Jorge Luis Borges, o ser e o tempo
Por Juan Arnau Navarro
Jorge Luis Borges diante a Mesquita Azul, em Istambul. Foto: María Kodama |
Borges joga como uma divindade
hindu. Entre a metáfora e o mito, o infinito. Move despreocupadamente suas asas
no estúdio da rua Maipú e desencadeia um terremoto no Japão. Como num sonho,
Borges é a borboleta, o tremor e as emoções que convoca. Mas ele sabe que não
existe, por isso ri e se desdobra. Conhece o poder da alma para criar sua
própria companhia. Há em seu pulso algo do espanto de quem viu as profundezas:
o eterno retorno de ruínas circulares, a bagatela da personalidade, uma cópia
de uma cópia (como diria Plotino). Ele é o cego que viu e por isso tem medo de
espelhos. Mas ele não arranca os olhos para pensar, como o matemático, que sabe
que a aparência é verdadeira. Há algo filosófico em sua atitude, embora, é
claro, ele o negue. Ele é um simples amante de livros, de mitologias nórdicas,
de certos sonhos que aconteceram na Babilônia ou no Ganges. Como um jogador,
ele embaralha histórias de tempos e lugares distantes, inclinado sobre a mesa
de um subúrbio de Buenos Aires.
Borges acredita que a história
verdadeira é mais poderosa que a oficial e que suas datas essenciais são
secretas. Prefere ser um poeta a um santo, do espanto ao estupor. Entre os
modernos, ele se cerca de reacionários (Schopenhauer, Chesterton, Coleridge) e
foge dos místicos. Embora às vezes tenha confessado um ou outro rapto. Quando lê,
olha de soslaio a passagem do Um para dois, da Unidade para a multiplicidade e
desta para o infinito. Cético, está interessado em ideias teológicas pelo que elas
guardam de singular e maravilhoso. Ele nunca quis ser um guru. Alguns de seus
leitores agradecem.
A filosofia de Borges é lúdica e
literária, mas nem por isso menos séria. Pelo contrário, ele foge continuamente
do dogmatismo e na sua fuga é capaz de alguma pirueta. Alguns de seus textos
têm grande afinidade com o budismo. Mas Borges é um budista discreto. Às vezes
ele cai no barroquismo e depois se arrepende. Não pode evitar, ele também é um
poeta. Em alguns ele refuta o tempo, noutros a personalidade. São tão antigos
quanto a flecha de Zenão ou a carruagem de Menandro, mas ele os atualiza com
agilidade e uma ligeiríssima zombaria. Ele se move com facilidade no círculo
hermenêutico. Essas duas substanciosas palavras referem-se a algo muito
simples: a estrutura circular do entendimento. Para saber algo é preciso
procurar e quem procura é porque já o conhece de alguma forma. Platão chamou de
reminiscência e Borges (seguindo Berkeley) a formula assim: “A retina e a
superfície cutânea invocadas para explicar o visual e o tátil são, por sua vez,
superfícies visuais e táteis.”
As consequências são vertiginosas.
Borges se diverte com a possibilidade (observada pelo budista Vasubandhu) de
não haver nenhum objeto por trás das impressões de nossos sentidos. E ele ousa
dar um passo adiante (aquele dado por Hume e os budistas), negando que haja um sujeito
por trás da percepção das mudanças. Berkeley nega a matéria, Hume nega o
espírito. E Borges, como um Buda feliz, ri. É tão absurdo falar de uma
substância espiritual como de uma substância material. A mente é um teatro onde
aparecem fugazmente impressões, se combinam, desaparecem e reaparecem
transmutadas. Negadas a matéria e o espírito, não há razão para não negar
também o tempo, que não existe fora do momento presente. Borges parece sugerir
que não há outra realidade senão a dos processos mentais, que tudo é mente ou
projeção da mente (individual e coletiva), mas ele não o faz, pois deve fugir
do dogmatismo. No entanto, como poeta, considera que acrescentar à borboleta
que se percebe uma borboleta objetiva é uma duplicação desnecessária. Agregar
um eu às diferentes impressões não é menos desnecessário. Cada estado de
espírito é autossuficiente. Não há eu e não há tempo. Chuang Tzu não “sonha”
que é uma borboleta, nesse exato momento ele “é” uma borboleta. Vivemos um
presente eterno e não é possível saber as datas das coisas.
Tudo isso é muito louco e Borges
sabe disso. Mas essas vertigens não o deixam mareado. Em outros escritos,
propõe-se mostrar que o conceito de indivíduo é um engano (“permitido pela
presunção e pelo hábito”). A ausência de si mesmo era um dos temas essenciais
do budismo, mas em Borges as consequências são mais literárias do que morais.
Ele antecipa o “desaparecimento do autor” de Blanchot e constrói sua estética
sobre isso. Desta forma, ele justifica seu hábito de embaralhar obras
literárias, de misturá-las e associá-las como o faria um cabalista com suas
cartas e o alquimista com suas essências. Uma forma de se tornar invisível, de
confundir o leitor com o escritor, de ilustrar o eterno plágio do literário.
Enquanto o escritor embaralha as palavras, Borges embaralha obras inteiras. O
sonho de Coleridge e o palácio que Kublai Khan construiu (visto em sonho),
Pierre Menard e sua versão de Dom Quixote (idêntica ao original), o xamã que
sonha uma criatura e a inscreve na realidade (para verificar se ela é sonhada
por outro), os exemplos se multiplicam como caminhos bifurcados.
Ele está equivocado, diz o Borges budista,
quem define o self como um conjunto privado de memórias. As memórias não
estão em lugar nenhum, pertencem ao tempo. Quem confunde memória com um depósito
não conhece sua natureza. A pessoa pode se sentir um estranho nos velhos
tempos. A memória é indiferente à ganância do eu. Aqueles que imaginam o self
como uma sucessão de estados de espírito também estão enganados. A sensação de
frio ao caminhar por um corredor não contribui para um eu pré-existente. Não
existe tal eu. É você quem lê essas linhas ou já é outra pessoa?, pergunta ele,
emulando Heráclito.
Entre Pirro e Aristóteles, Borges
escolheu aquele que nada sabe. A linguagem nos fixa ao eu, também a escola, o
censo ou os impostos. Mas o self carece de lógica e se alimenta de
contradições. O cético, entretanto, não consegue permanecer fiel a seus
postulados. Assim que ri, chora, assim que cobiça, desiste, assumindo o
egoísmo, tão romântico e produtivo. Borges não é uma figura do sul, como o
gaúcho que atira a faca em Dahlmann, Borges é uma figura do leste. Uma figura
redonda e mágica, original e vazia. O self é uma urgência lógica sem
conteúdo, o ponto imóvel da fuga do tempo.
* Este texto é uma tradução de “El
ser y el tiempo” publicado aqui no El País.
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