O trigo e o joio, de Fernando Namora
Por Pedro Fernandes
O medo é capaz de nos conduzir
para as situações mais assombrosas. Instaurado na consciência, sua força
invisível, de mil garras, infecta e corrompe os corpos de mil maneiras e atinge
com a mesma violência os que nos são próximos física e espiritualmente até se
converter em pavor e, levando uns contra os outros, conduz toda uma ordem para
a loucura, a danação e o caos. Esta poderia ser uma boa síntese sobre O
trigo e o joio, de Fernando Namora. É este um livro que ao lado de Domingo
à tarde sempre se recomenda entre suas principais obras de elevado fulgor
criativo.
Situado no âmbito da ficção
neorrealista, este romance não se centra em exclusivo no drama social das
gentes de periferia, ainda que a questão esteja muito avivada em toda
narrativa: é visível a exploração dos latifundiários sobre os trabalhadores, a
luta incansável dos pequenos produtores submetidos ao jugo da pequena
maquinaria dos que lucram, o conluio entre os poderes de domínio para
manutenção de um status quo baseado na riqueza de poucos e na miséria de
muitos, o dia-a-dia rural na lida com a terra e os volteios de uma natureza tão
inclemente que parece cumprir um papel ao lado das forças dominantes nessa
seara de opressões.
A narrativa compreende um
intervalo de tempo que preenche o aparecimento de duas obsessões de um
trabalhador rural que se firma como elemento sintetizador dos seus
protagonistas principais: a terra, o trabalho e o homem. A primeira obsessão de
Loas é por uma burra capaz de ajudá-lo com trabalho braçal diário; este sonho é
reanimado por um passado no qual a terra demonstrara suas propriedades de restauro
de um pequeno paraíso feito de verdura, dignidade e esperança, embora
impossível para a companheira Joana, sempre afeita às terras do centro-norte com
propícias a uma vida de farturas.
Entre todo sonho e a conquista o
que não deve faltar é empenho. E, nenhuma obsessão, bem se sabe, é puramente
feita da expectativa. Mas, ainda que exista o empenho, é preciso contar, muitas
vezes, com uma harmonia dos astros a fim de que não seja o acaso o elemento
capaz de desfazer a realidade possível em nova ilusão. No caso do sonho dessa
família alentejana constituída também pela pequena Alice e pelo agregado
Barbaças, um tipo rude, primeiramente afeito à vida fácil e à malandragem ainda
que benquisto pela gente do vilarejo onde vive, o acaso é feito de uma ingenuidade
tão pura que, mesmo o destino se compadece dos seus envolvidos e oferece uma alternativa
possível.
Confessada a obsessão ao Barbaças
como se isso fosse o traço definitivo capaz de filiá-lo a esse pequeno grupo, cabe
a ele contribuir para a conquista dessa pequena família de camponeses, numa
espécie de prova sobre a modificação de sua persona (o homem urbano de interesses
escusos pelo homem rural educado pela terra para a vida honesta). E como todo
itinerário de errância do herói, sabemos que esse não é um périplo simples ─ ainda que pareça. O
mundo é feito de múltiplas ciladas, é habitado por variadas tentações contra as
quais, como última garantia de que não somos como todos, só nos resta cedê-las.
É nessa ocasião que ganha forma
outra personagem fundamental para a narrativa seja porque retroalimenta as
forças internas do enredo, seja porque nela se instaura várias camadas de
sentido levando-nos para uma dimensão do imaginário maravilhoso pela expressão
simbólica adquirida ao longo do desenvolvimento da narração. Vieirinha, é esta
a figura, desempenha ainda uma função de trato dialético, pelo trânsito entre o
campo e a cidade, e entre a família de Loas e Barbaças. Compadre de Loas e
bonachão à maneira do primeiro Barbaças, seu secundarismo é assim facilmente
questionável; pela confiança depositada no ajudante e retorno dele recebido ou
pela ingenuidade natural de camponês, Vieirinha é para Loas um seu conselheiro
ou o homem a quem recorre com alguma frequência para tratar sobre os dilemas
pessoais e no trato com a terra, mesmo que o retorno oferecido, ao contrário de
Barbaças, seja sempre questionável e insignificante.
Diz-se que o chefe da família
interessada na aquisição da burra é um aluado que mantém atividades secundárias
com o Diabo; essa característica dominante entre o falatório dos moradores da
vila é favorável às muitas leituras conduzidas pela narrativa acerca da relação
de compadrio entre Loas e Vieirinha. Ora, enquanto se comenta sobre o modo
suspeito dos moradores dessa courela, enquanto nem o próprio Loas sabe ao certo
qual a cara do demônio ainda que justifique encontrá-lo através da leitura do
livro de São Cipriano, o compadre adquire todos os traços que, mesmo não sendo
ele o Diabo, desempenha como tal.
Dentre as várias características
facilmente visíveis porque estão na superfície de suas atitudes na narrativa,
reiteramos a atitude bonacheira, a capacidade de levar todos pelo enredo das
suas histórias do tempo quando viveu na Amazônia brasileira, sua queda para o
conluio que vise o próprio interesse, certa inveja desmedida pelo esforço e o
empenho dos demais ainda que demonstre alguma possibilidade de adquiri-los,
além, é claro, do seu papel em ativar em Loas, e por conseguinte, entre todos
da família, o imperativo do medo, a sombra que corromperá todos os destinos. A segunda
obsessão: o destino da burra.
