Sobre “O meio”, de Dostoiévski
Por Davi Lopes Villaça
Edvard Munch. O assassino. 1910. Reprodução. |
Dostoiévski
acreditava que uma sociedade deveria estar apoiada sobre valores morais sólidos
– para ele, os valores transmitidos pelo cristianismo e há muito enraizados na
alma do povo russo. O indivíduo deveria ser capaz de distinguir entre o bem o
mal e fazer suas escolhas com base nessa distinção. Isto num momento histórico
(tal como o nosso) de profundo relativismo moral, em que valores são
continuamente colocados em questão. Não por acaso o tema da amoralidade ocupa
um lugar tão importante em sua obra madura. O estudante Raskólnikov, de Crime e
castigo, comete um assassinato para provar-se acima de quaisquer convenções
morais; logo descobre, porém, que a ideia do bem e do mal estava tão entranhada
nele que não podia refutá-la sem enfrentar sérias consequências psíquicas. É a
partir do sofrimento decorrente de seu crime e, por fim, do reconhecimento de
sua culpa que o herói recupera e consolida o sentido da sua própria humanidade.
Nem todos os anti-heróis dostoievskianos têm esse destino: os mais depravados
(como o Svidrigáilov do mesmo romance e o Stavróguin de Os demônios), para os
quais o crime de fato se torna uma noção difusa, descobrem-se num mundo sem
limites, onde suas personalidades perigam dissolver-se no nada. Para o filósofo
Luigi Pareyson, as tentativas dos heróis dostoievskianos de sobrepor-se ao bem
e ao mal, de tornar-se super-homens, sempre os transforma em sub-homens, atraindo-os
para o tédio, a indiferença e o suicídio.
Em “O meio”,
artigo que integra o seu Diário de um escritor de 1873, o autor polemizou com a
ideia de que certos crimes pudessem ser justificados pela pressão das
circunstâncias econômico-sociais. Ele, em oposição a isso, defendeu o castigo,
quaisquer que fossem as circunstâncias. O interessante é que Dostoiévski parece
tão preocupado com a situação dos criminosos quanto com o bem-estar da
sociedade em geral – na verdade, ele jamais considerou essas duas coisas
separadamente. Por nada o autor corroboraria o jargão das nossas pessoas “de
bem”, para quem bandido bom é bandido morto. Mas concordaria com elas numa coisa:
que o crime, enquanto produto de uma escolha, não deixa de ser crime e não pode
deixar de ser reconhecido como tal. Negar a culpa seria negar a aquilo que o
autor considerava o elemento mais constitutivo do ser humano, sua liberdade.
Nada o horrorizava mais do que a perspectiva de um indivíduo a tal ponto
bestializado que já não pudesse responder por si mesmo – chegava a ver nisto
mesmo um crime. Contra as teorias do meio, agarrava-se no cristianismo, o qual,
a seu ver, reconhecia a pressão do meio e mostrava misericórdia ao “pecador” ao
mesmo tempo em que colocava “a luta contra o meio como um dever moral do
indivíduo, que sabe onde termina o meio e onde começa o dever”.
“Tornando o
homem responsável, o cristianismo também reconhece sua liberdade. Tornando, ao
contrário, o homem dependente de cada erro da organização social, a teoria do
meio o leva uma despersonalização completa, a um desprendimento de qualquer dever moral ou individual, de
qualquer independência, leva-o à mais abjeta das escravidões que se pode
imaginar.”
Essa
responsabilização do indivíduo pelos próprios crimes jamais serve, em
Dostoiévski, de pretexto à sua marginalização, à sua desqualificação perante a
“boa” sociedade, muito pelo contrário. O autor aponta como uma qualidade positiva
do povo russo um sentimento natural de compaixão pelos criminosos, que nada tem
a ver com a magnanimidade (isto é, essa atitude se superior generosidade em
relação ao outro); trata-se, antes, do reconhecimento de uma dívida para com
eles:
“Com efeito,
se nos consideramos algumas vezes piores que o criminoso, confessamos a culpa
de metade de seu crime. Se ele violou a lei que lhe foi estabelecida, nós
mesmos somos culpados de ele estar agora à nossa frente. Pois, se fôssemos
pessoas melhores, ele também seria e não estaria agora diante de nós...
─ Mas, então,
inocentá-lo?
Não, ao
contrário: justamente agora é necessário falar a verdade e chamar a maldade de
maldade; mas, em compensação, devemos assumir metade do peso da condenação.
Entremos na sala do tribunal com a ideia de que somos também culpados. Esta dor
na consciência, a qual agora todos tememos e com a qual vamos deixar a sala do
tribunal, será o nosso castigo. Se esta dor for verdadeira e intensa, ela irá
purificar e nos tornar pessoas melhores. Mudados para melhor, iremos regenerar
o meio e modificá-lo. Mas simplesmente fugir da piedade e, para evitar seu
próprio sofrimento, dar todos por inocentes ─ isso é fácil demais.”
É claro que
Dostoiévski se refere aqui a um júri ideal, guiado por verdadeiros princípios
cristãos, capaz de perscrutar a fundo a alma do réu e a natureza de seu crime.
