Nudes Existenciais, de Maria Vaz


Por Pedro Belo Clara 



Apresenta-se o livro de estreia da nossa estimada colunista, nascido após várias publicações dispersas (uma delas culminando na outorga do Prémio de Poesia Fernanda de Castro) e participações em antologias poéticas.

Natural de Vila Flor, um pacato lugar de Trás-Os-Montes, na região nordeste de Portugal, Maria Vaz é formada em Direito e Mestre em Ciências Jurídico-Criminais. Não obstante, a expressão poética permanece bastante viva em si, conhecendo agora uma merecida edição (e há muito esperada, dirão os seguidores mais antigos).

Antes de iniciar qualquer viagem que seja por este trabalho, todo o leitor deparar-se-á com uma expressão impressa na capa, resgatada a um dos poemas que neste volume se compilam, logo exposta como advertência ou apenas batuta pronta a ensaiar o tom: «Há poesia bastante antes de qualquer poema.»

Num sentido lato, a expressão, que intriga, poderá querer retomar, em aparência, um debate talvez centenário entre poetas: Qual o sentido da poesia? É coisa que mereça o esforço da materialização? Pois se há poesia suficiente a anteceder todo o poema, cada poema não passará, assim, duma tentativa torpe, muito torpe, de captar algo sentido mas indizível? Será um eterno labor de Sísifo?

É factual que muito há em redor de nós que, a cada dia, passa bem ao largo da mente racional, pormenores de rodapé que um olhar atento capta e um coração receptivo sabe sentir, mas a lógica não o explica. Será quase como que colocar o silêncio em palavra, acto esse que não se tratando de paradoxo será, ao menos, uma enorme tolice.

A materialização do verso torna-o algo concreto, mesmo que pareça obscuro, mas a fonte donde bebeu continua a jorrar além-razão. Para quê escrever, então? Desafio contra a inevitabilidade da morte? O trazer algo de definitivo e durável a um mundo atado à sua natureza efémera? Afirmação de identidade pessoal num mundo fadado ao esquecimento?

Não obstante a validade de toda a pergunta, que se recorde, antes, o sentimento que invade o poeta no acto da escrita, que o enfeitiça e domina sem que nada possa objectar em contrário, um mistério tão insondável como as coisas mais obscuras, que repele e atrai, alimentado por «imaterialidades que dão azo à primeira letra» (“O alívio existencial”). Talvez por aquilo que sente quem por tal magia é visitado se justifique todo o esforço do ofício, ainda que possa parecer tão breve e vago o sentido ao olhar alheio: «A poesia é uma velha amiga da libertação» (idem).

O poema em causa ensina-nos ainda que apesar dessa liberdade latente ela é, em sua expressão, aprisionada, pois encontra-se invariavelmente ligada ao sentimento, que confere rumo a esse impulso tão selvagem e genuíno:

Uma liberdade, às vezes, presa. Por dentro.
Pelo que se traz no fundinho do miocárdio.
Outro indisciplinado.
               
Para quem sente em si o ímpeto não é hipótese a sua negação. Até porque pode ser tomado por um caminho de autoconhecimento, cujo trilhar se torna essencial ao ser que se busca. A criação poética, assim, torna-se num mergulho afoito em nós mesmos contra todas as prudências e reflexões, pois há um ente que anseia pelo encontro consigo mesmo, pelo resgate da sua forma mais depurada e, talvez, já esquecida. É um poema chamado, justamente, “Um ofício” que nos lembra essa outra faceta daquilo a que muitos já chamaram de “arte maldita”:

Escrever;
Desbravar terrenos ocultos;
Esclarecer obscurantismos;
Caminhar com ideias claras:
traduzir a consciência dos instantes
em ondas dactilografadas.

Foquemo-nos agora no título do livro, que desde logo cativa pela sua originalidade, diríamos, jovial.

Este “Nudes”, ou seja, fotografias íntimas por palavras ilustradas, são retratos dum coração que se despe, abrindo a porta do seu quarto interior – as «linhas escritas em caderninhos coloridos / que agora são de todos» (“Sem utilitarismo”). São sussurros, por vezes desabafos, em tom diáfano dum ser vivente, logo sujeito ao capricho das estações: amar, sofrer, sorrir e chorar; um ser que sem se impor aos demais, respeitando tanto os contrastes alheios quanto gostaria de ver os seus respeitados, canta como melhor sabe e pode a canção que o habita (ou talvez a canção que é) em toda a extensão de compassos por onde se espraia; pinta com as cores de que dispõe na paleta pessoal ao ritmo e balanço que lhe é próprio, o que permite extrair da obra uma elevada e salutar sensação de genuinidade, de honestidade do “eu” para consigo mesmo, fruto duma «maneira simples / e assustadora / de despir a alma» (“Uma ousadia”).

