O eu que não somos e o desejo que não conhecemos
Por Rafael Kafka
Alexander Calder |
Decidi ler Lacan por questões de
saúde mental. Optei há algumas semanas em iniciar o processo de análise para
cuidar de algumas questões emocionais que muito me afligem há anos. Recomendado
por um amigo, decidi tentar e ao mesmo tempo iniciei o seminário que fala da
questão do eu dentro da teoria psicanalítica. A frase mais célebre desse texto
é sem dúvida alguma simples e profunda: “o eu é o outro”.
Temos a ilusão de vivermos em uma
personalidade precisa e fechada em seus moldes cristalizados. Contemplamos
nosso ser como um objeto que se apresenta a si como opaco, bem definido e nossa
personalidade é um discurso que permeia cada uma de nossas ações. Nesse
sentido, presos ao ideal cartesiano, separamos nossa percepção do eu do objeto
contemplado e vivemos na paz nadificadora que reafirma que somos seres fechados
vivos enquanto o outro está delimitado em todas as suas características
determinadas.
O caminho da liberdade, para falar
como Sartre, perpassa pela ideia de uma consciência que se reconhece como
sujeito inacabado e que se relaciona com o outro pela falta. A falta é o desejo
e ela guia nossos passos rumo ao diálogo com o outro. Reconhecer a falta é
reconhecer que muitas vezes nem sabemos o que ela é e que podemos estar
condicionados a uma ideia de ser que foi aprendida e reificada por nós.
Somos o desconhecido no qual devemos
mergulhar se queremos um caminho mais livre e autônomo. Olhamos para nós e
muitas vezes para o mundo com o olhar complacente de quem pensa saber tudo, de
dominar as dimensões do ser contemplado e do ser que contempla com toda nossa
argúcia. Começo a entender o quanto de neuroses e psicoses nascem daí, o quanto
de ressentimento marca nossas ações por vermos no outro um objeto que foge às
nossas expectativas, que se volta contra nós e por vermos em nós um objeto que
não se adéqua ao nosso discurso e por isso mesmo negamos com todas as nossas
forças.
Interessante reflexão sobre isso é
provocada pelo excelente O conto da ilha desconhecida, de José Saramago. O homem
do barco é um sujeito que começa a história querendo uma embarcação que o
levasse a encontrar a ilha desconhecida. No processo, ele trava contato com a
moça da limpeza que decide ir com ele nesse processo de busca, rompendo sua
condição estática de serva do rei, símbolo da burocracia estatal.
O conto segue a lógica similar à
de muitos outros textos saramaguianos,
com diálogos fluidos que se misturam a uma narrativa que assume um ar de
tergiversação, de conversa casual e banal, culminando, porém, em um grande
processo de descoberta. A relação com Lacan e a psicanálise em si pode ser
reforçada pela presença de uma realidade onírica ao final do texto, em que o
barco aparece cheio de animais e marinheiros, esses contentes em ficar no
primeiro lugar de terra firme que encontrarem. Para eles o que importa é a
segurança.
Se o começo do conto lembra por
demais a parábola de Kafka sobre o homem diante da lei, essa passagem remete à
arca de Noé, com a água sendo um espaço vago de indefinição e a terra o recanto
sagrado da paz e da tranquilidade. Ao acordar de seu sonho, o homem se descobre
envolvido pelo corpo da mulher e batiza seu barco de “Ilha Desconhecida”. Tal
ato marca um renascimento, um processo de sublimação em que o eu se descobre um
ser impreciso a navegar por um mundo desconhecido e como no radical e
necessário corte lacaniano no contexto analítico a história se acaba justamente
quando o homem do barco e sua companheira seguem o rumo da imprecisão.
Processo similar de corte existe
no filme Terapia intensiva, de Arnaud Desplechin. O protagonista Jimmy,
magnificamente interpretado por Benício Del Toro, volta cheio de dores e
traumas da segunda guerra mundial. Levado a um hospital sem obter resultados
concretos para suas mazelas, ele é encaminhado para acompanhamento com George
Devereux (Mathieu Almaric) com quem aos poucos vai revisitando seu passado e
descobrindo que tais traumas em verdade não se ligam à guerra e sim ao universo
antropológico e psicossocial de Jimmy, oriundo de uma tribo indígena.
Vemos no filme como a relação
psicanalítica nesse momento era ainda algo impreciso e que se confundia demais
com uma relação fraterna, o que gera um processo de envolvimento mais
tormentoso e concomitantemente mais difícil de ser rompido. Terapia intensiva é um filme difícil, pois os diálogos centrados nas lembranças e sonhos de Jimmy
revelam temas universais individuais e coletivos, como o massacre dos povos
nativos e o preconceito com o qual precisam lidar, as questões de sexualidade
envolvendo a relação com o outro feminino e outros temas.
O corte se dá quando Jimmy decide
efetuar uma ação que marca o reencontro de si consigo, mas a partir daí o filme
se encerra e cabe ao leitor pensar se alimenta a curiosidade do que vai ocorrer
ou se deixa Jimmy em paz com sua navegação imprecisa e começa a se ver como um sujeito
também nesse processo de perceber uma ilha desconhecida.
Penso que somente uma consciência
que se reconheça como imprecisa consiga vislumbrar a liberdade em uma forma
mais plena. A angústia é a prova da autenticidade de uma condição que a todo
instante se coloca dentro do processo de descoberta e auto descoberta como
tendo sempre muito a descobrir de si mesma, sem um espaço seguro a chegar. A
existência é aprendizagem e está só se torna estanque quando o processo de
existir para.
Até lá, navegaremos pensando no
mundo como uma série de visões novas a serem contempladas por esse ser que
somos e não sabemos o que é e por essa falta que nos guia sempre no rumo do
desejo.
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