernista, que é o de dialogar com o estabelecido no intuito de nele se infiltrar para repensar do seu interior novas formas. Mas isso é sobre o literário, o lugar pelo qual transitam e se reflete todas as circunstâncias do seu entorno. Estas, o lado de fora do romanesco, para nomear um dos lugares interiores do literário, parece que as expectativas são mais dramáticas do que pensam os alimentados pelas correntes desse positivismo-blasé que se infiltrou entre nós, talvez a consequência mais perversa depois daqueles tempos que sonhávamos mais próximos da barbárie com a transformação das histórias coletivas.
 
Três aproximações se mostram na superfície narrativa de Desonra. A primeira é com Lolita, de Vladimir Nabokov ― um romance magistral que ousou assinalar o literário como espaço pelo qual transitam o melhor de nossas perversidades, sem, é claro, reduzi-lo a uma cartilha de perversões; se elas se mostram vivazes aqui é porque o grande interesse da arte, ao nos revelar, nunca é o de impor a maquilhagem que outros campos que nos explicam impõem, sobretudo, estes que nos dominam, o da moral, o do religioso e do político para citar três deles. O episódio de envolvimento sexual de David Lurie com uma de suas alunas é o limite dessa proximidade. É a relação de um homem de meia-idade com uma joveníssima que instaura uma rotina de desordem pressuposta do fim dos encontros regulares que esta personagem mantinha há muito com uma garota de programa todas as tardes de quintas-feiras. Lurie é um professor de linguagens num tempo quando o humanismo das letras foi reduzido ao tecnicismo da escrita, mas é um apaixonado pelo romantismo inglês ― o suficiente para continuar investindo na educação pelo literário e se deixar tomar pelos impulsos do desejo.
 
O desajuste com um sistema cada vez mais marcado pelo sintetismo, pelo esvaziamento do pensamento intelectual e crítico, pela incapacidade de se situar fora do regime político ― até mesmo os afetos ―, pela hiperinflacionamento do medíocre, caracteres que contribuem no embate das relações de poder no âmbito profissional ao ponto de colocar na ruína todos aqueles que se contrapõem de uma forma ou de outra a este regime, estabelecem diálogo com certa vertente temática do romance de intriga acadêmica, qual um A marca humana, de Philip Roth ou Stoner, de John Williams, para citar dois dos mais próximos aos leitores brasileiros. É claro que o imbróglio sexual de David Lurie e a pequena Melanie Isaacs não ficaria por isso mesmo; nesse contexto (e aqui se inclui o literário), quaisquer situações fora da ordem estabelecida, ainda que uma prática corriqueira em toda parte, como as exercidas por violadores não podem sair impunes ou justificadas pelos apanágios do desejo romântico que embalou engates amorosos de natureza diversa dentro e fora da literatura. Nesse embate, a personagem assume-se numa pose radical o suficiente para encurtar do espetáculo vexatório assumindo-se integralmente o culpado das acusações e retirando-se do cenário de execução pública.
 
Inicia-se o drama do fim, vivenciado por Lurie com certas cores do quadro acusatório levantado contra a filha: uma tratativa de se redimir das forças impositivas do instinto mesmo que o preço a se pagar seja o do sacrifício com a vida. Para ficarmos nos enlaces amorosos, a grande especialidade de bastidor que o aproxima dos dons de um Don Juan, a estadia no sítio de Lucy, permite-lhe o envolvimento com uma mulher casada de meia-idade pela qual David faz aflorar seu exacerbado incômodo com mulheres integralmente entregues ao desleixo intempestivo do tempo sobre o corpo. O encontro sexual desenvolvido, ao passo que o torna em passagem o amante de Bev Shaw, recupera na vida rural desse pequeno lugar em Cabo Leste, o episódio amoroso de Emma Bovary, não pressuposto mas explicitado intertextualmente pela narrativa.
 
O leitor terá notado que os três casos referidos funcionam como que aproximações do romance de Coetzee com peças ou temas que se fazem reiterativos no romance tradicional. Mas, Desonra não se inclui em nenhum deles integralmente. Se repararmos especificamente no diálogo com Madame Bovary logo entenderemos que o romance ora lido se preocupa de corromper o que podemos designar como o que se fossilizou na história do romanesco. Desorna retoma a obra-prima de Flaubert com tratamento irônico, por vezes pastichizador: o amante decadente enovelado sem paixão e afetos (por uma pura compaixão ou baixo instinto de macho em crise) com uma mulher que nada tem do cariz da bela burguesa eivada das emulações romanescas construídas pela leitura de frivolidades amorosas. Quer dizer, quando o grande romance do realismo francês é retomado é pela veia desconstrutora de certo idealismo fabricado naquele caso pela consciência feminina de Emma.



