Stefan Zweig, a estrela
Por Karl Krispin
Stefan Zweig, 1939. Foto: Bassano Ltd |
Petrópolis passa por um pequeno
vilarejo de veraneio onde a temperatura se ajusta a uma média anual de 19 graus
centígrados a uma altitude de 838 metros acima do nível do mar. Em 1955, os
termômetros marcavam sete graus abaixo de zero e em 1996 estouraram, chegando
aos 36 graus. Mas é um lugar onde se ia, no passado, veranear; principalmente
os aristocratas da monarquia Bragança e sua corte portuguesa instalada e
permanecida no Brasil graças aos caprichos de Bonaparte. Existem palacetes,
mansões e uma certa condição bucólica que o torna atraente para aquele
visitante de hoje uniformizado como turista. Um viajante errante e embaralhado
chegou àquela cidade na década de 1940. Vinha com os passaportes amassados e
uma ideia bastante duvidosa de onde pertencia. Teve tempo de escrever sobre o
país, de datilografar a maravilha que era sua vida e depois tirá-la. Na
pacífica e bragantina Petrópolis também vivia a professora Gabriela Mistral,
com quem manteve diálogos antes de sua última aproximação no caminho para a
eternidade. Stefan Zweig nasceu súdito do Império Austríaco e morreu com um
documento que o tornava cidadão britânico. Se a língua é a pátria de um
escritor, Zweig nunca abandonou a língua alemã, que aa honrou e enriqueceu como
fizeram poucos escritores.
Em 23 de fevereiro de 1942, o
escritor decidiu acabar com sua vida. Sua segunda esposa, Lotte Altmann, vinte
anos mais nova que ele, acompanhou-o nessa desafiadora empreitada. Ele deixa
este mundo com correção, gratidão e desolação:
“Antes de sair da vida, com pleno
conhecimento e lúcido, é urgente cumprir um último dever: agradecer
profundamente a este maravilhoso país, o Brasil, que ofereceu a mim e ao meu
trabalho uma estadia tão boa e hospitaleira. A cada dia aprendi a amar mais
este país e em nenhum lugar teria ficado mais feliz em construir minha vida
desde o início, depois que o mundo de minha própria língua desapareceu e a
Europa, minha pátria espiritual, se destrói. Mas depois dos sessenta, são
necessárias forças especiais para recomeçar. E as minha estão esgotadas depois
de andar tantos anos sem pátria. Desta forma, considero melhor concluir a tempo
e com integridade uma vida cuja maior alegria foi o trabalho espiritual, e cujo
bem mais precioso nesta terra foi a liberdade pessoal. Eu saúdo meus amigos. Oxalá
possam ver o nascer do sol depois dessa longa noite. Eu, muito impaciente, me
antecipo.”
Em 1933, o ano fatídico em que
Hitler e seus capangas chegaram ao poder, Zweig escreveu: “Sinto uma forte
relutância em me tornar um emigrante e só o faria em caso de extrema
necessidade”. As palavras que justificam seu suicídio são a despedida pensada
de um cidadão vienense preocupado com o fato de que sua Europa ruía e de que a
velha e magnífica civilidade de um império se tornou mais pagã e violenta do
que nunca. Havia se tornado um passageiro fugindo de sua pátria e sendo
perseguido por sua pátria, que fora forçado pelos agentes do mal a se refugiar
nas lembranças do ontem, naquela época de esplendor soberba que parecia ter
sido construída com os critérios da eternidade.
A realização exemplar do Império
Austro-Húngaro permitiu a construção da primeira tentativa moderna de uma
sociedade diferente, entendida além das agendas com as quais os historiadores
pontuam suas notas de rodapé. Para as estradas de Viena e Budapeste convergiram
austríacos, alemães, tiroleses, húngaros, boêmios, tchecos, poloneses,
eslovacos, eslovenos, sérvios, croatas, albaneses, ucranianos, italianos.
Aquela Roma da Europa central teve vida curta, mas entre 1867 e 1919 foram lançadas
as bases de um notável ensaio político, que naufragou com a Primeira Guerra
Mundial, foi definitivamente paralisado pela Segunda, mas que serviu de
primeiro modelo para o que hoje é a União Europeia.
Curiosamente, essa criação, ao
contrário de seus pares europeus, não pretendia ter colônias no ultramar.
