E então nós dançamos, de Levan Akin
Por Pedro Fernandes
É de compreensão popular que a
melhor maneira de saber lidar com nossos rivais é mantê-los muito de perto.
Poderia ser este um bom motivo norteador para o jovem Merab quando numa dessas radicais
intervenções do acaso vê o seu possível futuro lugar na companhia de balé
georgiano ameaçado devido a chegada de um bailarino com um pouco mais de
atitude. Mas, se fosse dada a oportunidade de intervir no acaso, outro conselho
seria vital: aproximar-se demais dos nossos rivais pode nos prender em
definitivo numa contradança cujos passos tempo nenhum os desfaz. E então nós
dançamos.
A chegada de Irakli num ambiente
feito de alta competição mesmo que o tradicionalíssimo balé georgiano atravesse
uma decadência visível não apenas pela opinião de algumas das personagens ao
longo da narrativa fílmica mas na composição cenográfica do estúdio onde estudam
o grupo de rapazes e mulheres vem quase simultaneamente com uma história
repassada entre os alunos sobre um bailarino da companhia flagrado em sexo com
outro homem o que poderá significar a expulsão definitiva da companhia. Verdade
ou não, a narrativa sub-reptícia funciona como elemento de antecipação para
muitas das situações registradas pela narrativa principal, incluindo o
envolvimento de Merab e Irakli.
Essa fofoca de bastidor chega por
vezes a se confundir com a história possível da misteriosa personagem que, mais
tarde sabemos, representa um impasse não apenas para o protagonista do filme,
mas para todos os alunos desse grupo. Isso acontece porque a biografia de
Irakli só é registrada ao longo da narrativa favorecendo assim que o espectador
se misture ao assunto tratado com suas próprias suposições. E elas não estarão
descartadas porque o acesso à vida desse estrangeiro no grupo se revela muito
pouco e só nos resta, como Merab, acreditar que o que se conta é a verdade definitiva.
Só conseguimos estabelecer essas
relações entre o que se conta e o que acontece quando começamos a saber sobre o
destino do protagonista, e antes disso, pela vaga surgida na companhia de balé
(instituição que só temos acesso pelo imaginário das personagens) ou mesmo o
tratamento dado ao próprio irmão de Merab, parte também do grupo e expulso por um
conjunto de acusações que somam a displicência com a dança, o envolvimento com
drogas ou mesmo com a prostituição gay. Isso significa dizer que o roteiro propositalmente
enovela múltiplas histórias com pequenas variações de desfecho mas que ora explicam
lacunas não alcançáveis pela narrativa principal ora se combinam para uma
totalidade sobre o que deseja contar a peça fílmica.
Ora, essa é uma operação bastante
delicada. As narrativas que participam da compreensão e mesmo desfecho da
narrativa principal devem se organizar de maneira a não extraviar o andamento de
nenhuma das histórias contadas. E, mesmo que o espectador, nesse caso
específico, descubra o desfecho total do enredo central é sempre favorável o
elemento capaz de distorcer um pouco suas certezas. Levan Akin é, nesse
sentido, extremamente sutil, sensível e delicado; não dá para confiar nas
conclusões antecipadas que fazemos sobre os destinos de Merab e saímos do filme
com uma variedade de leituras sobre seus enfrentamentos.
A chegada do estrangeiro, chamemos
assim, favorece não apenas a Merab mas ao grupo no reconhecimento sobre a
persona de todos; é a partir dele que o próprio protagonista descobre que seus
rivais já existiam antes da sua chegada e estes são, desde a insegurança
pessoal apesar do esforço e dedicação impressos num sonho almejado ainda na
infância e nascido mesmo entre seus antepassados a uns muitos da sala de aula
incluindo o professor que extremamente afeito à tradição do balé georgiano não
encontra nos traços do aluno mais esforçado, nem na maneira como dança, os elementos
motivadores para o lugar ideal na companhia. Descobrimos aos poucos que o
estranho não é o bailarino recém-chegado, mas Merab: seu talento não equivale
ao que se espera dos modelos determinados pela tradição e ele próprio não cabe
num país pequeno o suficiente para condenar as pessoas pelos seus desejos.
Esta é a palavra de toque em E
então nós dançamos ― desejo. Está impresso no sonho do protagonista e dos seus
amigos, todos sempre toldados pelos limites impostos pela ordem social onde
vivem; está no enlace amoroso entre Merab e Irakli que modifica por completo a
compreensão de si, do outro, revelando muito sobre o lugar do ser e o papel das
relações nas suas determinações. Desejo e destino se confundem e esclarece que não
existe futuro se nós que o fazemos não formos capazes de alimentá-lo com essa
pulsão que de dentro nos impele para o mundo; castrar o desejo, como fazem as
corporações irredutíveis que confiam na tradição como modelo fixado, ou, por
conseguinte, os países fechados no arcaísmo de outras eras, é interromper quaisquer
funcionamentos que resultem em expectativas positivas.
A partir de Irakli, Merab também
descobre, para bem e para mal, a vida como um campo aberto e ilimitado de experimentações.
Primeiro porque é graças a experimentação da liberdade que se pode encontrar o
sentido do ato de viver; segundo, que com todas as condições, principalmente as
negativas, é possível encontrar alternativas que permitam recomeçar,
continuamente, enquanto vida existir. A personagem principal desta história
sabe das suas determinações, mas precisará encontrar o limite entre como
realizá-las e fazer com essas realizações cumpram um sentido para sua história
individual. A vida cobra de todos, ímpeto e não é feita da pura repetição para
a qual somos, desde cedo, arrastados.
No fim, este filme nos leva a
concordar com outra expressão que bem poderia se tornar prática ― e
não apenas um senso comum: tudo de melhor nesta geração presente se deve ao ímpeto de
uns poucos que contrariaram a ordem do seu tempo. É óbvio que a pura e simples
desconstrução nada serve se não sabemos as bases que nos impulsionam para
tanto. Mas, é também óbvio que tudo perece se o seu funcionamento for a eterna
repetição. Essa síntese é do que se desenvolve numa narrativa que está longe de
ser uma historieta de amor impossível, mas nos acalenta com a compreensão nem
sempre lembrada: só se vive pelo enfrentamento.
Comentários