Um passeio pela obra de Anton Tchekhov
Por Joaquim Serra
Anton Tchekhov, 1892. |
Não só no século XX
veríamos o esfacelamento do entendimento através da linguagem. Se em Beckett a
sintaxe é subversiva para representar a incomunicabilidade dos seres no mundo
pós-guerra, em Tchekhov, mesmo com o pleno exercício das frases acabadas, as personagens
nem sempre se entendem através da comunicação, porque são vazias de sentido, ou
não encontram uma continuidade do diálogo no interlocutor. O tragicômico Ivan
Tolkatchov, o pai de família na peça Trágico à força, depois de seu
monólogo no qual mostra seu mundo atarefado, de obrigações e abusos, não obtém
do amigo interlocutor uma palavra que o acalme.
Tolkatchov entra em cena
com um globo de luz, um velocípede de criança, três caixas de chapéus
femininos, uma grande trouxa de roupas, um cesto com cerveja e uma infinidade
de pacotes pequenos. Pede um revólver emprestado ao amigo e não demora a se
lamentar: “sou um mártir, sou um trapo.” Tolkatchov sente o incômodo
do casamento. Através de seu monólogo, mesmo que farsesco, percebemos que ele
sente o peso das responsabilidades sociais. Diz ele: “Para que este nunca
acabar de sofrimentos físicos e morais? Que se possa ser mártir de uma ideia,
isto eu compreendo, mas ser mártir de algo que nem o diabo sabe, de saias e globos
de luz, não!”. Muráchkin, o amigo, funciona como uma força oposta. Enquanto
Tolkatchov é uma força centrífuga, grosso modo fugindo do eixo social
estabelecido, Muráchkin é uma força centrípeta, que tenta alinhar Tolkatchov
novamente ao eixo de inércia. Isso é visto quando Muráchkin diz: “pare de
gritar, os vizinhos vão ouvir”. Quando este lhe pede que leve uma
encomenda a uma amiga, Tolkatchov compara o amigo Muráchkin aos pernilongos que
sugam seu sangue na hora em que finalmente pensa que vai dormir e descansar.
“Sede de sangue, sede de sangue” (p. 13), diz o personagem ao entrelaçar o tom
farsesco com a tragédia que pensa ser sua vida.
Outro monólogo
emblemático de sua obra é o de Niúkhin, personagem de Os males do tabaco,
que começa: “Prezadas senhoras e prezados senhores! Pediram a minha mulher
que eu realizasse aqui uma conferência de interesse geral, para fins
beneficentes, sobre um assunto qualquer” (p. 13). Talvez, depois disso, o
espectador espere por um monólogo em que o escritor desfilará sua verve
científica – Tchekhov era médico de formação – através de seu personagem acerca
dos malefícios do tabaco, porém o que verá é coisa completamente diferente.
Assim como Tolkatchov, Niúkhin está esgotado com suas relações e, mesmo tendo
dito que “se alguém for dado a futilidades, se a aridez do discurso
estritamente científico assustar alguém, então deve não escutar e retirar-se!” (p. 14), decide se abrir, ali mesmo, diante
do público, para falar de seus problemas como único homem no pensionato de mulheres
da esposa, e quando se espera que ele volte ao assunto, Niúkhin começa a falar
de panquecas.
Os problemas de Niúkhin
e Tolkatchov não estão isolados apenas nesses personagens na poética de
Tchekhov. Nikítin, o professor do conto “O professor de letras” quer
urgentemente voltar para sua vida de antes de casado. O trágico herói aqui tem
uma dimensão profunda, idealiza a jovem que vê e a vida que levaria com ela,
então se casa, mas o que encontra é o tédio da rotina e das conversas. Escreve
ele em seu diário: “Onde vim parar, meu Deus? Estou cercado de vulgaridade por
todos os lados. Gente enfadonha, vazia, potes de cerâmica com creme azedo,
jarras com leite, baratas, mulheres tolas [...]. Fugir daqui, fugir hoje mesmo,
senão vou ficar louco” (p. 49). Um outro personagem que ganha uma dimensão
trágica ao se perder do enlace social é o jovem jurista do conto “A aposta”. Um
conto de formação que fala da experiência em cativeiro de um jovem preso
voluntariamente por ideais românticos, mas que vai encontrando na solidão e nas
leituras que faz uma distância cada vez maior entre ele e a sociedade. O conto
também revela, através da carta do protagonista e da atitude do banqueiro, o
outro personagem, a incomunicabilidade entre eles.