Reuniu a possibilidade de uma união duradoura com base no reconhecimento da
diversidade. Zweig é uma vítima do nazismo. Refugia-se na Inglaterra e viaja
para a América para encontrar no Brasil o último trânsito de um homem que como
poucos entendeu a universalidade, conheceu a fama sem sujeitar a ela, era rico,
próspero e elegante. Mas no dia em que o fizeram deixar seu país, os relógios
começaram a retroceder:
“A emigração, seja ela qual for,
cria inevitavelmente um desequilíbrio. A pessoa perde estabilidade (e isso também
é necessário ter vivido para compreendê-la); se alguém não sente seu próprio
solo sob os pés, se torna mais inseguro e mais desconfiado de si mesmo. (…) Foi
inútil para mim educar o coração durante meio século para bater como o de um citoyen
du monde. Não, no dia em que perdi meu passaporte descobri, aos 58 anos,
que com a pátria se perde algo mais do que um pedaço de terra limitado por algumas
fronteiras.”
Na biografia de um leitor há, como
na biografia de sua vida, momentos luminosos, épicos e sombrios. Talvez
aconteça que não acompanhemos as etapas que poderiam ser tão memoráveis
quanto as da própria vida. Talvez este seja o tema possível de uma realização
quimérica: a vida de um homem vista apenas através dos livros que leu. Isso
seria uma finalidade para medir a circulação crônica de vidas paralelas: aquela
que vivemos e aquela que a literatura nos faz viver. O da realidade e o da
imaginação ou outro que outros já experimentaram. No momento desta figurada biografia
em que a obra de Zweig chega às mãos desse leitor que serve de amostra,
explodirá um momento de júbilo.
Os livros de Zweig habitarão a
vida de nosso leitor de uma forma incomum. Nunca devemos pensar que os livros
coletivamente nos salvam: esse é o velho truque daqueles que fazem grades para
nos trancar em nome de um dogma. Não, os livros podem nos iluminar e nos
proteger para a nossa vida individual que se relaciona com a vida dos outros
nesta polis em que interagimos e na qual nosso comportamento é de
extrema importância para o resultado total.
Com O mundo de ontem Zweig
empreende um grande projeto que Johann Wolfgang Goethe havia percebido em sua
época como o mais admirável de todos: o de narrar a vida com o que de grande,
mesquinho, célebre e feliz que ela possa ter. Esta não é uma simples
autobiografia para celebrar uma contemplação narcísica. Não, este é um
empreendimento goethiano gigantesco (a admiração de Zweig por Goethe foi
paradigmática, assim como por Nietzsche. Weimar foi um lugar sagrado em seu
inventário de peregrinações) que ele empreende para que a vida seja a passagem
para entender uma cultura e o que que assomava como uma civilização.
Zweig se escolhe como ponto de
partida para contar um tempo, uma era de compreensão e engenho, e o faz com
toda a intenção, sabendo que será seu último livro, decidiu desaparecer atrás
dele, que seu ponto final dará a chave para superar este mundo. A fuga perfeita
termina com suas páginas. Zweig escreveu este texto com apuro, ousadia e sem trégua.
Em O mundo de ontem Zweig não descura uma única palavra para que este
testamento reflita o que se acumula desse resto que deixou. A ideia europeia
desmoronou, o universo está em chamas, os deuses morreram, o niilismo
apoderou-se de tudo e o autor não tem forças para propor um alicerce sobre as
cinzas que vêm com este holocausto da desgraça. Só reúne forças para realizar o
motivo que o sustenta: que o mundo saiba que já existiu uma cultura admirável, criativa,
culta e poética o suficiente para fundar compreensões de virtude e razão e que
também foi descrente de si mesmo o suficiente para varrê-la em sua totalidade.