Mas o que me chama realmente a atenção na passagem é o fato de que, para o
autor, o criminoso jamais perde seu vínculo com a sociedade. Ele continua a ser
nosso semelhante, um reflexo de nós mesmos, a realização de uma de nossas
inexploradas possibilidades. Dostoiévski explica o porquê de o povo russo, em
especial o camponês ─ justamente aquele em que a moral cristão se encontrava
mais profundamente enraizada ─, chamar os criminosos de infelizes. É como se
dissesse:
“Vocês
pecaram e agora sofrem, mas nós também somos pecadores. Se estivéssemos em seu
lugar, talvez fizéssemos algo pior. Se fôssemos pessoas melhores, vocês não
estariam, talvez, na prisão. Com a punição de seus crimes, vocês também carregam
o peso da não observância geral da lei. Rezem por nós, assim como rezamos por
vocês. Mas, por enquanto, ‘infelizes’, tomem estes tostões, os damos para que
saibam que vocês estão em nossos pensamentos e que não rompemos nossas ligações
fraternais.”
Assim, mesmo
praticado em liberdade, por um único indivíduo, o crime jamais perde o seu
caráter social, coletivo. É o oposto do que pregam os cidadãos de bem, que veem
no criminoso uma excrecência, o inimigo da verdadeira sociedade, que não
infringe a lei. A visão dostoievskiana implica que uma sociedade que não
reconhece o mal que ela mesma engendrou, o qual tomou forma nas ações de um dos
seus cidadãos, é incapaz de lidar com seus problemas, na medida em que não
enxerga mais do que uma imagem mutilada de si mesma.
Vale lembrar
que Dostoiévski não depositava muita fé na capacidade do tribunal e dos
promotores de justiça, apoiado em teorias sociológicas e, muitas vezes,
pseudocientíficas, de compreender realmente a essência de um crime e o caráter
do criminoso (ele satirizou essa incapacidade na cena do julgamento de Mítia ao
final de Os irmãos Karamazov). Em sentido contrário, seus romances, ao mesmo
tempo em que expõem à crítica os erros de suas personagens, fazem-nos sentir
como nossas as contradições de sua consciência atormentada ─ o autor procura
fazer de seus leitores o seu júri ideal. Penso um pouco na narrativa de Crime e
castigo como o tribunal em que acompanhamos o caso de Raskólnikov: nele
reconhecemos o assassino e também o nosso semelhante. É natural que sintamos
diante dele: “se estivéssemos em seu lugar, talvez fizéssemos algo pior”. Pouco
importa que o próprio herói se sinta isolado, que o seu crime pareça o mais
estranho e excepcional. Como disse Dostoiévski no início de Os irmãos Karamazov:
“Não só excêntrico ‘nem sempre’
é uma particularidade e um caso isolado, como, ao contrário, vez por outra
acontece de ser justo ele, talvez, que traz em si a medula do todo, enquanto os
demais viventes de sua época ─ todos, movidos por algum vento estranho, dele
estão temporariamente afastados sabe-se lá por que razão.”
É claro que
esse tipo de identificação com a personagem anti-heroica não é uma
exclusividade dostoievskiana; é uma das características mais comum da literatura.
O mesmo não se passa, por exemplo, com as personagens de Shakespeare e
Graciliano Ramos, com Macbeth e Paulo Honório? Costuma-se dizer que, lendo,
conhecemos os motivos dos anti-heróis, as pressões que agem sobre eles, e em
função disso nos tornamos mais simpáticos às suas ações, quando não cúmplices
delas. Mas a literatura, vale lembrar, não prega o determinismo, a teoria do
meio; não exclui a liberdade, mesmo na presença do Destino. Sentimos que
Macbeth tomou suas ações a partir da rejeição de muitas outras escolhas
possíveis. A fatalidade está justamente em que, a despeito de todas as
alternativas, as coisas aconteceram como aconteceram e já não podem acontecer
de outro modo. A literatura, a palavra escrita e fixada, nos obriga a aceitar
isso. Acompanhando os passos dessa ou de outra personagem, seguimos pelo
caminho que, por medo ou por virtude, mas sobretudo por acaso, acabamos por não
trilhar nós mesmos. Há alguma verdade nas palavras do narrador das Memórias do
subsolo, o primeiro grande anti-herói dostoievskiano, que acusa o leitor:
“Apenas levei ao extremo, em minha vida, aquilo que não ousastes levar até a
metade sequer”.
Lembro de
ter lido um comentário de alguém no Facebook, acho que sobre o romance Lolita,
mais ou menos assim: “a literatura nos ajuda a compreender os psicopatas. Quase
nos leva a perdoá-los”. Não penso que seja assim. A literatura acusa a todos,
réus e jurados, mostra o homem sob a máscara do monstro, obriga-nos a
reconhecer os laços de humanidade com os criminosos e os pecadores, de quem nos
separamos por uma linha tênue e, muitas vezes, circunstancial. Em verdade, as
grandes obras dificilmente nos dão uma imagem clara do crime ou do pecado,
mesmo quando partem de uma intenção moralista (como se dá, muitas vezes, com
Dostoiévski). Antes, colocam-nos diante dos problemas, abalam nossas convicções
e nos indagam sobre a existência do bem e do mal.
Textos citados:
DOSTOIÉVSKI,
F. M. “O meio”. In: Diário de um escritor (1873). São Paulo: Hedra, 2016.
DOSTOIÉVSKI, F. M. Memórias do
subsolo. São Paulo: Editora 34, 2009.
DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos
Karamázov. São Paulo: Editora 34, 2015.
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