“Não precisa chegar”. Os jograis na democracia
Por Wagner Silva Gomes
Hieronymus Bosch. Trípico de Haywain, 1516. (detalhe) |
No período em que os estados
nacionais da Península Ibérica (Portugal e Espanha) não estavam totalmente
definidos (séculos XIII e XIV) e o idioma utilizado era basicamente uma mistura dos
dois, sendo designado como galego-português, floresceu o trovadorismo como
prática literária na lírica.
Foi um movimento cortesão, onde os
trovadores (poetas e compositores) poderiam interpretar suas cantigas ou dá-las
para a interpretação dos Jograis (intérpretes), tudo isso com o objetivo de
produzir um espetáculo, onde entram as soldadeiras (dançarinas que animavam as
apresentações), numa performance em algum palácio, com reis, nobres, clero e
nas grandes festas populares, com a presença de plebeus.
Metricamente os poetas
utilizavam-se da medida velha, isto é, redondilha menor (5 sílabas métricas) e
redondilha maior (7 sílabas métricas).
A partir dessa técnica de se fazer
poesia e canções, é possível afirmar que os músicos da canção de tempos
posteriores foram bastante influenciados pela prática medieval e tudo o que
a envolve. Principalmente quando se entra nas tópicas, que são os temas aos
quais há um conjunto de técnicas onde se pode enquadrar o texto em um tipo
determinado. Para o que interessa aqui, restringirei as tópicas às cantigas de
amor e às cantigas de amigo, me detendo mais especificamente na última.
As cantigas de amor eram
consideradas nobres, ou seja, eram temas desenvolvidos para a nobreza,
totalmente relacionados com o ideal cristão. Assim, quando aparecer em alguma
cantiga a designação Senhor ou Senhora, trata-se de uma cantiga de amor, sempre
com um tom de seriedade, como se se referisse a Deus, em seu louvor.
Já as cantigas de amigo eram
consideradas plebeias, isto é, eram temas desenvolvidos para os plebeus, sendo
assim engraçadas e cheias de ambiguidade. Normalmente nesse tipo de canção
aparece a palavra amigo, mas também pode aparecer as palavras mãe e irmã.
Alguns índices são determinantes
para identificar uma cantiga de amigo: quando uma mulher espera alguém debaixo
de uma árvore; quando ela joga uma pedra no lago; quando esta lava o cabelo;
quando o brial (vestido) dela é rasgado. São indicações de que está em curso a
sedução sexual.
Assim, adaptando o trovadorismo ao
contexto da canção popular brasileira contemporânea, analiso as canções “Coqueiro verde”, de Erasmo Carlos e Roberto Carlos, e “Cabide”, da Ana Carolina, mostrando
a evolução ao lidar com a tópica da cantiga de amigo aplicando nela
principalmente os valores democráticos de liberdade de pensamento, livre
associação, quando não fere à lei, que implicam ao feminismo formas de mulheres
e homens vivenciar e expressar sentimentos, emoções, ideais laicos no estilo de
vida que há na cidade.
Coqueiro Verde
Em frente ao coqueiro verde
Esperei uma eternidade
Já fumei um cigarro e meio
E Narinha não veio
Como diz Leila Diniz
Homem tem que ser durão
Se ela não chegar agora
Não precisa chegar
Pois eu vou-me embora
Vou ler o meu Pasquim
Se ela chega e não me vê
Sai correndo atrás de mim
A canção tem ampla influência das
cantigas de amigo, pois uma das caraterísticas dessas é uma camponesa
colocar-se sob a sombra de uma árvore, sendo assim um lugar comum, onde o
namorado a aguarda. No entanto, ao invés da camponesa esperar o homem que
sempre foi de se aventurar por caça, comércio, bares etc., quem espera é o
homem (apelo feminista desconstruindo um estereótipo), que se utiliza de marcas
contemporâneas presentes nos vocábulos cigarro, Pasquim (jornal), Leila Diniz (atriz
formadora de opinião que brilhou nos anos 1960; é explicita a influência da TV na
vida social).
