Prazer em queimar, de Ray Bradbury


Por Pedro Fernandes



Há quem diga que a Magnum opus de um criador é produto de uma vida inteira de obsessões. Ou ainda, que todo trabalho criativo existe para culminar na grande obra. Embora as duas afirmativas não sejam gratuitas porque encontram respaldo em muitas situações, elas não constituem, como quase tudo na literatura, uma verdade absoluta. Um caso específico que a princípio pode reafirmá-las parece ser o de Ray Bradbury e sua distopia sobre um futuro sem livros. A prova material acaba de chegar a nós através dessa coletânea de textos publicada sob o título de Prazer em queimar. Organizado por Donn Albright, o livro segue o rastro indiciado pelo próprio escritor estadunidense num comentário sobre seu romance mais conhecido e reúne uma variedade de textos que antecipam o mundo e as situações de Fahrenheit 451.

No início dos anos 1950, Ray Bradbury escreveu cinco contos, chamados por ele de “cinco pulos breves” para “um grande salto”: “Fogueira”, “Fênix brilhante”, “Os feiticeiros loucos de Marte”, “Carnaval da loucura” e “O pedestre”. Escritos sequencialmente nessa ordem, suas narrativas, apesar de se referirem especificamente ao tema principal de sua distopia, não constituem uma unidade temporal. A narrativa do segundo texto, por exemplo, situada em abril de 2022 se aproxima de três situações específicas: o retorno repentino de antigo usuário de uma biblioteca sob ordens do governo para o trabalho de queima dos livros; a encenação de um atendente que arrasta o censurador para um café enquanto o confronta com uma variedade de figuras de tinta e papel que tomam forma expletiva pelo que dizem pela boca das pessoas que a elas se associam identitariamente; e a purgação dos livros no incinerador. O que chama atenção neste texto é, no âmbito das metamorfoses, a transformação do censor em criatura tomada por uma misteriosa cegueira que rouba não a luz dos olhos mas os próprios órgãos, síntese da grande metáfora sobre a incapacidade para o conhecimento ou da ignorância que o impele para a falta de discernimento das coisas. Esta cidade, por sua vez, nos remete para o lugar dos homens-livros numa ocasião quando seu governo decide recuperar o modelo passado em que não o Estado mas a própria população escolheu viver apenas para o universo imediatista da imagem.

Se em “Fênix brilhante” se entrevê as marcas distintivas de um Estado Totalitário, este se materializa plenamente no último dos “cinco pulos breves”. Situada em 2131 d. C., a narrativa de “O pedestre” testemunha a prisão de um escritor, profissão tornada obsoleta numa sociedade que não se relaciona mais com revistas e livros, simplesmente porque, depois de anos do mesmo exercício de vaguear pelas ruas vazias à noite, é descoberto pela polícia e arrastado, sem qualquer razão conveniente, para uma unidade do Centro de Pesquisas sobre Tendências Regressivas. Entre esses dois textos, notamos que Ray Bradbury amplia uma compreensão sobre as forças do poder, pensado a princípio como uma extensão do que já se sabia sobre as sociedades de controle e depois como uma força distribuída pela própria população e não emanada de um centro específico. Quer dizer, amplia-se a noção política do termo pela aproximação do conceito de alienação do homem pela cultura de massas. A cidade de “O pedestre” é facilmente confundida com um tempo quando ser cidadão é estar uniformizado pelos mesmos padrões comportamentais e pela cultura de massa.

Estes cinco contos se guiam por um total fechamento da comunidade humana, o que é, por si só, um descrédito radical nos destinos da civilização. Mas, se na grande maioria das vezes, são textos que fotografam o desfazimento, o trânsito dessa coletividade pela deterioração da humanidade, é em “Fogueira” que o fim definitivo se realiza. O leitor de Fahrenheit 451 se lembrará que a cidade abandonada por Montag está à beira de uma grande guerra sempre acreditada por seus habitantes como um acontecimento de ordem prática e cirúrgica. Porque o narrador neste romance não é possuidor de um olhar universal, mas acoplado o ponto de visão do protagonista, não é possível alcançar o destino da cidade, ainda que sua imagem distante se apresente ao alcance do protagonista. Mas, poderíamos compor essa lacuna fazendo de “Fogueira” extensão para esse instante. Numa sociedade tomada pela segmentação de conteúdo, em que a política do cancelamento alcançou a força do autocancelamento não é difícil de apostar que o seu fim seja a própria implosão, por mais cruel que possa parecer este sentido entre uma espécie capaz de construir objetos de grande maravilha como descreve sobre a arte uma das personagens de “Fogueira”.