Esta sensação traz-nos outra certeza: o carácter existencial do livro, confirmado logo no seu título, que afirma a presença e a personalidade desse mesmo “eu”. E que melhor modo de o fazer do que navegar até à sua própria raiz? Pois nenhum dos poemas é uma mera folha ao vento, sem ligação à árvore-mãe. Podemos também referir a citação com que se abre a obra, escrita em latim: Ab imo pectore, uma nova confirmação para o conteúdo que em breve nos será apresentado. (Vamos, contudo, abster-nos de fornecer uma possível tradução por modo a deixar intacto aos caríssimos leitores o prazer da sua descoberta.)

De tudo um pouco, portanto, se reúne neste livro, tudo o que vai resultando das vivências do “eu”: encontros e desencontros, paixões e sonhos, pensamentos e ideias – sem ignorar o valor das pequenas coisas que a tudo conferem o brilho, arrisque-se, das estrelas, esses “pequenos nadas” tão caros à autora e aos quais recorre com notória frequência. A mesma, aliás, ao decidir incluir um prefácio escrito por punho próprio, assim como o texto de contracapa, explana de modo muito claro e bem ordenado as cores e os ritmos que compõem o batimento do coração que mora neste trabalho. Veja-se, então: «É um livro de paixões, ideais, humanidade, clareza e profundidade. De filosofia de vida. Autoconhecimento e expansão de horizontes mentais.»

Como tal, no caminho que vai trilhando vai expondo espelhos onde o leitor poderá ver o seu rosto, sorrir ao que observa ou até assustar-se com a aparição. Em todo o caso, pode criar-se um fenómeno muito interessante que a arte permite: vermo-nos no outro. Nessa experiência súbita em que as fronteiras se abolem, porque afinal sempre foram ilusórias, que diferença se poderá notar entre ambos? É uma dimensão humana a que subsiste, profunda e sincera, um lugar de comunhão onde relembramos que todos estamos sujeitos ao mesmo, que todos ansiamos o mel do amor e nos ressentimos da amargura da rejeição e da dor; sorrimos ao sol do meio-dia e tememos as enxurradas súbitas que tudo arrasam à sua passagem; que por tantas vezes nos sabemos cegos ao leme duma embarcação tremenda, mal se equilibrando em mar revolto. É a base da compaixão, em suma: «Na imperfeição somos todos iguais» (“Uma graça de Hermes sobre os erros de Cupido” – poema interessantíssimo, permita-se o acrescento, escrito em jeito de lição, que conjuga os sentimentos e dúvidas que emergem quando os primeiros rebates da paixão se fazem soar com actos e termos do universo jurídico.)

Importa levar em conta a advertência da autora, ao admitir que esta obra apresenta o caos e as emoções reais transpostas para os poemas são intelectualizadas (lembre-se Fernando Pessoa neste ponto) como forma de resistência àquilo que denomina por “consumismo da imagem”. Porém, sobra em vibração muito ténue uma certa sensação se tal não será, ao mesmo tempo, um modo de defesa contra a exposição excessiva que a poesia permite (se não obriga), ainda que facilmente se argumente com a velha máxima que aponta o poeta como fingidor. Se assim for, não se deixe a ideia incompleta e aprofunde-se o suficiente para compreender que nesse fingimento a própria verdade é propositadamente vestida de mentira.

Apesar deste aspecto, não sobra uma atenção exageradamente centrada nele, não tropeçamos em poemas que são palco de exibição de emoções na sua expressão mais primitiva ou refinada, sequer com a dita indumentária da intelectualização. Há uma intenção clara e definida, mesmo que não seja cumprida na totalidade: um desapego que nasce como flor na árvore da liberdade, tida e assumida por valor primordial e intocável. Veja-se a relativização que é cifrada pelo “A autoanálise”: «E somos mais do que sentimos / ou do que pensamos sentir». Dois versos que logo nos elevam a um novo patamar. Não por indiferença, é muito importante sublinhar, mas porque a mais pura expressão do amor compreende, claro está, liberdade: «Há coisas que ninguém nos tira. / Por isso, mais vale deixá-las soltas» (“A filosofia do desapego”). Assim sendo, a intenção interior, essa bússola que marca o rumo através dos dias, é limpa e certa:

E no meio de tanta coisa,
de tanta intelectualização,
duas únicas certezas:
ser feliz e prescindir;
amar além da razão.

