A garota de Ipanema e a garota de Paris
Por Thiago Teixeira
Ruy Castro escreveu recentemente na Folha de São Paulo que “Garota
de Ipanema” não encontraria hoje acolhida do público, pois a canção, com seu
conteúdo sexista, sofreria algum tipo de boicote. Não é possível saber em que
medida o autor está falando sério, já que o artigo, irônico, não foi mais
adiante. O fato é que Ruy Castro não consegue negar ou desmentir que a música,
a despeito da evidente beleza, possui sim uma visão fetichista da mulher.
Aliás, são tantas as canções brasileiras atuais tão ou mais fetichistas, e nem
por isso sofrem qualquer boicote.
De todo modo, há outras dimensões da música que podem ser exploradas,
abordagens outras. A nós, cuja abordagem estritamente literária mais interessa,
cabe pensar a letra como parte da obra de Vinicius de Moraes, e a obra como parte da
tradição literária.
A imagem da mulher que passa pode ser encontrada em ouros
poemas do autor, como em “A mulher que passa” ou “Balada das meninas de bicicleta”,
os quais flagrantemente apresentam uma mulher de passagem sobre a qual se
incide a visão de desejo, sonho e devaneio do eu-poético. Ele, o poeta, vê-se
como escravo da beleza, ao mesmo tempo em que percebe a distância entre o desejo
e o objeto: a mulher caminha com certa indiferença, desconhecendo totalmente o
amor potencial e frustrado que o poeta vislumbra, passivo e impotente. Ele está
sempre à cata da poesia que a mulher amada, despercebidamente, entorna no chão:
“em vosso rastro persiste”. A busca de Vinícius literariamente encontra eco em
muitos dos bardos, poetas românticos, poetas dos seiscentos, nos trovadores, na
poesia petrarquista, no Doce estilo novo, e até mesmo em Dante, que também
sofria ao contemplar Beatriz, sabendo-se não correspondido, muito embora sua versão
seja menos carnal, ainda que amparado pela visão.
A mulher que passa, ou a mulher contemplada são praticamente
uma figura poética, e sabendo o quanto Baudelaire foi para os poetas
brasileiros grande influência, autor para o qual Vinicius dedicou um poema em
que confessa sincera admiração, não deixamos de cogitar que o tema tenha como
fonte o poeta francês.
Tido como o grande divisor de águas da poesia moderna, um
dos seus poemas mais importantes, “A uma passante”, denota nítidos pontos de contato
com o poeta brasileiro. O mais evidente é o posicionamento do eu-lírico que
contempla uma mulher que está passando distraída “com sua mão vaidosa/ Erguendo
e balançando a barra alva da saia” e também insinuante, a mostrar a brancura da
perna “Pernas de estátua”. A brancura da mulher, além de ser um elemento de
sensualidade, sobretudo para o século XIX, é também sinal de classe social,
distanciamento e inviolabilidade. Toda a cena é muito ambígua, porque a mulher
parece não se dar conta da presença do poeta, ao mesmo tempo em que lança para
ele um olhar significativo “De um olhar que me fez nascer segunda vez”, ao
mesmo tempo distante “No tempestuoso céu do seu olhar distante”. Essa
distância, associada ao indício da classe social pela brancura da perna, mostra
que a mulher é pertencente a uma classe social mais elevada do que a do poeta,
que a admira assustado, causando distanciamento intransponível. Ela é descrita
como uma imagem nobre e fina, possivelmente de luto, uma vez que está de preto
e demonstra dor majestosa. Ele, aparentemente está num café, em meio ao
alarido, o que justifica a ambiguidade da palavra “beber” de “eu lhe bebia / No
olhar”.
Essa ambiguidade da mulher baudelairiana, que se oferece ao
mesmo tempo em que se distancia, causa no poeta um sentimento de dubiedade,
gera no poema imagens opostas: “doçura que envolve”, “prazer que assassina”,
“luz”, “noite”, lembrando que para muitos poetas o sublime é justamente o sentimento
de aproximação e distanciamento concomitantes. No final do poema, o poeta deixa
a entender a possibilidade de uma relação que poderia ter-se realizado: o poema
é mais um indício de que Baudelaire tematiza o crescimento das cidades e do
mundo que se modernizava, no qual as pessoas se viam apenas de passagem, em
ralações curtas e superficiais, indivíduos dissolvendo-se na massa, ou
“frenético alarido”. O eu-lírico consegue distinguir uma beleza, uma
individualidade, porém sem correspondência concreta e em um brevíssimo período
de tempo. A fugitive beautè é a mulher, mas é também a Beleza estética, a
criação poética, tão breve e rara.
