Carta à rainha louca, de Maria Valéria Rezende
Por Pedro
Fernandes
Maria Valéria Rezende. Foto: Marlon de Paula. |
Integrado à
tradição do romance epistolar, Carta a rainha louca é um livro feito de
duas superfícies podendo, inclusive, ser lido como duas narrativas. Assumindo
as feições de um recurso muito comum aos textos dos primeiros séculos da
escrita e adotados em quaisquer circunstâncias em que os materiais necessários ao
trabalho de escrever sejam raros ou escassos, este livro não é assim mais que
uma crônica sobre o período colonial brasileiro; é sobretudo a revelação de uma
voz coletiva de todas aquelas que pereceram ao longo desse tempo pelos
silenciamentos impostos por aqueles que tinham o direito de mando. É que à medida
que tomamos conhecimento sobre as peripécias da heroína missivista, não
deixamos de ler, por debaixo da rasura todas as imprecações que, se públicas,
falariam contra a própria escrevente ou justificariam a condição a qual foi
rebaixada, a de mulher herege e/ ou tresloucada.
Assim, na
primeira superfície, o que encontramos, entre quatro anos que cobrem de 1789 a
1792, é o longo e errante périplo de Isabel, condenada primeiro à prisão no Convento
da Conceição, em Olinda, até que um incêndio nas pobres instalações do recolhimento,
favorecem-na à reclusão, período quando pode melhor se dedicar a redigir uma
carta, tomada que está, do interesse de alcançar a intercessão de D. Maria I.
Há dois elementos que favorecem a missivista no surdo diálogo que estabelece
com a rainha: uma, a conhecida fama de louca que alinham essas duas personagens
numa condição espelhar; e a outra, repetindo ainda a primeira razão, o fato de
ser a interlocutora também uma mulher, sujeita às condições assemelhadas as do
longo sofrimento da remetente ─
vide o estatuto de louca que as identificam.
Na segunda
superfície, repetida pelas modificações no tecido textual, resultadas estas de
uma clara interferência entre o nível da narrativa e o nível da texto, a
passagem rasurada sobre a qual falamos antes, observamos o tom denunciativo
contra os desmandos nas terras de ninguém da colônia e, por vezes, contra o
empreendimento levado há quase três séculos pelo império português apenas no
interesse escuso da exploração e do lucro; nessa exposição semidescoberta imperam
ainda as acusações sobre as corruptelas e corrupções, as hipocrisias, as
ignorâncias, os mandos e desmandos, e o longo sofrimento enfrentado pelas
mulheres, incluindo aquelas que sob às vistas de todos existem para cuidar da
manutenção da ordem entre a terra e o céu que são abandonadas à própria sorte
nos conventos e à exploração dessas instituições religiosas que transformam a
fé em matéria de barganha capital e dos próprios luxos dos seus oficiais.
Dos romances
de Maria Valéria Rezende, este é o mais astucioso. A mulher livre pelas correntezas
das fatalidades do destino e logo destituída da liberdade pela força inquisitorial
dos homens é um tema recorrente na literatura brasileira. Poderíamos citar aqui
A muralha, de Diná Silveira de Queirós, Desmundo, de Ana Miranda
ou Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, para recordar três dos
primeiramente lembrados. Mas, a apropriação que a romancista faz das bases
determinadas como enformantes da nossa literatura ─ é discutível, mas até agora se tem a carta
de Pero Vaz de Caminha como o texto inaugural das letras nesta terra ─ é desconhecida. Ainda
mais quando é pela pena de uma mulher que se organiza o conteúdo da missiva, ao
invés de um homem, o que era natural de se esperar sobre um tempo de quando
apenas a eles era dado o tratamento oficial pela letra.
A inferência
sobre a carta dos descobrimentos não é apenas do ponto de vista textual, um romance
que se apropria da mesma estrutura formal do texto anterior. É também pela
maneira como o conteúdo dos dois textos igualmente se identificam. O interesse
de Isabel, sua liberdade e mesmo saída da colônia para a corte onde possa ser
julgada corretamente e absolvida das acusações que lhe pesam (esta última
implícita no pedido), bem como a história de seus padecimentos nessas terras, se
imiscui por entre o intricado conteúdo informativo que visa oferecer à Rainha
um apurado documento sobre o que se pratica em suas terras com justificação de
seu nome. Sabemos que todo o tratamento descritivo e mesmo narrativo de Pero
Vaz resulta no pedido de intercessão para que o rei se lembre da soltura do
genro, Jorge de Osório, degredado na Ilha de São Tomé. Em relação, os dois
textos se refratam.
