A superfície de Hemingway (I) – lendo “Up in Michigan” e “Indian Camp”
Por João Arthur Macieira
Ernest Hemingway, 1921. Arquivo John F. Kennedy Library. |
É muito raro na literatura, mesmo para aqueles que
conquistam o respeito da crítica e o sucesso comercial ainda em vida, serem
compreendidos. Mesmo um autor como Ernest Hemingway, que é, certamente, um dos
mais lidos autores norteamericanos, ainda não deixou de fornecer material para os
estudos literários na nossa geração. É verdade, porém, que o público e os
críticos brasileiros que queriam elaborar esse material encontrarão
dificuldades: o estudo da obra de Ernest Hemingway simplesmente não existe
entre nós. Fora o belo livro de uma professora da Universidade de São Paulo
sobre Hemingway e a Guerra Civil Espanhola¹ e uma
dissertação defendida em 2019², não há produção
acadêmica dedicada ao grande desse autor. Também se trata de uma obra
literária que não chegou às grandes editoras, apesar do Nobel da Literatura em
1954. Tudo nos dá a entender que Hemingway é um escritor que viveu sua fama e
que agora é hora de deixá-lo no último século.
Vou publicar alguns textos nesse blog – que propositalmente
se debruçarão sobre alguns dos aspectos menos explorados de sua obra – com a
intenção de discordar dessa hipótese. Gostaria que eles funcionassem como o
primeiro passo na construção de um diálogo, aberto a qualquer um que esteja
interessado. Esses textos, eu sei, muito provavelmente não encontrarão leitores
de Hemingway sistemáticos, que têm a intenção de comparar interpretações, que
querem reconhecer as teorias nos quais cada argumento está embasado, ou com
quais críticos se estabeleceu diálogo, durante a produção dessas interpretações.
Será mais provável encontrar leitores interessados o suficiente no autor,
dispostos a atravessar algumas dezenas de linhas, durante cinco minutos de seus
dias, em busca de uma troca de ideias. Isso não é unicamente negativo, pelo
contrário, o “ponto zero” (ou quase) de um debate pode ser uma posição
privilegiada. Nesse caso, quanto mais trocas e mais discursos surgirem melhor:
nosso objeto ainda tem cheiro de mata virgem.
Sendo assim, por que não começar do início? Achei por bem
falar de “Up in Michigan” e “Indian Camp” (traduzidos para o português como Lá no
Michigan e Acampamento Índio, pela Bertrand Brasil), que são dois dos primeiros
contos redigidos por Ernest Hemingway no início de sua maioridade, antes que
ele pudesse se dizer “escritor”. Quem só conhece os romances de Hemingway, terá
uma bela surpresa quando abrir pela primeira vez seus contos. Nessas histórias,
o leitor se depara com habilidades narrativas talvez até mais impressionantes
do que nos textos longos. As tensões criadas nesses contos jogam o leitor de
frente a questões existenciais, antes mesmo da popularização da filosofia
existencialista. Essas aparecerão nas figuras do desejo, violência, amor, medo,
mas principalmente, na angústia do duplo reconhecimento de que não podemos
prever nosso destino, apesar de sabermos seu capítulo final. Não é por acaso que
Hemingway e Heidegger tornaram-se famosos no mesmo ano: em 1926.
Ainda assim, esses personagens não decidem largar mão dessas
vidas, não querem escapar dela em devaneios, nas suas interioridades ou no
niilismo vazio. Na sua diversidade sociológica, um elemento os identifica: a
impotência humana perante a contingência da vida e à imprevisibilidade de seus
próprios destinos. Veremos essa questão elaborada de forma brilhante em
romances maduros, como Por Quem os Sinos Dobram e O Velho e o Mar. Mas já nos
contos “Up in Michigan” e “Indian Camp”, elas se fazem presentes. Aonde,
propriamente? Nas superfícies. Essa é uma tendência dos contos de Hemingway: partindo
das existências mais ordinárias, nas facetas menos extraordinárias, o leitor
encontra dimensões profundas do homem. Não encontramos neles os grandes heróis,
mas também não há heroicização do cotidiano. Isso não significa que não há decisões
éticas, mas que elas são muito mais contingentes do que a expressão de um modus
operandi consciente dos personagens.
A trama de “Up in Michigan” poderia ser resumida da seguinte
forma: uma moça se deixa levar por um desejo (desejo esse que ela não conhece
direito, e que não sabe até onde pode levá-la) e acaba violentada pelo vizinho
de quem gostava. Isso se dá numa cidadezinha no interior do Michigan, descrita
pelo narrador como não mais que uma estrada e cinco casas. Já “Indian Camp” é uma
história sobre a experiência visual de uma criança do nascimento e da morte.
Nick Adams assiste de forma consecutiva ao parto de outra criança indígena e ao
suicídio do pai do recém-nascido. Portanto, são duas experiências de opostos:
do amor, passamos à violência. Da entrada nesse mundo, passamos à saída dele.
