A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha
Por Pedro Fernandes
Numa passagem singular das muitas
que formam a entrevista de Clarice Lispector ao jornalista Julio Lerner,
veiculada em 1977 no programa Panorama da TV Cultura, que foi também a última
e a única em vídeo, a escritora, depois de confirmar que “o adulto é triste e
solitário”, é confrontada com a pergunta sobre quando começamos a nos transformar
para esse destino. Para ela, “isso é segredo” mas calcula que “a qualquer
momento da vida, basta um choque inesperado e isso acontece”. O primeiro
romance de Martha Batalha pode se inscrever no interior de uma tentativa por
encontrar ou capturar esse instante e demonstra que a existência é um carrossel
de pouca e quase nenhuma alegria e se viver é uma dádiva, as dívidas adquiridas
para levar adiante uma vida, quando dela alcançamos a consciência, são tantas
que nem mesmo toda uma eternidade seria suficiente para pagar.
Dito assim, se sugere que A
vida invisível de Eurídice Gusmão é um melodrama dos baratos; um livro
feito de suspiros, desenganos, dores e mortes. Todos esses elementos, sem
seguir propriamente essa ordem, estão em toda parte do romance. Entretanto, um
cauterizador da lágrima tudo converte para o riso; não o riso aberto, que aqui
nada é comédia e sim uma maneira bem humorada de contar. Um meio-riso. Sua
narradora oferece um pastiche da via-crúcis de viver; por certo distanciamento
assumido para com o relato nada lhe resta do mínimo envolvimento emotivo sobre
as duas vidas e as muitas que correm à sua vista. Quer dizer, há muito de um
deus sarcástico que, incapaz de sentir dor, entende que a desdita humana é puramente
parte natural da existência.
As duas vidas são as das irmãs
Guida e Eurídice Gusmão; a primeira deserdada depois de fugir de casa para
viver o tórrido amor assumido com um homem da alta classe no Rio de Janeiro,
que, primeiro renega suas origens e depois toma um destino indeterminado e a
segunda, protagonista do romance, atravessada entre a necessidade de ser livre e
a igual necessidade de atender aos comandos da ordem social para as mulheres
numa sociedade dos anos 1940. A narradora, ao se centrar na vida de Eurídice
não perde a oportunidade de investir, sempre en passant, nas múltiplas
figuras, sobretudo femininas, que atravessam seu caminho; todas elas estão
sempre em curso por estabelecer um teto todo seu. Nem mesmo Eurídice
feita a boa dona-de-casa casada com um homem sobre o qual consegue administrar certa
atitude de controle escapa desse mesmo tratamento.
O que o romance de Martha Batalha acompanha
é o tornar-se mulher, condição em parte formada por uma complexa variedade de dispositivos
sociais e culturais. Isto é, nesse caso especificamente, a solidão e a tristeza
do adulto se é produzida por esses interventores que, pouco a pouco arrastam
essa mulher para um Hades. Este romance, no mesmo grau de se rir ―
no sentido de tornar leve porque comum a arbitrariedade das existências
investigadas ― investe pelo lado oposto do mito. Condenada a este submundo,
onde se encontra com o drama de outras tantas mulheres, incluindo sua própria
irmã, não existe nenhum Orfeu interessado em salvá-la desse destino; este
encontra-se entretido demais com a tarefa de mantê-la onde está. A cada avanço
de Eurídice em direção ao mundo dos vivos, este Orfeu torna empurrar de
volta seu amor, um gesto que se repete desde quando criança abdica do sonho de integrar
um grupo de alunos do maestro Heitor Villa-Lobos que vê na menina o futuro com
o qual, sem saber ao certo, passa buscar por toda a vida, seja na cozinha, seja
na alfaiataria, seja, por fim, na escrita.
À medida que sabemos melhor sobre a
vida de sentido único uma vez que as alternativas para outros caminhos sempre deixam
de acontecer porque seus sentidos ou se invertem ou se desfazem sabemos como
essas determinantes masculinas se instauram como artefatos autoimpostos às
mulheres; vide o exemplo da vizinha de Eurídice, toda atenta de olhos e ouvidos
ao seu entorno e interessada em observar pelas lentes do perverso, do obscuro e
do fatal os destinos alheios. Zélia é feita “um simulacro de ornitorrinco”, nas
palavras da narradora. E é sempre em qualidade zoomórfica no que se
metamorfoseiam essas mulheres, se não explicitamente como no caso citado,
indiretamente pela radicalização do defeito físico ou o acentuado da
fisionomia, como se o universo feminino fosse uma imensa arena de mongas. A
própria Eurídice engorda até permitir no marido a perda dos apetites sexuais e
assim se livrar do destino de mãe parideira e apostar nos seus próprios sonhos.
A leveza para histórias de
matérias tão tristes é feita de pelo menos três estratégias: uma evidenciada nesse
tom de certeira ironia se repararmos no apodo com o qual designa e descreve
Zélia; outra pela maneira objetiva, capaz de organizar no romance uma variedade
de vidas e tipos sempre em pequenos blocos de texto; e, por fim, certa agilidade
que não permite aos sentidos do leitor se prender num detalhe específico, visto
que, no dobrar de uma frase pululam outros de igual natureza. Isso dá ao romance
o movimento de uma crônica, o que, se repararmos de perto é o tecido que o envolve.