Seduzida pelo
desenvolvimento de seus feitos, que não são poucos ─ a heroína de Maria Valéria Rezende em nada
deixa a dever dos famosos heróis de folhetim, por seu itinerário de errância e
grandes ações ─, o
que dissipa a angústia da espera e a incerteza sobre o destino da carta, chegamos
a desconfiar se os propósitos de Isabel ainda serão os mesmos que constituem a
força inaugural do seu texto. Ainda que as ambições sejam muitas,
principalmente, por conseguir um lugar de repouso onde possa se dedicar
indefinidamente ao seu gosto e prazer pela leitura, resulta sempre pensar o que
faria uma mulher de verbo fácil desamparada na corte, mesmo que protegida pela
rainha; se padece das agruras do esquecimento, em sua terra natal é sempre
amparada pela imensa maioria dos que sofrem mais que ela ou por uma nesga de
destino que lhe vem em intercessão.
Esse segredo
do romance, podemos assim dizer, pode se revelar, em pequena parte, numa ocasião
quando o texto, depois de ganhar a devida organização e fluência narrativo-descritiva,
é feito com menos rasura; o leitor não deixará de perceber que, na mesma
proporção que aumenta a certeza da impossibilidade de entrega da carta e de
modificação do destino da remetente, ou quando a escrita se prolonga até a
impossibilidade de continuação pelas condições de vida cada vez mais frágil,
diminuem as rasuras e as denúncias ganham lugar entre o relato. Isto é, as duas
linhas que observamos se interseccionam; e a alternativa encontrada pela
narradora para oferecer uma conclusão que valha à sua vida épica consiste na
integração do relato numa dimensão do fabular ─
borram-se as fronteiras entre o vivido e o sonhado, o relato e a imaginação, o
real e o maravilhoso.
Mas,
voltemos ao segredo do romance. É no final da longa parte que corresponde ao
ano de 1791, quando a missivista recupera toda a história que a levou cair na
situação que se encontra no ano que identifica o relato, isto é, o de presa,
que ela assim diz: “Sentia-me chamada a prosseguir pelo mundo e, talvez, se me
fosse dada essa graça, denunciar em grandes letras e alta voz o mal que lhe
haviam feito e a quase todas as mulheres desta colônia, a quem nos pudesse socorrer,
como faço agora escrevendo a Vossa Majestade.” Isabel assume então todo uma
sentença martirológica que a leva se perceber uma Catarina de Alexandria ou uma
Joana D’Arc.
E essa personagem
é prima distante da ficção para o seu exterior de outra Isabel, feita rainha
ainda em criança, e devotada a uma sorte de questões políticas de seu reino em
seu tempo e uma vez viúva devotada aos feitos do beneficente. A aproximação
entre as figuras, claro está, não é pela posição em tudo distanciadas, mas pela
força interventiva que as determinam, as ações que desempenham em alguma parte
de suas vidas e as condições sobre-humanas que as determinam. Embora a Rainha
Isabel (1282-1325), feita padroeira de Coimbra, esteja sempre envolvida pela
aura devotada aos santos, nota-se que a Isabel das Virgens cumpre um itinerário
de degredada pelo destino. Ou seja, sem nenhuma pretensão de santidade, ainda que
de alguma maneira nela inspirada ─
a personagem admite-se devota de Santa Isabel ─
a trajetória dessa personagem é revista de uma condição ainda mais edificante:
ser santa não por predestinação, como a rainha, e sim por merecimento. Nesse
sentido sua carta é também um testamento pelo qual se registra para a posteridade
uma vida de errância por irmanação e devoção aos outros, além de clara ressalva
testemunhal sobre uma existência para a perfeição, inocentando-a das acusações que
pesaram todo o restante dos seus dias.
O ideário de
santidade de Isabel, entretanto, se confunde com os típicos modelos populares
que povoaram a história do Brasil, principalmente o Nordeste. A personagem
figura assim como uma precursora dos movimentos impulsionados por beatos com
religiosidade feita do entrecruzamento de modos e expressões que misturam ritos
e expressões de um cristianismo afeito a causa de igualdade entre os homens e
as tradições místicas daí derivadas. Se estes líderes que passaram para a
História foram apenas homens ─
o exemplo imediato são Antônio Conselheiro e Frei Damião, mas aquele que este
pelo ideário de sociedade construído com a experiência de Canudos ─ a ficção reivindica um
modelo centrado numa figura feminina.
Ao relatar
os padecimentos das mulheres num tempo feito de horror e dores, relata-se suas
várias distinções na sociedade colonial sempre entrevista pela suposição de que
o mal é universal. O espelho de Isabel, dissemos, é D. Maria. Em menor escala,
sua senhora Blandina, de quem se faz fiel dama de companhia. Mas da primeira,
por se dirigir a uma rainha, figura de posses e poderes acima de quaisquer coisas,
sempre a torna em elemento para avivar as diferentes condições das mulheres. Embora
todas sofram, parece reparar, umas sofrem mais que outras e a causa é o modelo
de mando ao qual estão submetidas, centralizador, explorador e mantido pela
ordem das distinções de uns sobre os outros; modelo, aliás, cujas implicações
aparecem em toda a parte passados alguns séculos depois.