Se voltarmos ao título do romance,
logo compreenderemos qual o sentido dessa suspeita. Embora seus termos atuem
para evidenciar o espaço de circunscrição das ações desenvolvidas no romance ─ a propriedade de Loas é
favorável ao plantio de trigo ─
não esquecemos de perceber ao lado do primeiro termo o segundo. Este, logo nos remete
para a parábola relatada por Mateus: o joio é o daninho e o trigo o
benévolo. Relata o evangelista que apesar de haver semeado boa semente, um inimigo
veio enquanto dormia o lavrador e semeou joio no meio trigo. E todas essas
expressões são notáveis no funcionamento do enredo do romance de Fernando
Namora que adquire também um estatuto de parábola.
Loas é o homem cegado pelas suas
obsessões. Estas são, se não bem administradas, meio caminho para a soberba e a
ela nosso lavrador se entrega perdidamente quando adquire seu bem de maior
desejo; quer do bom e melhor não para o bem da animália mas para exibi-la e nem
mesmo hesita em ir ao vilarejo exclusivamente para que as gentes possam se
morder de inveja da sua conquista. A obsessão e depois a soberba impedem-no de
perceber a sorrateira presença do mau lavrador, este que transformará em definitivo
o fruto em joio. A descoberta dessa possibilidade ─ ardilosamente nunca demonstrada pela
narrativa ─ conduz
a personagem para um pesadelo que lhe tolda todos os sentidos.
Neste ponto, se estabelece o melhor
do romance; quando o narrador se arrasta por entre os dilemas de uma consciência
entre a angústia e a perturbação, consumida ora pela ganância de sua conquista,
ora pela relutância de admitir que introduziu no seu pequeno paraíso o mal.
Loas é fatalmente atingido por sua própria ambição. Incapaz de se compreender
no dilema criado porque padece da crença sobre a inviolabilidade de uma verdade
jogada pelo seu compadre e porque passa a interpretar o mundo à luz dessa
verdade, um possível retorno dos sentidos, quando chega, já é atrasadamente. Tudo
na narrativa de O trigo e o joio se elabora para um crescendo que
muito tem do sabor trágico, isto é, tudo alcança para o instante quando é
impossível para o herói se livrar da sentença para a qual nasceu condenado.
Nesse caso, o de nunca alcançar recuperar o passado perdido ou o futuro
idealizado.
Obviamente que este fatalismo não
é produto exclusivo de uma determinação do acaso. Existe uma ordem social, esta
sim o verdadeiro destino, da qual as personagens sem perceberem não podem
modificá-la sozinhas, apenas com boa intenção e esforço. A primeira tentativa
de compra da burra resulta na prisão de Barbaças e de Vieirinha. No galpão onde
ficam reclusos até o esclarecimento total do episódio motivador dessa situação,
se desenvolve uma situação aparentemente sem grande expressão, mas que
esclarece exatamente isso que agora afirmamos: o homem determinado pelas
circunstâncias e, se desprovido de forças coletivas, a elas condenado. Nesta
ocasião que cobra a presença de dois dos grandes latifundiários do vilarejo, do
próprio Loas, dos acusados de atentado ao pudor, e das autoridades policiais,
compreendemos quem determina o funcionamento das roldanas deste pequeno aparelho
que é uma metonímia da própria história: o capital financeiro do senhorio do
poder. Outra vez voltamos ao simbolismo da parábola. Os do mando, sabe-se,
sempre mantiveram entre os oprimidos seus cúmplices. Logo, qual a possibilidade
de frutificação da seara?
Os leitores desse tempo podem
acusar as narrativas do neorrealismo de ultrapassadas pela atenção que devotam
a um drama da transição entre o homem do campo para o homem da cidade ou pela
singularização do dilema social. Mas isso não é uma verdade absoluta. Basta observarmos
que as denúncias levantadas em obras como esta de Fernando Namora são
universais; basta compreendermos que no lugar dos camponeses ─ e não é que estes
tenham deixado de existir ─
estão agora outras figuras que o sistema de domínio universal, o mesmo com
pequenas variações desde remotas eras, persiste em colocar na zona da exclusão.
Isto é, o valor desses romances, situados não no limite do panfletismo social,
mas do drama humano, é o de nos oferecer uma leitura vivaz tanto sobre as
nossas subjetividades quanto sobre nossa condição na maquinaria dos sistemas de
controle.
O que aqui se ensaiou demonstrar
foram duas das múltiplas possibilidades de leitura: uma de viés mais simbólico e
que responde por essa dimensão subjetiva e outra que visa levar o leitor a
entender como o romancista formula sua composição de maneira a oferecer uma
dialética das implicâncias do social na vida dos seus indivíduos. Fora isso,
este é um romance que nos comove profundamente: a vivacidade das situações,
como se desenvolve o dilema psicológico das personagens ─ até mesmo como tudo reverbera na maneira
como o narrador observa a burra, elemento capaz de nos arrastar para os
episódios de maior emoção ─
e o fatalismo das situações fazem com saiamos desse universo diferente de
quando entramos. Nem todas obras permitem esse exercício, apenas as escritas
com a maestria do pleno domínio das faculdades representativas alcançadas
apenas pela literatura.
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