Essas duas transições são em poucos instantes. Logo depois dos beijos
carinhosos que Liz Coates recebe de Jim Gilmore, ele a violenta. O suicídio do
pai indígena ocorre instantes antes de realizado o parto. Portanto, não há
tempo para profundas investigações psicológicas: a profundidade deve estar
suposta na própria superfície.
Ajuda aqui uma dialética entre ordinariedade dos fatos
descritos e suas profundidades. Medo, desejo, amor, solidão, melancolia...
Todos nós os experimentaremos durante nossa vida. Também não há nada de especial
na violência experimentada por Liz Coates ou Nick Adams, não há nada de
especial nos que praticam essas violências. Aos olhos do leitor, Jim Gilmore
não é um homem mau, assim como não há nada que indique, pelo comportamento dos
indígenas na tenda de Indian Camp, que algo como um suicídio poderia acontecer.
Não é na grandiosidade dos eventos ou na extrema fortaleza dos personagens que
a profundidade dos contos se constrói. Liz Coates é uma mulher de sensibilidade
frágil, de pouca experiência de vida. Jim Gilmore é um homem comum do interior
do Michigan. Nick Adams é uma criança amedrontada, que vê um pai morrer e teme
perder o seu.
Com pouco assim, Hemingway cria universos inteiros nessas
histórias. O ambiente que circunda “Up in Michian” é Horton Bay, uma cidade que
até hoje não conta nem mil habitantes. “Indian Camp” é passado na travessia de lago
e dentro de uma tenda. Portanto, são narrativas que encontram limites estreitos
e muito bem definidos. Há pouca luz, poucos personagens, pouco espaço. Isso, ao
invés de diminuir o poder dos contos, o aumenta. Os bons limites convidarão a
imaginação do leitor a desobedecê-los, a invadir o conto através deles. Qual
seria uma boa imagem para ilustrar o tipo de conto que Hemingway nos oferece? A
de um lago escuro. Não podemos esperar conhecer seu fundo sem mergulhar de
cabeça. Mas sua expressão superficial está ali: ela é bonita em si mesma,
podemos nos ater somente a ela e ainda será inegável que existem grandes volumes
na sua profundidade. Vale aquilo que Kant disse do sublime: ele é suficiente em
si mesmo para nos causar uma impressão de magnitude própria. Essa superfície
não se esconde dos nossos olhos, não guarda armadilhas onde uma coisa significa
outra. O que está dito nos contos de Hemingway são essas superfícies, e é a
partir delas que teremos a sua profundidade: o não dito.
Interpretações edipianas da obra de Hemingway só podem nos
levar a rodar em círculos, não ofereceriam nada ao leitor. Ao invés de circular
a pé pelas suas margens, as superfícies de Hemingway nos convidam ao mergulho,
principalmente nos dias mais claros e quentes de verão. Não se trata de rodeá-la de símbolos ou de desvendar
seus mistérios. É verdade que Hemingway é um escritor bastante objetivo, esse traço
é reforçado na ausência de intervenções narrativas. Há uma voz objetivante
nesses contos, que indiferencia vida e morte, fazendo com que surjam da mesma
forma o parto e o suicídio. O mesmo se dá com o desejo: os beijos carinhosos
são seguidos pelo estupro, que por sua vez, antecede o sono tranquilo do
violador. Sentimo-nos enojados, é claro. Talvez sintamos a dor de Liz e Nick.
Mas não entramos em identidade com eles, pois Hemingway não subjetivou a narração.
Não há um Sujeito humano que narre esses contos, eles são descritos como uma
câmera cinematográfica captura as imagens de um filme.
A escolha de um ângulo já é marca de um diretor. Da mesma
forma, quando Hemingway constrói sua voz narrativa, esse é o último e único
traço da intervenção de um sujeito na história. Não é por acaso que esse
narrador tem a perspectiva das vítimas. Ele as acompanha na experiência de suas
violações e no seu pavor e não os recebe como sujeito humano, mas como câmera
cinematográfica. Não haverá estupor no mundo que abale a câmera do
cinematógrafo: ela será como o detetive no filme policial, que produz descrições
detalhadas dos crimes para seu relatório. O leitor é o espectador desse filme,
que se enoja com a filmagem da cena, que se assusta ao perceber a possibilidade
real dessas imagens tecidas na ficção. Mesmo assim, ele não se levanta da
poltrona do cinema e quer voltar para casa com medo do que viu, levando consigo
a experiência no limiar entre o expectador de uma obra de arte e do observador-cúmplice
do crime. Um realismo objetivo como o de Hemingway tem esta capacidade:
confunde o real, invade-o com a ficção, ao ponto de que o fato de que Elizabeth
Coates ter realmente existido (além de ter sido uma paixão de juventude do
autor) não altera o caráter limiar da narrativa. Esse é o limiar da superfície,
que convida ao mergulho.
Notas:
¹ Giselle Beiguelman-Messina. A República de Hemingway: por quem os sinos dobram?, 1993, Editora Perspectiva, São Paulo.
² Bárbara Wagner Mastrobuono. A narrativa por meio da ausência: análise de três contos de Ernest Hemingway, Dissertação defendida em 2019, Universidade de São Paulo.
Comentários