Mas talvez a peça que
contenha todos os elementos da estética de Tchekhov seja A Gaivota, de
1896. Continuando a tradição de mistura dos gêneros literários, Tchekhov chama
sua Gaivota de “comédia em quatro atos”. Púchkin já havia chamado seu Eugênio
Onêguin de romance, e Gógol de poema suas Almas Mortas. A peça tem
diversas subtramas, mas trata de um aspirante a escritor com tendências
depressivas e suicidas. Sua família, especificamente a mãe, e aqueles que o
rodeiam, têm a vida voltada para a arte da prosa e do teatro.
Konstantin Gavrílovitch
Trepliov é filho de Irina Nikoláievna Arkádina, uma atriz geniosa e
proprietária decadente que não poupa esforços para elevar-se, a si e a sua
arte, diante dos olhos alheios. Arkádina tem como amante um escritor – este um
contraponto ao gênio de Trepliov – que terá problemas com o filho rebelde de
Arkádina.
Nas primeiras páginas de
A Gaivota, uma peça de autoria de Trepliov será exibida para a mãe e a
todos aqueles que estão em sua propriedade. Trepliov quer exibir ao público
formas novas para o teatro e escolhe a jovem Nina para representar ao invés da
mãe. Trepliov não tem uma boa relação com a mãe, diz ele para o tio: “Ah, só se
pode elogiar a ela e a mais ninguém, só se pode escrever sobre ela e aclamá-la
e se entusiasmar com a sua extraordinária interpretação em A dama das
camélias ou em O enlevo da vida, mas como aqui no campo não existe
esse sedativo, ela se aborrece e se irrita” (p. 13).
Trepliov concebe o
teatro de uma maneira que irá tomar forma no século XX, diz ele em uma conversa
com Nina: “Personagens vivos! Não se deve representar a vida do jeito que ela
é, nem do jeito que deveria ser, mas sim como ela se apresenta nos sonhos” (p.
19). O surrealismo terá o onírico como princípio para a representação, tanto
nos diálogos – Beckett, Ionesco – com na ausência muitas vezes total do enlace
dialético (agon), que cria ação e reação através do discurso, como
também do minimalismo do cenário já proposto pelas rubricas de Tchekhov.
Em A Gaivota não
é diferente. Os discursos vazios, muitas vezes enigmáticos e que acentuam a
dramaturgia de Tchekhov, também têm lugar na conversa à beira do lago. Em certo
momento Arkádina diz: “Ah, o que pode ser mais enfadonho do que esse doce tédio
rural? Calor, silêncio, nunca ninguém faz coisa alguma, e todos filosofam” (p.
44). A conversa interrompida por Arkádina não era uma conversa filosófica, mas
um comentário do amigo médico Dorn feito para Sórin, irmão de Arkádina. Mas
parece que o tédio da aristocracia no mundo pré-revolucionário, do qual fala Arkádina,
pasteuriza os discursos, no fim, entrelaçados, viram quase coisa só.
Anton Tchekhov, 1890. |
Tchekhov seria muito
cobrado pela crítica da época, até pela crítica progressista. O sonho do
intelectual de abraça as massas e vai ao povo (идти к людям) estava nas
mãos de uma intelligentsia sem ação, enfadonha, repleta de heróis
deslocados. Alguns personagens carregam traços desses heróis, têm sonhos, mas
não sabe por onde concluí-los, são os conhecidos homens supérfluos, herdeiros
de Eugênio Onêguin e de Iliá Oblómov. Todos os personagens carregam um pouco
disso, mas Trepliov, que se perderá num amor idealizado que causará sua
derrocada total, tem, ao mesmo tempo, a sinceridade corrosiva de um Bazárov
(herói de Pais e Filhos, de Ivan Turguêniev).