Todos esses recursos mencionados são notáveis no registro cronístico, sempre
interessado no imediato, no comezinho e por despertar a atenção do leitor para
um ponto mais elevado: neste caso, a longa vida de mesmo aspecto repetível das
muitas mulheres de um tempo (e de sempre) que estabelecem suas existências em
torno da viabilidade do cotidiano doméstico, feito quase sempre do marido e dos
filhos.
Outro aspecto, é revelado na
maneira como a narradora infringe o distanciamento, encarnando uma versão
ampliada da consciência das suas personagens, valendo-se da volição interior
para compor um pensamento, uma fala, tudo no interesse por oferecer,
objetivamente, imagem bem-acabada de suas personagens. Apesar de não existir
nada de novo nesse estilo, há um detalhe impossível que deixemos de reparar: a
maneira como a narradora se apropria do desfecho de uma ideia, manifesta por
uma palavra-chave, uma expressão, e a partir disso amplia o que se conta e os
sentidos sobre o que se conta. É uma operação que prescinde da mesma agilidade
com que conta, mas de um acurado sentido para o funcionamento da linguagem e
sua natureza de nomear. Poderíamos caracterizar essa técnica de acolcheteamento,
se vislumbrarmos, para recuperar um período áureo às escondidas de Eurídice, a
costura, pelo uso dos colchetes numa roupa: é pelo engate que a peça ganha
unidade e funcionamento. E é esse o procedimento utilizado na narração, desde o
menor elemento à estrutura do próprio romance.
A rapidez com que se conta parece
se firmar ainda por um sentido maior sobre o que se conta: a insignificância dessas
vidas invisíveis pautadas no eterno movimento de repetição e do enfado que
determina o fazer doméstico. É óbvio que ao ressaltar essas rotinas com as várias
tentativas de fuga dessas mulheres desse destino sisífico, o romance alcança
outro propósito, o de revelar como essas pequenas rotinas trabalham para o
funcionamento de uma engrenagem maior e mais complexa, a própria sociedade.
Afinal, sempre é fundamental perguntar o que seria desse funcionário de banco,
como é Antenor, sem a contínua faina da ordem da casa praticada por Eurídice,
ou da aprendizagem dos filhos que acordam para ir à escola todos os dias e da
mãe dependem para aprenderem além das tarefas trazidas para casa, a vida. Com essas
perguntas poderíamos ampliar o problema: quantas donas-de-casa são necessárias
para a ordem de um país? E, por que, mesmo assim as tratamos com esquecimento,
o silêncio, o desdém? Uma personagem de outro romance, este publicado em 1901, dizia
que o mundo foi feito para as mulheres porque afora o simples serviço doméstico
restava-lhe apenas gozar do seu ócio. Estas palavras, ditas obviamente não com
essas mesmas letras, mas por um homem, parecem responder sobre o mundo contínuo
de vidas invisíveis como a de Eurídice. Claro, explicam-no, mesmo que nunca o
justifiquem.
Ora para um romance de estreia
tantos dos pontos aqui levantados esclarece um pouco sobre o seu sucesso: A
vida invisível de Eurídice Gusmão é uma síntese sobre as vidas de tantas
mulheres que nos rodeiam. E essa universalidade é feita com uma sensibilidade,
uma delicadeza e estratégias de contar que se mostram acessíveis aos leitores
das mais diferentes escalas. O melhor do romance será nossa descoberta sobre um
mundo que muitas vezes nunca paramos para compreendê-lo, nem investigar. Quantos
de nós buscamos, a certa altura de nossas vidas, saber sobre os destinos
daquelas que nos acompanharam desde sempre? É aqui que reside um só deslize na
estruturação do romance ora comentado.
É verdade que as técnicas pós-modernas
de narração abriram possibilidades infinitas para que os criadores organizem as
vozes da narrativa, incluindo a revelação pública da caixa de máquinas que
permite o funcionamento do romanesco. Por vezes, no caso específico deste
romance, é certo tratamento operacional de uma narradora dotada de uma
consciência sobre a ficcionalidade do que se conta ou do revestimento de ficção
que aplica por sobre os acontecimentos, permitindo-se à intromissão na ordem
textual ou a avançar para fora das linhas do pacto realista ―
isso é bom. Mas, algumas garantias nunca podem ser ignoradas: o papel do leitor
em organizar os sentidos sobre o que se narra. Assim, é decepcionante quando a
narrativa nos apresenta muito claramente o que são e como funcionam as duas Eurídices:
a mulher de grandes sonhos e alegrias que, continuamente, fechando-se torna-se
o adulto que todos somos, solitário e triste. Um romance será sempre melhor quanto
melhor nos for capaz de ocultar o que quer revelar, ainda que mostre o que quer
da maneira mais visível possível.
Comentários