O olhar é o elemento principal, é através do olhar que o
homem sempre admirou, nos poemas, a mulher amada, sobretudo as mulheres
socialmente inacessíveis. A relação de vassalagem dos poemas trovadorescos tem
o olhar como elemento chave, já que, na falta do contato carnal, cabe apenas o voyeurismo;
é pelo olhar que Petrarca canta seu amor à Laura, é com o olhar que Castro
Alves “fitando essa cena” olha com desejo a mulher estendida numa rede. E a
questão do distanciamento, seja pelo medo romântico do contato com o objeto,
seja pela culpa cristã de Petrarca, seja pela diferença de classe presente na
maioria dos exemplos, é uma das principais nessa contemplação, sempre associada
ao desejo.
Tal olhar está presente nos poetas brasileiros que se
inspiraram em Baudelaire, poetas estes a quem Antonio Candido dedica um ensaio “Os
primeiros baudelairianos”. O crítico analisa a influência de Baudelaire em
alguns poetas pré-parnasianos, mas o que nos chama a atenção é a maneira como o
eu-lírico se depara com uma mulher, e como o desejo que sente por ela se
aproxima do perverso e do sádico. Entre estes poetas, o olhar (predominância da
visão), o contemplar passivamente, o desejar sem a correspondência do objeto, a
projeção dos desejos, o recalque e o abismo entre as classes sociais são pontos
em comum. Os poemas que Antonio Candido cita como exemplo nos dão o tom de tais
características. É o caso de “Adormecida” de Carvalho Júnior:
Quando vejo-te assim, do sono da indolência
[...]
Quando vejo o abandono, a mórbida aparência
[...]
Meus instintos sutis negrejam fileirados,
Bem como os urubus em torno da carniça.
A predominância da visão, o desejo pela mulher deitada num
leito, terminam com a revelação dos instintos, próximos da imagem do devorar. A
imagem súbita da carniça é baudelairiana. Vejamos o caso do poema “Antropofagia” do próprio Carvalho
Júnior:
Mulher! ao ver-te nua, as formas opulentas
Indecisas luzindo à noite, sobre o leito,
Como um bando voraz de lúbricas jumentas,
Instintos canibais refervem-me no peito [...]
É o caso, também, de Roast-Beef de Foutoura Xavier:
Ao vê-la, não cobiço os ócios dum nababo,
[...]
E sinto fervilhar-me o pego dos desejos
De um Tântalo faminto em face de um roast-beef!
Comparado aos primeiros baudelairianos, Vinicius é mais
ameno. Sua angústia se faz pela não correspondência da mulher que passa, o
desejo que ela suscita pela beleza, uma beleza independente – “a beleza que não
é só minha” – e que muito se aproxima da mulher passante de Baudelaire. Essa
beleza, ao invés de suscitar desejos carnais carregados, ou mesmo o jogo
ambíguo e sensual de um Castro Alves, gera apenas melancolia e ressignificação
do mundo “o mundo inteirinho se enche de graça”. Há quem não saiba distinguir o
autor como ser ôntico e o autor como uma figura diegética, e acaba por afirmar
que a música representa dois homens velhos admirando com desejo uma menor de
idade. Preferimos abordar o assunto pela via do tropos literário. O sofrimento
que advém da distância que separa o sujeito de seu objeto de desejo é o mesmo
que tem cantado todos os poetas desde o começo da literatura neorromânica, ou
se tem esquecido os provençais, ou Guido Guinizelli, ou Cavalcanti, ou Dante, ou
Petrarca?
A tarde talvez fosse azul se não houvesse tanto desejo,
dizia um poeta sobre homens e mulheres.
Mas o fato, inequívoco, é que a tarde é azul, muito azul. E
a poesia não poderá deixar de cantá-la.
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