Este conto explica qual o coquetel pensado por Ray Bradbury capaz de arrastar a civilização para fúria da autodestruição; nele, o apagamento da arte é apenas um sintoma entre os graves rumos ensaiados pelas novas políticas de rasura da história controle dos sentidos e não é, como muito se lê, advento de um estado totalitário mas de um mecanismo de controle fabricado no interior das próprias comunidades. A isto somam-se o esboroamento da linguagem incapaz de nos acompanhar enquanto ferramenta de comunicação e o deslumbramento do homem com os artefatos tecnológicos que, indiscretamente, violam as relações sociais. É singular neste sentido o conto “Um grilo na lareira” cuja narrativa registra a transformação da rotina na vida de um casal depois que na sua casa o Estado implanta um serviço de escuta. Contraditoriamente, essa interferência obriga aos dois a restabelecerem um modelo de vida incompatível com o seu tempo, centrado na atenção um ao outro e no desenvolvimento de atividades que lhe são favoráveis mas impraticáveis na vida comum; acreditam que essa encenação favorece aos órgãos de controle saberem sobre a inocência dos dois. Mas, o que a narrativa acompanha é a deterioração acentuada pelo falseamento da realidade e uma inanição pela censura, revelando que silenciar é a pior das práticas no totalitarismo. Neste conto, denuncia-se ainda, como facilmente conseguimos nos adaptar com a retirada silenciosa e paulatina de nossas liberdades. Há uma passagem magistral sobre isso, que recupera o título do conto; uma passagem que é síntese da narrativa e ao mesmo tempo uma pequena fábula capaz de ser lida à parte como uma expressão sobre a nossa necessária vigilância do funcionamento sobre o aparelho social:

“Eu me lembro de uma vez, quando eu era garoto, um grilo entrou em casa. Ele ficava quieto a maior parte do tempo, mas à noite começava a raspar as patas, uma algazarra dos demônios. Tentamos encontrar o grilo. Nunca o achamos. Ele estava numa fresta do chão ou em algum lugar na chaminé. Tirou o nosso sono nas primeiras noites, mas aí a gente se acostumou com ele. Ele ficou um ano lá, acho. Aí, uma noite, a gente foi para cama e alguém disse: ‘Que barulho é esse?’, e todos nós ficamos ouvindo. ‘Eu sei o que é’, disse o pai. ‘É o silêncio. O grilo foi embora.’ E tinha ido mesmo. Morreu ou saiu, nunca soubemos. E ficamos um pouco tristes e solitários com aquele novo som em casa.”

As sociedades descritas por Ray Bradbury nesses contos e em Fahrenheit 451 estão acostumadas ao grilo e o silêncio é o som que as incomodam. Isso serve para os contos até agora citados e serve ainda para dois deles que foram integralmente absorvidos pelo enredo do romance de 1953, com algumas pequenas variações: “Muito depois da meia-noite” e “O bombeiro”. O primeiro pode ser lido como um rascunho do segundo. Se em “A biblioteca”, outro conto ainda não citado aqui e presente na antologia Prazer em queimar, se descreve (indiretamente) o episódio que arrasta Montag para um território de especulações sobre seu papel e as atividades na corporação a morte de um homem e a queima dos seus livros em “Muito depois da meia-noite” o que se processa é a situação decisiva e o instante singular na narrativa de Fahrenheit 451: a queima de uma biblioteca particular com sua proprietária. Este episódio com as transformações na vida do protagonista do romance está mais bem tratado em “O bombeiro”, texto que, por sua extensão e variado núcleo narrativo, chega a ser lido por alguns como uma novela.

Quando atravessamos todos esses caminhos saímos com a sensação de sabermos mais sobre um romance que poderia, em algumas circunstâncias, como as duas lacunas aqui citadas, nos dizer mais. Poderia mas não o faz porque o autor Fahrenheit 451 está atento ao tratamento forma-conteúdo; assim, o objetivo, o sintético, a rapidez e a mesura sobre alguns episódios, sobretudo porque não estão ao alcance do olho do seu protagonista, são, em sua grande parte, participantes na relação pela forma-conteúdo, este designado como uma leitura sobre crise da linguagem verbal evidenciada nas sociedades imersas na imagem.

Ao todo são dezessete histórias reunidas nesta coletânea. Ela nos oferece uma dimensão sobre a obsessão de seu autor pela situação-limite descrita no seu romance de maior sucesso. Estes contos reafirmam duas qualidades da literatura de Ray Bradbury: o pleno domínio do conto na arte de contar histórias e o tratamento singular para o diálogo, mesmo que, a expressão poética que particulariza sua criatividade em textos de As crônicas marcianas ou A cidade inteira dorme ainda se demonstre tão timidamente aqui.

Os textos de Prazer em queimar materializam o afeto inigualável que o autor dedicou ao livro, esse instrumento de saber e de fiel companhia. Mas não atesta que esta tenha sido uma obsessão exclusiva, mesmo porque esta é apenas uma das linhas criativas do escritor. Quer dizer, Fahrenheit 451 e esta antologia formam um grande núcleo irradiador da obra de Ray Bradbury, mas este foi um num autor de variadas obsessões, como pela fantasia e as histórias de suspense e horror que constituem um lado quase inexplorado da maioria dos frequentadores deste curioso planeta que veio até nós há um século e que depois dele nunca mais fomos os mesmos. Sim, esses são parte de uma variante dos grilos: os que nos deixam em alerta sobre o silêncio que se impõe no nosso entorno, silêncio tão perigoso quando a balbúrdia no crepúsculo de uma civilização.


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