Nina também sofre o
impacto por assistir de dentro à vida de pessoas famosas, diz Nina: “como é
estranho ver que uma atriz famosa chora, e ainda por cima por um motivo tão
fútil! E como também é estranho que um escritor célebre, adorado pelo público,
sobre quem todos os jornais escrevem [...], passe o dia todo pescando no lago e
fique tão contente por ter apanhado duas carpas. Pensei que pessoas famosas
fossem inacessíveis [...]” (p. 48). Sua visão idealizada aparece em sua
discussão com Trigórin. É interessante a posição desse diálogo na trama do
livro, ele aparece quase no centro da história. Nina, como veremos, vai
incorporar o símbolo da gaivota, que dá nome à peça, e encontrará em seu
relacionamento com Trigórin a sua derrocada. Nesse diálogo, Nina pergunta a
Trigórin como se sente com sua fama, e ele responde: “será que não estou louco?
Será que meus conhecidos e amigos se dirigem a mim como a uma pessoa sã? ‘O que
o senhor anda escrevendo? Com o que nos brindará a seguir?’ Sempre a mesma
coisa, sempre a mesma coisa, e fico com a impressão de que essa atenção de meus
conhecidos, os elogios, a admiração, tudo isso é uma mentira, tenho a sensação
de que estão me enganando” (p. 53). Trigórin ainda reflete sobre ser um escritor à
sombra dos grandes como Tolstói e Turguêniev. Essa reflexão de Trigórin não
aparece à toa em A Gaivota já que a peça tem uma abertura
metalinguística que constitui sua trama, e seu autor, Tchekhov, é responsável
por uma estética muito diferente daquele dos grandes romancistas anteriores.
Se para Tolstói e Dostoiévski
o povo russo deveria ser retratado em grandes epopeias ou tratados filosóficos
diluídos na trama romanesca, para Tchekhov, a brevidade e a síntese são a marca
de sua prosa. Foi justamente ao escrever sobre A Gaivota que o autor
declarou: “a despeito de todas as regras da arte dramática, eu a comecei forte
e acabei pianíssimo”. Sophia Angelides, tradutora e comentadora de suas cartas,
chama essa tendência de Tchekhov de “registro menor” (p. 192), o que, mesmo
antes do reconhecimento do autor, já era encontrado em seus contos.
Acompanhamos também a
transformação de outra personagem importante para a peça, a gaivota. A gaivota
é abatida e exibida por Trepliov para Nina, a partir daí toma proporções cada
vez mais simbólicas quando aparece na trama. Ao ver a gaivota, Nina diz a
Trepliov: “Ultimamente, o senhor se irrita à toa, se expressa de um modo
totalmente incompreensível, como se usasse símbolos. Veja aqui esta gaivota,
também deve ser um símbolo, ao que parece, mas, me desculpe, eu não entendo” (p.
49). Tchekhov parece usar a fala de Nina para chamar atenção para essa
personagem misteriosa. Nina, após dois anos (se passam dois anos entre o
terceiro e o quarto ato), toma para si o título de gaivota e a ave também volta
ao palco, mas agora empalhada. No terceiro ato Nina também está transformada,
não voa livremente como uma gaivota, mas está abatida e presa, apaixonada por
Trigórin e sofrendo as consequências do amor não correspondido.
Trepliov também tem sua
transformação através do tempo e sente o peso de sua arte. Agora, dois anos
depois, já conseguira publicar contos em uma revista, mas conta com a apatia de
sua mãe e de Trigórin com relação à sua obra. Também se sente frustrado pela
sua obra, “eu, que falava tanto em formas novas, agora sinto que, pouco a
pouco, vou também caindo na rotina” (p. 101). Nina reaparece em sua vida e
junto surge também a figura da gaivota, com seu símbolo inflamado e
personificado. Esse aparecimento rompe o fio rarefeito que liga Trepliov à
vida.
