Fahrenheit 451, de Ray Bradbury
Por Pedro Fernandes
Fahrenheit 451 foi
publicado em 1953 e deste então passou a integrar a seleta lista de uma
linhagem do romance que remonta a pelo menos duas décadas antes de quando da
sua origem: a distopia. Trata-se daquela obra que geralmente extrapola os
limites das convenções estabelecidas e que guardam, nem sempre expressamente,
uma interpretação acerca dos seus destinos e as implicações nos destinos da
própria comunidade. Os modelos da ficção distópica estão muito bem determinados
no romance Nós, do escritor soviético Ievguêni Zamiátin; seus herdeiros
exploram desde então as mesmas dimensões que entreveem uma humanidade submetida
aos excessos introduzidos pela era da burocracia e da técnica.
No caso do romance de Ray Bradbury,
a sociedade por ele pensada encontra-se situada no último estágio de
consolidação de uma era pautada exclusivamente pela imagem e na total negação dos
objetos conseguidos ao custo da linguagem escrita. O protótipo desse modelo se
estabelece numa época de advento do imagético com a televisão, a banalização da
fotografia, a consolidação das histórias em quadrinhos e dos primeiros modelos
de interação entre leitor e os objetos de entretenimento. Tanto que, as personagens
de Fahrenheit 451 estão envolvidas no limite entre a aceitação
inquestionável do que finda por ser um novo modelo social e o embate silencioso
contra esse establishment.
Apesar das leituras distorcidas
pela multiplicidade de sentidos alcançadas por este romance desde sua publicação
―
a mais distante é a que tenta filiá-lo ao rol das narrativas acerca dos estados
totalitários, pela compreensão que tínhamos até há pouco sobre tais circunstâncias
―,
Fahrenheit 451 se tornou um mito sobre a era da imagem. Esse lugar
alcançado não se justifica apenas pela posição do romance entre as distopias. É
que, se o protótipo de mundivisão do criador é seu próprio tempo, o da
narrativa é o de outro mito primordial e que nunca perdeu sua essência ao longo
dos milênios; falamos sobre o mito da caverna, de Platão.
A narrativa exemplifica o processo
de libertação do homem da condição de escuridão por meio do conhecimento. Ora, nessa
sociedade criada pelo escritor estadunidense as pessoas estão acorrentadas a
apenas um modelo uniformizador de realidade que lhe é mediada em exclusivo pela
imagem. Síntese dessa condição é Mildred, a mulher entregue a uma vida que diz
ser de convívio com sua família, mas esta é acessada não pelo contato físico mas
por um dispositivo de imagem que domina o espaço da casa onde vive com o seu
companheiro. Nesse universo, os prisioneiros não veem o que se passa com eles e
sim apenas as sombras que se movem ao seu redor. Não é apenas a presença
contínua da imagem na vida doméstica; fora, as gentes nessa sociedade se guiam pela
rapidez, pelo excesso da propaganda estampada em outdoors sem limites de
extensão ou por toda a sorte de parafernália visual e sonora capaz de prender
os sentidos todos para a total separação do mundo natural e, pior, para o
apagamento das práticas linguageiras, as que, em parte nos distingue no âmbito
humano.
Mestre em consumar o tema na
forma, Ray Bradbury deixa que a crise da linguagem, ponto nevrálgico dessa nova
sociedade fundamentada na uniformização e nivelamento por baixo de sua condição,
se instaure no próprio funcionamento do romance arquitetado sob uma linguagem ligeira,
ríspida, repetitiva por vezes, parcelar. A todo tempo as personagens que
atestam uma posição de desobediência civil estão motivadas pela conversa, pelo
diálogo e por certa restauração de uma língua capaz de dizer de si, do outro e
do mundo, em contraponto com o imperativo planificado e esvaziado da imagem.
Liberta da caverna, a jovem
Clarisse ―
o leitor atente para este nome feito de fulgor e luz iluminadora ―
estabelece contato com Montag. O companheiro de Mildred trabalha para o corpo
de bombeiros da cidade. Neste tempo que se supõe de importantes avanços
tecnológicos, o homem conseguiu o total domínio do fogo e para que a corporação
não se tornasse obsoleta foi transformada, seguindo indiretamente um apelo
popular, numa companhia que presta o serviço de limpar a cidade dos
livros. O breve convívio de Montag com Clarisse o transforma no prisioneiro
forçado a olhar o fogo e o mundo liberto dos aparelhos da repetição, do
bloqueio à verdade do mundo. A essa altura, o leitor poderá se perguntar, como
a réplica da alegoria da caverna se sustenta, uma vez que, para Platão, o homem
liberto se torna num incapaz de oferecer a liberdade aos que permanecem na
caverna. Ou seja, se assim, como Clarisse favorece na transformação do bombeiro?