Essa criação aspiracional foi resumida nessas frases comoventes e nostálgicas
com as quais Zweig volta para nos mostrar sua memória de ontem:
“Se procuro uma fórmula prática
para definir a época anterior à Primeira Guerra Mundial, a época em que cresci
e me criei, espero ter encontrado a mais concisa ao dizer que foi a era de ouro
da segurança. Tudo em nossa monarquia austríaca quase milenar parecia repousar
sobre o fundamento da duração, e o próprio Estado parecia a garantia suprema
dessa estabilidade. Os direitos que concedia aos cidadãos eram garantidos pelo
Parlamento, representação do povo livremente escolhida, e todos os deveres eram
delimitados com exatidão. Nossa moeda, a coroa austríaca, circulava em
reluzentes peças de ouro, garantindo assim sua invariabilidade. Todos sabiam
quanto tinha ou quanto era seu, o que era permitido e o que era proibido. Tudo
tinha seu padrão, sua medida e seu peso determinados. Quem quer que tivesse uma
fortuna poderia calcular exatamente os juros que ganharia por ano; o
funcionário público ou o militar, por sua vez, certamente encontraria o ano em
que se promoveria ou se aposentaria. Cada família tinha um orçamento fixo,
sabia quanto gastar com moradia e alimentação, férias de verão e na ostentação,
e também, sem falta, reservava cuidadosamente uma pequena quantia para
imprevistos, doenças e médicos. Quem tinha uma casa a considerava um lar seguro
para seus filhos e netos; terras e negócios foram herdados de geração em
geração; quando o bebê ainda dormia na cama, eles já depositavam um óbolo no
cofrinho ou caixa de poupança para sua trajetória de vida, uma pequena ‘reserva’
para o futuro. Naquele vasto império tudo tinha seu lugar, firme e imutável, e
no topo de tudo estava o velho imperador; e se ele morresse, era sabido (ou
acreditava-se saber) que outro viria e que nada mudaria na ordem bem calculada.
Ninguém acreditava em guerras, revoluções ou subversões. Tudo o que era radical
e violento parecia impossível naquela era da razão.
As guerras e inflação acabaram com
a velha ordem que ensaiou a liberdade. Depois da Primeira Guerra Mundial veio a
paz sem honra ou o Tratado de Versalhes, que conseguiu aninhar o futuro dos
ogros da aniquilação. Este capítulo sombrio da ruína do Ocidente que envenenou
coletivamente a consciência europeia deve ser conduzido com uma racionalidade
inequívoca. Os que afirmam que Adolf Hitler era irracional viram a página às
pressas e trazem o conforto de uma doença mental para cuidar de recolher o lixo
e jogá-lo fora. Não, esta foi uma crise da consciência europeia incapaz de
articular liberdade e a democracia e dar um destino adequado à ordem social
sustentada em alicerces duradouros. Após a deposição da ordem veio o caos e uma
gangue fratricida, a dos nazistas, fascistas, bolcheviques, falangistas e
outros inimigos da liberdade e do entendimento. Foi a época em que a violência
conscientemente tomou conta das mentes e como um furacão empurrou a humanidade
para a guerra contra si mesma. Um espírito culto e superior como o de Zweig não
poderia viver em tal contradição, estava muito acima desse roteiro de ódio. Por
isso, ele inventou um final muito bem pensado, com um ato de despedida
cerimonial, mesmo em face da morte, nunca esquecendo as formas de uma despedida
cavalheiresca.
O mundo de ontem é o
retrato de uma época marcada pelo mais abjeto ceticismo que
levou a culta Europa a iniciar o seu processo de desmantelamento. Os nazistas
não enganavam a ninguém com a sua suástica, a cruz da destruição e um novo
ciclo: só apostaram em vomitar a sua verdade, a de uma ordem que substituiria
outra¹. E aí residiram as chaves com as quais o problema não foi enfrentado em
sua devida dimensão. Esses iconoclastas entraram para a história com suas
tochas acesas para queimar tudo o que estava de pé representando a moralidade
do passado. Deve-se acreditar que os destruidores impedem seu crime. “Como
podemos nos proteger contra o mal se não o conhecemos?” Escreveu Henry Miller.
Os apóstolos do terror tudo destruíram e só depois do homicídio definitivo a
Europa saiu das cinzas para se reencontrar.
“Depois de uma longa conversa com
ele, a pessoa era incapaz de qualquer vulgaridade por horas e até dias.” Assim
descreveu a veneração quase mística que tinha pelo poeta Rainer Maria Rilke,
entre outros epítetos que lhe atribui em homenagem à sua personalidade sonora e
antiga. Se Zweig se distinguiu em alguma coisa, foi no ensaio. Dá a impressão
de que é impelido pela reflexão, pelo pensamento: sair a viajar pelo mundo ao
encontro dos grandes criadores da cultura, dos responsáveis da lucidez
europeia, dos mestres da literatura e da palavra.
