Damas da lua, de Jokha Alharthi
Por Joaquim Serra
Apesar do arcaico mundo ficando nas tradições, a escrita de
Jokha Alharthi em Damas da lua é ágil e moderna. Os recortes das vidas
são feitos através do registro coloquial de seus personagens, dos ditados populares
que viram máximas sintetizadoras e regem comportamentos e pensamentos, do
passado e do presente narrativo. Damas da lua intercala entre um
narrador em terceira pessoa, este, através do indireto livre, mostra o que
pensa as personagens, e a narrativa em primeira pessoa de Abdallah, marido de
Mayya.
Mayya é uma costureira destinada a se casar com o filho de um
comerciante. Esse tal destino, que força a vida e os laços, é feito por um
contrato entre seus pais. Mayya não ama o marido. Abdallah, o filho do
comerciante, ama a mulher e se preocupa com os filhos. É dele a voz em primeira
pessoa que recorda em fragmentos as longas barbas do pai, a demência do velho
que, antes da morte com seu discurso e perdido no tempo, relembra e grita para
o filho punir o escravo ladrão. Ou, também pela voz de Abdalla, sabemos das
dificuldades em criar os filhos em um mundo que está em constate mudança. O
outro tempo de suas lembranças remontam um país muito antes do mundo
globalizado, muito antes daquele que já começa a brotar nas atitudes de
Abdallah e Mayya. Parte da narrativa se passa na vila de al-Awafi, em Omã, espaço
ainda muito enraizado nas tradições, diferente da moderna Mascate.
Abdallah é jovem e já é diferente do pai. Frequentou a escola
mesmo depois de grande e agora aceita o nome da filha, escolhido por Mayya, que
causou escândalo na família; “onde já se viu alguém colocar o nome de London na
filha? É nome de lugar, em país cristão”, diz a mulher do tio de Mayya. A
família aparece como um escudo das tradições, guardiões de uma religião, de um
decoro que envolve roupas, comidas, comportamentos. Eles são uma voz que é
quase um coro uníssono. Ao saber do nascimento da filha de Mayya, essa voz diz:
“é a primogênita e é menina e menina cria seus irmãos, que seja seguida por dez
meninos”.
Mas é também de Abdallah a insegurança no casamento. Diante
do contrato de casamento feito pelos pais, Abdallah se pergunta se Mayya o ama?
Onde está a mulher com que se casou? Por que mudara tanto? A insegurança do
patriarca, entre a melancolia da lembrança e o novo mundo que se apresenta, já
revelam um homem muito diferente do pai. Abdallah fala muito também da própria
estrutura do romance. Ao mostrar como vivem as mulheres naquela cultura, não é
difícil para o leitor supor o porquê da narrativa de Abdallah ser a única em
primeira pessoa. Quem poderia ter voz nesse mundo?
O conflito de geração está nas mínimas tensões delicadamente
descritas por Jokha Alharthi. As cenas saltam de uma estrutura social fixa que,
sem alarde, constroem o dia a dia de todos. De um lado uma cartilha para o
mundo feminino, que a mãe e as outras mulheres, insistem que Mayya cumpra tudo
que é imposto, a religião que serve de base para as frases prontas, exemplos de
comportamentos e medos. Do outro lado, a vontade de ir à escola, de aprender o
inglês do mundo aberto, o impulso cosmopolita.
Já o narrador em terceira pessoa seleciona as vozes múltiplas
para montar esse cenário. Ora se cola em Mayya, no bebê que segura no colo, na
resposta que não pode dar às outras mulheres por causa das tradições, ora se
cola na irmã ainda não casada, Assmá, que não pode escutar a conversa de mulheres
casadas, mas são os livros que, muito mais que um refúgio, ajudam Assmá a saber
do mundo que não poderia saber. Ora também passeia por cada uma delas e vai
colorindo, de maneira sutil muitas vezes, um quadro polifônico.
Damas da lua é um livro delicado e algumas de suas reflexões parecem
versos soltos. Mas sua aparente falta de unidade, de vai e vem, oferecem ao
leitor uma tensão entre o novo e o arcaico, a formação incompleta de muitos de
seus personagens, a falta de escolha mesmo no século das efervescentes
discussões e caminhos alternativos. Pulsa nele uma poesia própria, que parece
às vezes deixar os temas leves, mas ali, o leitor atendo verá que subjaz uma
tensão histórica, um discurso interrompido justamente por pedir mudanças, que
coloca no centro vidas desconhecidas e desarticuladas de um mundo de decisões e
poder.
O livro foi vencedor do Man Booker International Prize 2019 e
contou com a excelente tradução direta do árabe da tradutora e professora Safa
Abou-Chahla Jubran, que já verteu Dois Irmãos, de Milton Hatoum, e já
traduziu diversos livros para o português. Damas da noite conta ainda
com um mapa de personagens já que, como frequentemente acontece com a
literatura russa, o leitor brasileiro não está acostumado com os nomes e suas
variantes.
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