A escolha de David Lurie de se integrar na rotina repetível e à primeira vista fora dos sentidos originais que o dominavam, embora pareçam contradizer seu acristianismo, reveste-se de um tom talvez experimentado pelos românticos que ele tanto admira. O sacrifício é de alguma maneira uma reforma de certo heroísmo frustrado com a inquestionável decisão de não reivindicar um pedaço que seja na propriedade construída pelo longo itinerário acadêmico esfarelado por que, no fim do caminho alguém achou prudente condená-lo por uma conduta que feriu ética e moralmente os tais princípios da ordem de convivência profissional. O reparo buscado, entretanto, é para si e não para a comunidade que o condena; Lurie não pactua do princípio de redenção porque entende que, como uma persona trágica, é impossível conter o que é impulso corporal, ainda que sua estadia com a filha seja integralmente marcada pela remissão dos instintos. Possivelmente, até mesmo o sexo desenxabido, sem quaisquer mantimentos eróticos do envolvimento com Melanie, se inclua nesse Hades de purgações.
 
Sua desistência da cômoda e repetível vida de acadêmico chega-lhe com o interesse de escrever uma obra, fora dos limites da crítica, em que possa reanimar os anos finais de Lord Byron. É aqui que Desonra estabelece seus diálogos mais íntimos com a grande literatura, visto que, a poesia e as últimas linhas da biografia do poeta romântico se confundem com alguns instantes da narrativa que compõe o romance, além, é claro, com o destino de sua personagem principal. Envolvido em certos escândalos na fechada Inglaterra de seu tempo, Byron decide percorrer a Europa e coloca em prática o fascínio que a Itália cobria os interesses dos românticos, vive aí sete anos, até seguir para a Grécia, onde se junta à guerra contra o Império Otomano na independência deste país. Não é preciso contar como narrativa de Desonra incorpora essas linhas na construção do destino de sua personagem principal ― esta é uma missão para o leitor curioso que for à leitura do romance.
 
À medida que avança na ideia de escrita sobre esse instante um tanto nebuloso na biografia do poeta de Don Juan e de A peregrinação de Childe Harold, David encontra que a obra ideal capaz de o revelar é “uma peça de câmara sobre amor e morte com uma jovem apaixonada e um homem mais velho um dia apaixonado”. Ora, todo o desenlace do romance de Coetzee é proveniente disso: os primeiros capítulos de Desonra podem ser lidos como a matéria desse trabalho que preenche o imaginário criativo de David Lurie, ganha alguma forma no papel, mas como princípio fundamental do romance, resulta na lista dos fracassos. O crepúsculo dos dias dessa personagem não demora a intervir continuamente nesse território criativo e, assim, o criador se distancia do todo da ideia original, testemunhando o romance sobre a falibilidade da literatura de confissão ou estreitada demais com a vida imediata.
 
Ao dizer isso parece se estabelecer um tom contraditório ao do começo destas notas. Mas não. O que fizemos foi tentar expandir a experiência de leitura do romance fora do óbvio. Os impasses sociais, certamente reparados numa época de leituras que primeiro atentam para essa superfície do texto se mostram em toda a narrativa: o ataque feroz do politicamente correto que, se na medida certa pode reconduzir a práticas coletivas para longe de destinos que não condizem com este complexo denominado humanidade mas pelo excesso pode empurrar todos para o mesmo lugar de condena; os impasses do indivíduo com o coletivo; a crise dos enlaces familiares, incluindo-se a relação pai e filha; a violência decorrente da ganância, da inveja e das discrepâncias de classes; o achatamento dos saberes pelo imperativo da técnica; as crises do modo de vida rural e urbano; os dilemas da lei de convivência verbal e jurídica; a atuação das forças de poderes; entre outras. Cada aspecto pode implicar uma leitura que justifique o romance dentro e fora dos limites contextuais da África do Sul.
 
Mas, qualquer dos caminhos escolhidos resulta em passar pela forja do estético. Desonra reafirma à sua maneira o que toda a literatura prova com sua existência mas que agora se quer por fina força ideológica de tempo desfazer. Demonstra-o pela impossibilidade de negar o diálogo entre o ético e estético porque fundamental para alcançar parte significativa das múltiplas camadas do tecido romanesco, mesmo quando essas relações se demonstram indiscretas. Não é gratuita a vivência pelo erudito clássico deste David Lurie, nem é apenas um distintivo da persona, nem dos impasses do trânsito entre tradição e modernidade ou outros pares dicotômicos fáceis de designar; é um elemento que contribui para o funcionamento da narrativa e favorece na inventio que estabelece este romance entre os grandes objetos moldados pela criação literária. Coetzee prova que qualquer história serve para um bom romance, mas seu criador não precisa somente da técnica ou da eleição pelos primeiros tópicos das pautas vigentes seja para concordar ou discordá-los. O romance está numa ponta fora disso porque sua natureza se ampara na inteligência intelectual do criador ― o grande território não pisado pelo protagonista de Desonra e certamente o maior dos seus fracassos.
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596