A leitura das cartas de Tchekhov,
assim como acontece com Flaubert, é uma fonte inesgotável de métodos de
práticas de sua estética e, assim como o escritor francês, Tchekhov tratava de
assuntos por vezes muito profundos de sua obra, revelando um conhecimento
prático-teórico muito bem aperfeiçoado, sobretudo após 1886. O ano foi um
divisor de águas para a posição do escritor em relação à sua obra. Tchekhov
recebe uma carta de um famoso escritor russo da época, Dmítri Gregórivitch, que
o convoca a tratar sua obra com mais seriedade. Os contos que vem depois dessa
carta são a prova desse contrato firmado por Tchekhov: “A aposta” (1889), “O
professor de letras” (1894), “O assassinato” (1895), “A dama do cachorrinho”
(1899), “No fundo do barranco” (1900), neste último não seria estranho pensar,
através das frases mais longas e parágrafos maiores, que se trata de um outro
escritor que vai à Rússia profunda contar como se organizam as tragédias das
pessoas comuns.
É também sobre pessoas
comuns o seu relato em A ilha de Sacalina, escrito entre 1891 e 1894, um
importante documento a respeito da vida dos prisioneiros dessa ilha, marcado pela
visão humanista de Tchekhov. Transcrevo aqui o primeiro parágrafo da obra e que
já contém nele uma ambiguidade de sentimentos que marcará a sua visita à ilha:
“No dia 5 de julho de 1890, a bordo de um navio a vapor, cheguei à cidade de
Nikoláevski, um dos pontos mais orientais de nossa pátria. Aqui, o rio Amur é
muito largo, o mar fica só a 27 verstas [medida russa]; o local é majestoso e
bonito, mas as lembranças do passado dessa região, os relatos dos companheiros
sobre o inverno atroz e sobre os não menos atrozes costumes locais, a
proximidade dos trabalhos forçados e o próprio aspecto da cidade desolada,
deserta, tiram completamente a vontade de admirar a paisagem” (p. 15). Mais
tarde, o relato de Tchekhov seria lembrado por Varlam Chalámov, dono de um
monumental testemunho contra os campos de trabalhos forçados stalinistas
(chamou sua obra de “uma bofetada no stalinismo”), em seus Contos de Kolimá:
“Um escritor que se deparou com esse universo foi Tchekhov. Durante sua viagem
a Sacalina houve alguma coisa que alterou sua escrita. Em algumas das cartas
posteriores ao seu retorno, Tchekhov expressa claramente que tudo o que
escreveu antes dessa viagem lhe parecia futilidade, algo indigno de um escritor
russo. [...] Mas Tchekhov não podia mais que abrir os braços, sorrir tristonho
e apontar esse mundo com um gesto doce, mas insistente” (p. 10-11)
É normal que diante de
todas as injustiças e a hipocrisia reveladas por Tchekhov o leitor pergunte
para o narrador lacônico: “o que fazer?” Tchekhov não responde (em sua
correspondência se considerou diversas vezes um apolítico). Claro que através
de suas cartas encontramos pistas sobre sua visão de mundo, mas sobre sua
literatura, ele mesmo dizia: “a solução do problema e a colocação correta do
problema. Apenas o segundo é obrigatório para o artista”.
Tchekhov morreu em 1904
com apenas 44 anos em uma cidade da Alemanha. Seu corpo foi levado para a
Rússia em um vagão de trem usado para o transporte de ostras.
Para este texto e como
recomendação de leitura:
De Anton Tchekhov (traduções
diretas):
A Gaivota. Cosac Naify, 2004.
O assassinato e outras histórias.
Cosac Naify, 2011.
Os males do tabaco e outras peças em
um ato. Ateliê Editorial, 2001.
A ilha de Sacalina. Todavia, 2018.
Sobre Tchekhov:
Sophia Angelides: A.P. Tchekhov:
Cartas para uma poética. Edusp, 1995.
Varlam Chalámov. Ensaios sobre o
mundo do crime. Editora 34, 2016.
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