Aí Zweig se torna imenso, Zweig se
torna estelar, ele é hercúleo em sua pretensão de totalidade. Nunca li um
ensaio melhor explicando Friedrich Nietzsche que o de sua autoria. E tampouco
sobre Montaigne, sobre os grandes criadores da literatura russa como
Dostoiévski, ou sobre Dickens ou Balzac. Balzac regressa do panteão para
conversar amigavelmente com os leitores em seus parágrafos. Uma das melhores
maneiras de explicar isso, e dar o sinal viciante do que é criatividade, é em
um trabalho que você se dedica ao assunto. Balzac está em seu escritório: seu
rosto se enche de lágrimas e entra um amigo que o visita, que se surpreende com
seu estado descomposto. Honoré responde com profundo sentimento: A duquesa
de Langeais está morta. Uma de suas personagens. De Hölderlin celebrou sua
vida poética mais do que sua poesia, que foi a utopia privada de todo poeta e
que poucos conseguiram realizar. A loucura do poeta e sua reclusão naquela
torre voltada para o Neckar é a ajuda que se busca para fugir do mundanismo e
encontrar uma religião secular entre seus versos.
Não há cicerone mais
pontual do que ele. Fazer uma excursão na sua companhia pela história é
encontrar os nomes sonoros, mas também com todos os desesperados,
os náufragos da vida. Os seus Momentos estelares da humanidade
constituem um retábulo onde aparecem como uma tinta invasiva que constrói e
destrói, que é sofrimento e é êxtase, como salienta, momentos que marcaram um
antes e um depois. Mas eles não são vistos com as lunetas do épico e o engano
difuso que ergue estátuas e exalta os heróis. Há muita coisa estritamente
humana, como o confinamento de Marco Tulio Cícero sabendo que seus algozes
chegarão a qualquer momento ou a façanha de Amundsen e Scott em seu delirante
esforço para chegar ao centro da Antártida, levado pelo torvelinho interno de
deixar uma marca no destino.
Aqui está Napoleão em sua última
manhã ilusória que foi Waterloo, César mandando cortar as mãos de dois mil
prisioneiros ou o futuro déspota, Lênin, que viaja em um trem blindado para
encorajar o ódio e a vingança entre ele e seus sucessores. Este livro é
provavelmente o mais famoso do escritor. Ouso dizer que cada uma de suas frases
produz um estremecimento particular porque abundam na exegese meticulosa da
civilização. Os seus ensaios são um anúncio sólido da história que vai e vem em
cada um dos seus compartimentos, que não existe primeira ou terceira classe
porque o percurso é ecumênico e prolixo através das estações onde o homem
deixou de ser alguém ou de se desfazer.
Sua obra literária, puramente
ficcional, é íntima e dedicada a explorar a totalidade de algumas personagens
que vagueiam em torno delas mesmas, como Novela de xadrez, em que um
jogador escapou de seus captores jogando e derrotando a si próprio no tabuleiro
de todas as combinações. Ou as Vinte e quatro horas na vida de uma mulher,
em que a esposa deixou seu ambiente para correr em direção a uma promessa de
sedução. Ou o muito breve que aponta para o livreiro de Mendel perdido em um
café onde todos já o esqueceram. São construções altamente pessoais: Zweig não
recorre à abordagem coral das muitas vozes, mas antes torna essas pequenas
desorientadas, dispersas e espoliadas com as quais ilumina as lacunas
contraditórias da condição humana. Seus romances comprometem-se com a
brevidade, mas deixam a marca de uma longa convivência.
O dia de sua morte foi planejado
com meticulosa precisão. Zweig escolheu o tipo certo de veneno para a morte
menos dolorosa que ele e sua esposa haviam combinado. Ele doou seus livros e
deu a sua caseira o fox terrier. Lotte e o escritor engoliram a poção e adormeceram
um ao lado do outro. Na foto que retrata sua última viagem, ele se destaca por
uma gravata escura que amarrou corretamente para dar formalidade ao seu adeus a
este mundo ao qual pareciam restar poucas cortesias.
Notas:
¹ José Ortega y Gasset sentencia
em A rebelião das massas: “A revolução não é a revolta contra a ordem
pré-existente, mas a implantação de uma nova ordem que distorce a tradicional”.
* Este texto é a tradução de “Zweig, el estelar”, publicado aqui, na revista Zenda.
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