Carnaval de engenho
Por José Lins do Rego
O mestre Paizinho chegara para falar com meu avô. Era o mestre de música do Pilar e o presidente do clube “Os filhos da Candinha”. A conversa era curta. Ele dava a lista, o velho assinava os cem mil réis e falava mal dessa história de vadiação de carnaval. Deviam acabar com aquilo. Homem de respeito não devia andar metido com danças, em brincadeiras de entrudo. O Chico Xavier precisava abrir os olhos, tomar providências. Havia gente na vila que só pensava em carnaval, que andava perturbando o sossego dos outros.
O mestre Paizinho ouviu tudo
calado. Depois o velho entrava e voltava com os cem mil réis.
— Tome lá, dizia ele, mas não
apareçam aqui no engenho. Não quero saber de patifarias. O ano passado vocês foram
abusar do Lula de Holanda. Se souber de coisa semelhante, mando o Chico Xavier
metê-los na cadeia.
Depois o mestre Paizinho vinha
conversar com as minhas tias. E falava do carnaval do Pilar. A coisa andava
muito animada. O clube dos negros, do pessoal da irmandade do Rosário, ia
mandar buscar um terno de músicos em Sapé, para ver se passava a perna nos
“Filhos da Candinha”. Mas qual, o clube estava este ano de primeira ordem.
Tinham uma marcha que era uma beleza. Os versos eram da lavra do doutor Isaac, o
juiz, e a música, não era porque fosse sua, era boa mesmo. O coronel não queria
que eles viessem ao engenho, mas com ordem das meninas estariam no domingo com
todo o pessoal, na sala de visita.
E afinal chegava o carnaval do
Santa Rosa. Tínhamos medo dos mascarados que passavam pela estrada. Todos
sabíamos que aquela negra de chicote na mão, de larga saia branca, de máscara
preta, era o José Luís, o pãozeiro de S. Miguel, aquele amarelo José Luiz, que
de tão amarelo fazia pena. Mas quando o chicote estalava na estrada, corríamos
para dentro de casa.
— Que meninas bestas, gritava a
negra Generosa, vocês não estão vendo que aquilo é o José Luiz?
Ficávamos tremendo. Depois
apareciam os outros mascarados. O filho de seu Firmino Carpina, que todos os
anos aparecia vestido de doutor, de fraque, chapéu coco. As negras o cercavam.
E o pobre, falando fino, respondendo a todas as perguntas, receitando a toda
gente. E os meninos, agarrados às saias, temendo o doutor de nariz comprido e
fraque rasgado. Vinham os mascarados a cavalo, gente de outros engenhos. Então
começava a luta para se descobrir. Os filhos de Lucino do S. Vicente se
deixavam descobrir à primeira vista. Mas apareceu um vestido de príncipe e deu
trabalho. Ninguém sabia quem era.
— É o seu Lola, é o seu Rubens do
Maravalha.
— E não havia jeito. Mas José
Guedes, esteireiro, apareceu:
— Estes estribos de prata é de seu
Henrique do Oiteiro.
E o príncipe se desencantou.
As negras preparavam filhós. O
velho José Luiz, sentado no alpendre, olhava o tempo, os altos que as primeiras
chuvas cobriam de verde, e o gado gordo que vinha entrando para o curral. Era
de tarde. De repente chegava um moleque com a notícia:
— Os “Filhos da Candinha” já
tinham passado no Santa Fé.
E em pouco o pistão do mestre Paizinho
enchia a paz rural do Santa Rosa de um grito de guerra. As negras corriam para
a porta, as minhas tias se riam, e o velho José Luiz gritava:
— Maria, manda abrir a sala de
visita.
E levantava-se para olhar a
cambada do Pilar que de bandeira em punho invadia o pátio da casa-grande.
Os figurantes com os balizas na
frente faziam manobras diabólicas. A marcha do mestre Paizinho arrebatava.
Corria vinho para os músicos, para o clube todo. O velho ficava olhando para as
danças. No meio dos dançarinos estava o seu filho natural, Fausto. Era um dos
chefes. O meu avô olhava bem e dizia sempre:
— Só dá mesmo para isto.
As minhas tias conversavam com o
mestre Paizinho. Ouvi bem a tia Maria dizendo:
— No carnaval da Paraíba não vi
clube mais bem ensaiado...
Depois os “Filhos da Candinha” iam
se embora. Vinha chegando a noite. Saía o clube de estrada a fora com a marcha
do mestre Paizinho arrastando gente.
E o Santa Rosa ficava triste outra
vez. Voltavam os sapos a cantar na lagoa.
*
Esta crônica/ conto de José Lins do Rego foi publicado inicialmente na edição de 22 fevereiro de 1941 de O Cruzeiro. O texto é uma dessas raridades possíveis de acessar online no rico trabalho de digitalização do acervo da Biblioteca Nacional. Ao tematizar um acontecimento tão intrinsecamente fixado na nossa cultura a partir de um lugar pouco provável — o interior profundo do Brasil —, o escritor reafirma a predominância do carnaval entre nós e ressalta as resistências que esta manifestação popular sempre encontrou entre os meios de poder e controle social. Ao tratar da realização do entrudo mesmo nas circunstâncias hostis, o contista finda por reanimar a essência democrática do carnaval: a de subverter, mesmo que temporariamente, a rudeza do mundo sério.
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