Mas, o homem, escolhe dos valores feministas da atriz Leila Diniz
apenas o que lhe interessa, isto é, a sua atração por homens que tem o caráter
másculo à flor da pele. Então depois de longa espera, ele se faz de durão
mostrando a masculinidade que a sua “referência” na formação de opinião admira.
Se antes a mulher esperava uma eternidade, como a louvar o encontro com o
senhor (comparado a Deus), agora é ela que deve ser esperada. Só que esse homem
não foi à fundo na desconstrução do patriarcado reconhecendo que a mulher tem o
direito de atrasar e de ser esperada uma eternidade. Então ao invés de ser
louvada ela é praguejada.
Em outro contexto, já no século XXI (ao contrário da anterior, que é de depois da segunda metade do século XX), na
música “Cabide”, que tem interpretação marcante no dueto entre a compositora da
música, Ana Carolina, e Luiz Melodia (nesse caso jograis de muita importância
para o sentido da poesia), é como se a mulher se enfurecesse por o homem não
poder esperar por muito tempo ou por ele fazê-la esperar em casa com suas
saídas para farrear. Então ela, usando a conjunção se traça possibilidades
imaginadas de um mundo democrático não patriarcal, onde as mulheres têm os
mesmos direitos, na prática, que os homens. Segue a letra:
Cabide
E se eu fugir e sair por aí na
noitada
Me acabando de rir
E se eu disser que não digo, e não
ligo, e que fico
E que só vou aprontar
É que eu sambo direitinho, assim
bem miudinho,
Cê não sabe acompanhar
Vou arrancar sua blusa e pôr no
meu cabide só pra pendurar
Quero ver se você tem atitude
E se vai me encarar
E se eu sumir dos lugares, dos
bares, esquinas
E ninguém me encontrar
E se me virem sambando até de
madrugada
E você for até lá
É que eu sambo direitinho assim
bem miudinho,
Sei que você vai gostar
Vou arrancar sua blusa e pôr no
meu cabide só pra pendurar
Quero ver se você tem atitude e se
vai me encarar
Chega de fazer fumaça, de contar
vantagem
Quero ver chegar junto pra me
juntar
Me fazer sentir mais viva
Me apertar o corpo e a alma
Me fazendo suar
Quero beijos sem tréguas
Quero sete mil léguas sem
descansar
Quero ver se você tem atitude e se
vai me encarar.
E se eu fugir e sair por ai na
noitada
Me acabando de rir
E se eu disser que não digo, e não
ligo, e que fico
E que só vou aprontar
É que eu mando direitinho, assim
bem miudinho,
Sei que você vai gostar
Vou arrancar sua blusa e pôr no
meu cabide só pra pendurar
Quero ver se você tem atitude e se
vai encarar
Quero ver se você tem atitude e se
vai me encarar
Quero ver se você tem atitude e se
vai me encarar
Ana Carolina, rompendo com a
passividade feminina da mulher sendo cortejada, do brial rasgado como sinal de
sedução sexual, sugere arrancar a blusa do companheiro e assume a liberdade de
festejar no ambiente que quiser e como quiser, tendo preferência por samba,
cobrando inclusive maior atitude carnal
e de companheirismo do parceiro (ou parceira), o que aproximaria a canção de
uma cantiga de amigo.
É tamanha a provocação que o tom da canção se aproxima da
zombaria da mulher vendo o seu imaginário realizado. Mas como é algo imaginado
a seriedade no assunto prevalece, sendo a poesia um modo do que os casais
chamam hoje de discutir a relação (como se ela dissesse: ou você muda ou eu
farei o mesmo, pois tenho direito – “e assim quero ver se você tem atitude e se
vai me encarar”, como eu te encaro e tenho atitude quando você sai pra farrear
e volta tirando a minha blusa querendo fazer amor).
Aí então, com essa espera do homem e as ações
consequentes a mulher estaria vingada na tradição social ocidental, e por
consequência na tradição da canção. Se Erasmo Carlos é conhecido por manter a
sua fama de mau, mesmo tendo escrito músicas em que acolhe os valores feministas
interessados às mulheres, sem que o homem pegasse só o que lhe interessa, Ana
Carolina pergunta: e se eu também manter a minha fama de má? O patriarcalismo
não aguenta. Os que querem a mulher recatada e do lar piram.
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