(“Ágape”)

Nenhum Homem é uma ilha. Partilhamos um vasto espaço com outros como nós, sujeitos às mesmas intempéries e em busca do mesmo porto seguro, logo inevitável se torna a experiência, o toque, o choque, a atracção, a repulsa. As ditas “colisões existenciais” (título dum dos poemas) a que ninguém escapa, querendo-o ou não. Daí que seja natural o emergir de certas contrariedades emocionais, e não só, no universo interior do ser vivente, como resultado da experiência quotidiana. Uma das mais comuns é a vontade de viver abertamente e assim se dar ao mundo, sem reserva ou cautela. Porém, mais cedo ou mais tarde aprende-se como as pedras não possuem a suavidade das rosas:  

Quem me mandou ter empatia
e sentimentos
em tempos voláteis,
consciências ausentes
e egos gigantes?

(“Uma pseudo mentira”)

As flores mais dóceis e generosas, quando brotam entre espinhos, facilmente ferem as suas pétalas. Com o passar dos dias, poderão até arrepender-se e maldizer a natureza que lhes é inata, mas apenas até ao momento em que descobrem a força por detrás duma aparente fraqueza. Num palco de fingimentos e corações empedernidos, facilmente um coração de timbre inverso se fere, facilmente sente o exílio e a solidão interior análogos aos duma ovelha azul nascida no seio dum rebanho tão pálido quanto qualquer outro. Mas a dureza da experiência aconselha a olhar para dentro. Quando assim é, a maravilha acontece: encontramo-nos sós diante de nós mesmos, uma aparição ínclita qual sol cintilando no auge da estação.

Assim se entende que o primeiro passo é a fortificação da expressão mais importante do amor: o próprio. Melhor saberá amar um coração amadurecido, e para tal valer-lhe-á o golpe das experiências passadas, que culminam no entendimento de que um amor maduro só se torna possível quando a liberdade entra na equação: «(…) nunca por carência ou estado de necessidade» (“Uma graça de Hermes sobre os erros de Cupido”). Mas para tal acontecer o amor deve estar enraizado, deve brotar do canteiro donde é devido desabrochar. Tanto que, assim, se torna simplesmente amor, um estado de ser onde não existe sequer amador ou amado, apenas… amor:

Amor? Outro. Próprio.
Este de que vos falo,
Que vem de dentro.
Miragem e mistério.
A constante das variáveis.

(“A eterna busca do que se tem”)

Trata-se de material altamente inflamável em corações imaturos, mas não só – que o digam os mais avisados, já conhecedores da lentidão do amadurecimento. Afinal, «o amor não é das ciências exatas» (“O dualismo conciliável”), não requer cogitação, mas a sinceridade do sentir. E a fuga da ilusão e da mentira só poderá ser um sinal de maturidade, o nome dado à terra finalmente fértil donde brota esse amor mais puro, mais certo, mais natural – e livre, com toda a certeza.

É inevitável que, tratando de assuntos desta índole e nos moldes em que a autora o faz, se espelhe a natureza do criador naquilo que vai criando. Aliás, é bem certo que a criação mais autêntica ou cintilante, seja ela qual for, tenha ou não categoria, é a que recebe em si a parte etérea de quem a cria. Quando o artesão mergulha na obra que molda e nela deixa algo de si, inevitavelmente a peça adquirirá um brilho ímpar, capaz de lutar contra a maior das invernias. Assim, a autora também se dá a conhecer através destes poemas, apesar da capa de disfarce que as emoções intelectualizadas impõem.

Certos poemas deixam perceber um carácter sonhador e os espinhos que tal comporta, uma personalidade solidária e contestatária, com vincadas preocupações sociais e crítica dos comportamentos mais mundanos, seja a hipocrisia intelectual ou a ironia de raízes, quase sempre, maliciosas. Em “Apologia do diálogo” obtemos um exemplo duma visão maturada pelas experiências proporcionadas pelo mundo:

Nunca gostei muito
do ‘porque sim’
e do ‘porque não’.
E não,
não é um problema
de insubmissão.
É uma reticência,
um medo em vão,
de que possam justificar tudo
com o ‘porque sim’
e o ‘porque não’.