Carta à
rainha louca é o registro sobre a profunda solidão das gentes que, entre
todos, fazem um caminho contrário ao curso comum e modificam ou contribuem para
a modificação do mundo. O trabalho de documentação desses esforços, aliás, é
uma das marcas que identificam este romance como pertencente a Maria Valéria
Rezende, autora de uma obra que tem se preocupado não apenas em construir uma
literatura interessada em tocar questões das mais caras em seu tempo mas dizer
que o traço essencial da existência se faz pelos enfrentamentos. O retorno aos
tempos de nossa formação com este romance, esclarecem um tanto disso porque se
preocupa de dizer quão piores um dia fomos mas nunca deixou de existir quem se
colocasse em posição de luta contra a ordem. Numa ocasião quando tanto carecemos
de futuro ou quando depositamos a mudança ora no tempo das impossibilidades ora
no tempo das incertezas ora ainda na desesperança, a leitura de trabalhos que
nos refiguram a história se reveste de um sentido precioso.
Além de
agruras, denúncias, lutas, este romance testemunha outros dois preciosismos
caros ao nosso tempo feito, curiosamente, de todas as facilidades que são
alheias ao tempo de Isabel: o amor pelos livros e o nascimento da escrita, esta
última na sua dimensão material, da conquista do tempo para escrever, do papel,
da luz e dos utensílios para a materialização da palavra. Esta se assume não
como abstração ou entidade fora do homem, mas, possibilidade de acesso ao
mundo, compreensão entre o eu e suas mutações, extensão corporal nossa, princípio
integrativo entre quem escreve, o que escreve e o texto. Assim, o pedido, oferecido
pela missivista à rainha ─
“Aprecia, pois, Senhora, ao seu devido valor, este papel, esta tinta e estas
palavras que me saíram do corpo maltratado” ─
é, por conseguinte, um pedido da romancista para o livro que o leitor tem em
mãos.
O amor aos
livros não está apenas no gosto inveterado da heroína; está no princípio do
próprio romance numa epígrafe colhida do conto “Felicidade clandestina”, de
Clarice Lispector, que reverbera ao longo de toda matéria narrada: “Já não era
uma menina com seu livro, era uma mulher com seu amante”. A passagem pode ser
lida, inclusive, como uma síntese do romance, afinal nele se testemunha o
trânsito entre a inocência perdida da menina pelas ardilosas matérias do amor,
essa invenção cuja forma se espraia no século seguinte, mas de pretextos
intemporais patente nos tratados de sedução masculina para o fazimento da
felicidade dos corpos e, em quase simultâneo, o desfazimento da ordem,
sobretudo, se determinada, como é, às mulheres deste tempo.
Possivelmente
o primeiro aspecto que se observa no contato com Carta à uma rainha louca
seja o da linguagem. Falamos acima sobre uma refiguração da história,
circunscrita no âmbito de uma narrativa de peripécias e nas descrições semirrealistas
que dão ao esfumado século XVII, mas a escritora fabrica, qual sua personagem,
as tintas próprias para a composição desse retrato com palavras. O gesto em muito
recorda o processo escritural de Ana Miranda no já citado Desmundo, embora,
neste romance o tom esteja mais próximo do que entendemos por um interesse de
replicação do barroquismo da linguagem quinhentista, o que pressupõe um
trabalho de lapidação linguística; no caso ora em análise o tratamento é de
imprimir uma camada da atmosfera que bordeja o gênero textual a que recorre e
no tempo em que se situa.
Notadamente
este livro acrescenta uma linha na já longa tradição que se não fez escola no
Brasil deixou raízes a partir das quais vez ou outra saem brotos tão vistosos
como este romance de Maria Valéria Rezende. Se estruturalmente o definimos como
um romance epistolar, ainda que ele subverta o princípio, ao indispor a voz
interlocutora, formalmente, este é um romance histórico. Os episódios narrados
são ficcionais, mas se alimentam da seiva do factual não deixando de nos
colocar diante elementos do tempo referido e trazer, mesmo en passant, figuras
captadas pelas antenas da historiografia; a principal delas é o sujeito de
interlocução, mas há, para não deixar de citar, outras, como a onipresente figura
do Padre Bartolomeu de Gusmão ─
onipresente porque, do horizonte de leituras do setecentos, essa personagem sempre
é motivo para as tintas; está no já citado Um defeito de cor, mas está
ainda no Memorial do convento, de José Saramago, romance anterior
a estes dois e onde aparece como uma das personagens de sua narrativa.
Depois de
tudo o que foi dito, Carta à rainha louca resta ainda uma coisa: este é
um romance que nos devolve o gosto de se deixar envolver, qual essas mulheres
pela lábia de muitos feitos e histórias de Diogo, sem se reconhecer dominados
pelo que se conta. Essa é, talvez, o sabor indispensável à ficção desde a
origem das narrativas. Numa ocasião quando a literatura se divide entre as
linhas do hermetismo acadêmico-vanguardista ou da rasa reprodução do mundo
plastificado dos tempos que correm, é sempre um gosto, encontrar um livro que
ainda não se esqueceu dos preceitos indispensáveis e inadiáveis da literatura: contar
uma boa história e nos lançar de volta ao hodierno com outras lentes de ver as
coisas.
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