Suk Suk, de Ray Yeung
Por Pedro
Fernandes
A
filmografia de Ray Yeung é marcada por uma constante: tornar visível histórias
que mostram as transformações culturais e sociais pelas chamadas culturas dissidentes
em relação aos padrões dominantes em seu país. Suk Suk é o terceiro longa
que se infiltra no universo gay chinês: os dois primeiros foram Cut Sleeve
Boys (2006), uma comédia romântica que lida com a revisitação às
vidas de dois homens depois da morte de seu melhor amigo, e Front cover
(2015), que perfaz um caminho semelhante, agora, pelo encontro entre um
estilista e um renomado ator. Também os vários curtas que dirigiu tem a mesma raiz
de interesse, o que o coloca numa posição um tanto paradoxal no seu país: a de
uma persona non grata entre o ideário dominante e a de uma importante
voz capaz de registrar os silenciamentos aí impostos.
Os dois primeiros
filmes apresentam-se interessados no pequeno drama burguês. Nesse sentido,
parece que estamos diante de um cineasta encantado com as produções cor-de-rosa.
Isso significa dizer que, embora exista algum interesse em se propor alguma
reflexão sobre o lugar social ou a condição do gay na China, tudo é minimizado
em nome do entretenimento. De maneira que os protagonistas desses dramas são
meio-chineses ou figuras que mantêm uma relação muito aberta com a cultura
ocidental e os modelos de vida do capitalismo moderno. Tudo se justifica,
entretanto, se reparamos nas dificuldades financeiras para produções do gênero
no país e da própria disponibilidade dos atores para desempenhar papéis que lidem
com modelos ainda condenáveis.
O que pode
confirmar essas suspeitas é este filme de 2019. Aqui Ray Yeung permanece engajado
no seu interesse, acentuando, inclusive os impasses entre as infiltrações
ocidentais na cultura e nos modos de vida chineses, mas acentuando o drama. E
nos oferece uma peça cujo tema se constitui por dimensões variadas: das
perquirições individuais nos itinerários de autodescoberta e autoaceitação às
questões sociais de horizonte local e universal. Suk Suk se faz ainda de
um cuidado muito delicado com a fotografia, combinando em muitas passagens uma
beleza poética com intuito de uma celebração aberta ao corpo, sem se incomodar com
os padrões ditados socialmente, como parece vigorar nos dois primeiros filmes.
A história
contada foge dos modelos pressupostos nos dramas de homens gays. As lentes se
voltam para dois homens em idade de aposentadoria que, de um encontro casual,
experimentam a possibilidade de um enlace amoroso de maior duração. Não é o
amor romântico. É o companheirismo de duas subjetividades solitárias porque escondidas
aos olhos da sociedade sob os disfarces mais recorrentes: os de uma família
estabelecida e de uma posição digna. Yeung é muito sensível ao demonstrar que,
entre a loucura de amor e a manutenção do estabelecido, pode habitar (e essas
duas personagens são exemplos disso) um mundo outro, feito de histórias, preocupações,
gestos, afetos e gozos em parte ignorados pela superfície visível das coisas.
Assim, a história
vivida por estes homens não é o problema do filme uma vez que não
constitui em força capaz de colocar em xeque o universo regular dos dois. A
situação amorosa se coloca como estratégia para tocar em algumas questões caras
a todos entrados na velhice: a aceitação do corpo com as disfunções e as
dificuldades impostas, o abandono social e da família, a reinvenção de si a fim
de não se entregar ao vazio ou se tornar mera peça de sustentação da ordem familiar,
entre outras. Essas situações são referidas pelo lugar do homem gay, agrupamento
que se mostra tomado por variadas particularidades, desde a autoaceitação
sexual à cobrança por estratégias de interferência do estado para com aqueles
encontrados muito distantes das vistas da família.
Suk Suk
não está interessado em mostrar como na velhice as cores do amor podem se
revelar outra vez nos tons da juventude ― claro, com uma melhor dose de atenção
para os detalhes e outro senso de responsabilidade, coisas que só a experiência
de vida pode ser capaz de oferecer, experiência, aliás, continuamente revelada
um ao outro ao longo da narrativa; Suk Suk quer mostrar que se na
juventude todo amor traz consigo uma múltipla variedade de enfrentamentos, na
velhice estes não deixam de existir. A vida estável dos dois amantes, adquirida
a custo de estreita dedicação para o trabalho, oferece algumas interrogações:
sobre o que é o amor, a solidão, o companheirismo, a objeção.
Mas, também
não é isso apenas o que se mostra. Há um apelo político dirigido aos setores
diversos da sociedade e aos governos: àquela, como trata e pensa o lugar do
velho; a estes, quais as políticas de acolhimento e de saúde pensadas para os
que envelhecem, e entre estes, a parcela gay. É aqui que o impacto dessa
discussão tem maior peso: primeiro, porque tomados dos resquícios culturais
centralizadores e dominantes, são os homens gays educados em grande parte nos
padrões estabelecidos pelo mundo do consumo, quais as figuras dos primeiros
filmes de Ray Yeung, onde o corpo, a estética e o individualismo são
matéria-prima de boa parte das existências; depois, não se pode esperar muito
de um Estado acostumado a pensar o velho como o refugo social e o gay entre a
parte de sempre dessa mesma engrenagem perversa, especificamente em sociedades de
silenciamento dessa parcela social.
Suk Suk,
entretanto, não é um filme panfletário. Sua grandiosidade reside em parte no
trabalho de equilíbrio entre as várias frentes assumidas pela narrativa.
Todas as entregas passionais são determinadas pelo mesmo tom soturno que conduz
os dois amantes. Para uns, isso pode se parecer uma integração aos modelos
vigentes, mas não é. Retratar os sutis movimentos situados no bulício do mundo
não é uma das tarefas mais fáceis. Requer certa maturidade ― a
mesma que orienta os amantes nas suas escolhas. Silenciosamente, isso não deixa
de ser dissidência. Ou melhor, é a raiz da dissidência. Os que depois usufruem
da conquista dos do passado, certamente não lembrarão ou se lembrarão com desdém.
Ray Yeung parece oferecer a justa medida do velho na ordem social ―
não é a do refugo, não é a da margem, é a de quem abre caminhos para que as
gerações posteriores possam usufruir do que as gerações passadas foram
privadas.
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