Não há contradições. Ao acompanhar
a rotina de Montag, o narrador sabe que (como todas as personagens que
atravessam seu caminho a empurrá-lo para fora da caverna), apesar de herdeiro
de uma terceira geração de bombeiros, este homem não é igual aos demais pela
predisposição interior que o faz deslocado entre os companheiros de corporação;
seu afastamento da alienação do grupo funciona, assim, como se uma abertura
natural que o favorece buscar, primeiro, uma compreensão sobre seu próprio
lugar de alheado, depois, a compreender o espírito dessa jovem que se torna luz
de seus olhos. Montag é homem curioso. Isolado, torna-se um sujeito reflexivo.
Duas qualidades que não pertencem às gentes submetidas aos princípios
ordenadores. A partir desse encontro, o que narrativa testemunha é o périplo
desse homem na tentativa de resgatar aos outros do mundo das sombras e na sua
própria salvação, uma vez que, seu comportamento se oferece como uma ameaça ao
sistema de domínio.
Parece ser oportuno voltar a leitura
corrente segundo a qual, a sociedade de Fahrenheit 451 é um estado
totalitário centrado na censura e entender por que essa leitura é um tanto
controversa. Os modelos até então vigentes de totalitarismo, quando o romance
foi concebido e publicado, eram aqueles centrado na ideia de uma unidade
determinada de controle ou dos chamados aparelhos de controle. A figura do
ditador ou de uma entidade central está nessa base. Isso até se verifica na
sociedade idealizada por Ray Bradbury, não porque se veja uma presença de
domínio de um eixo principal, mas pelos estamentos que o constituem: o traço de
corporação assente numa instituição como o corpo de bombeiros é o melhor exemplo.
Mas, ficamos aqui.
O leitor notará que a decisão sobre
o valor ultrapassado dos livros não é imposta por um centro de poder; o corpo
de bombeiros é apenas uma instituição refeita de seu papel original porque os
habitantes desse mundo de Fahrenheit 451 foram se distanciando cada vez
mais dos estratos verbais por uma relação direta com os domínios da imagem.
Quer dizer, primeiro por uma negação individual de certos grupos
não-representados pelo conteúdo dos livros até alcançar a total negação desses
objetos. O que se propõe, então? Que, muito antes das formulações de uma tese
sobre a microfísica do poder, o que este romance evidencia é uma crise do estamento
coletivo pela variabilidade das forças de domínio, não mais centradas no estado,
mais na camada maior, esta que, aparentemente, funcionaria como um grande
colchão amortecedor das determinações superiores.
O que determina certa
uniformização social não é mais o poder, no sentido expresso do mando; é a cultura
de massa. Esse domínio, alerta Ray Bradbury, é muito mais perigoso porque sua
eficiência atua não pela imposição, mas pela modificação silenciosa dos hábitos
até a total alienação do homem a um mundo totalmente desfigurado, incapaz de se
percebê-lo em sua variedade de expressões. A uniformização das sociedades é um
princípio dos estados totalitários, é claro. Mas, no caso ora analisado, e por
isso a frequente confusão de leitura, as condições são outras. Talvez, muito
próximas dos modelos vigentes, quando as sociedades permanecem integradas nesse
projeto sem diretriz de achatamento das culturas, no consumo e na acumulação,
além, é claro, da sua acentuada integração com os modelos de vida
experienciados pela imagem e pela desenfreada política do cancelamento e da
lacração. Isto é, os feitos do silenciamento no mundo em curso.
Há uma passagem do romance que
ressalta exatamente seu perigo no tratamento de solidificação das práticas contrárias
aos valores da humanização: quando o chefe do grupo de bombeiros, curiosamente
o mais instruído literariamente, ao recontar para Montag sobre o início da era
que habitam. Este episódio, aliás, é uma das chaves de acesso à grande metáfora
proposta pela narrativa de Fahrenheit 451: a alienação do homem pelos
princípios oferecidos por um tempo quando o próprio homem é reduzido à condição
maquínica.
O desfecho da narrativa é o que
melhor confronta com a mais perigosa de nossas ilusões: o refúgio dos grupos de
resiliência ou, para empregar uma palavra desusada pelo valor corrompido que
alcançou na repetição ideal sem a prática, a resistência. Há quem
encontre nisso a força vivaz sobre a resistência do livro na era da
imagem. Mas, se assim fosse, este romance não seria uma distopia. O limite
alcançado pelo romance é o fim definitivo de uma civilização que se apagará com
o último desse ajuntamento. Sem querer imprimir o valor de profecia a um livro,
mas todo mito aponta certa verdade sobre o nosso fatalismo. E o que continuamos
a fazer para não sucumbir às predeterminações como estas, forjadas pelas nossas
próprias mãos e com consequências tão visíveis, como o empobrecimento do
debate, a negação da história e pulverização dos laços que nos irmanam como peças
de uma mesma comunidade?
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