Advém do mesmo modo uma natureza curiosa e de pendor exploratório como meio sincero de simplesmente aproveitar a dádiva da existência, entrecruzado com um carácter transparente que comprova uma genuinidade inerente. Veja-se as primeiras linhas de “Entre Júpiter, Neptuno e Hades”:

Deve ter sido a minha avó
a primeira a reparar.
Tinha a mania de lhe perguntar
o que existia para além das estrelas.
Como quem diz, para além do conhecido.

Ainda poderemos destacar uma notória ligação à filosofia como disciplina em si, nascida duma óbvia atracção pessoal. Embora vários possam traduzir este gosto, o poema “Ágape”, o mais longo da obra, surge como um óptimo exemplo por ter sido construído com visitas breves às principais ideias de certos filósofos (e não só, adiantemos).

Há um forte pendor racional a pautar estes poemas, que em diversas ocasiões sobrepõe-se aos laivos mais bravios da emoção transmitida. Este aspecto dual, aliás, é um dos vários com que nos deparamos ao longo das páginas, tentando coabitar numa tensão que se pretende equilibrada e harmoniosa na melhor das possibilidades. Num universo dual, convenhamos, nem poderia ser diferente. Até porque «o verso é concreto / e a vida etérea» (“Poesia existencial”).

Para apresentar todo este conteúdo que temos vindo a abordar, que como se constatou é variado, os poemas surgem sem grande esforço ou preocupação estética, impressos quase ao mesmo ritmo em que terão sido escritos, filhos dum gesto natural e fluido. Não obstante, muitos nascem duma abordagem algo científica dentro da dita racionalidade, e o léxico escolhido, bem como a construção de certos versos, pode para alguns leitores constituir uma dificuldade à melhor compreensão de cada um. Facilmente somos levados a campos tão distintos e vastos quanto a astronomia, a física ou a mitologia, embora nem sempre seja à sua temática, mas sim expressões que a tal remetem. Essa característica, porém, não aparece como fruto duma intenção hermética, mesmo que à superfície se pudesse aceitar a ideia, antes dum estilo próprio, bem definido e, assim, assumido sem pudor. É modo de expressão, portanto, não subterfúgio de coisas mais íntimas.

A rima existe de forma esparsa, mas escapa a métricas e a esquemas rígidos. O mais comum de se ler é, assim, o verso livre, ou não fosse a própria liberdade um aspecto transversal à obra em si. Sobre este aspecto, estamos perante poemas de estrutura muito natural e simples, intenção bem consciente na autora, que a define como uma prova de “sinceridade intelectual” (Prefácio).

Diríamos da própria obra um livro recheado dos tais “pequenos nadas” que à autora são preciosidades inestimáveis, aparentes insignificâncias que perfazem o todo mutável do quotidiano – embora sejam a sua parte mais apetecível e significativa. O coração mais dormente não os saberá ver e sentir, e a sua valorização, neste trabalho, pode muito bem surgir como um meio de combate sereno contra a eterna mutação das coisas e a efemeridade de tudo, lembrando a importância de saborear o momento e uma certa noção de eternidade que nele reside.

Por toda a expressão oferecida, entende-se na obra um modo íntimo de ser e estar. Plantada em tom diarístico de cariz introspectivo, este Nudes Existenciais é uma flor que agora se abre ao mundo, pronta a deixar nas dobras do vento o seu pólen singular, o seu aroma de coisa viva. Pois no que escreve Maria Vaz verte inegavelmente o seu perfume mais íntimo e natural. Esta autenticidade, que num mundo de máscaras como o de hoje requer, diga-se, uma certa coragem, é certamente algo que merece o nosso profundo louvor.

As nossas essências colidiram
algures em um tempo distante.
Não somos mais do que assimilações
de causalidades perdidas no caos.
Despertamos tonalidades vagas
em almas anestesiadas pelo banal.
De vez em quando,
encontramos brilho na complexidade do mistério,
enquanto rejubilamos no meio do vácuo.
E cintilamos como supernovas
prestes a eclodir.

(“Ordem interior e caos existencial”)


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