Virtudes da culpa

Por Paula Luersen


Marina Abramovic em Ritmo 0, 1974.



Uma mulher vestida de preto repousa em meio a uma sala branca. Ao seu lado, uma mesa com vários itens distribuídos. Em um dos extremos: um pote de mel, pedaços de pão, plumas, algumas rosas, um vidro de perfume. Avançando ao outro extremo: uma tesoura, um martelo, facas, correntes, uma pistola e uma bala. Em meio a esses e outros objetos, as instruções referentes à mulher posicionada no meio da sala: “Eu sou um objeto. Você pode fazer o que quiser comigo. Tomarei responsabilidade por todos os atos dentro das próximas 6 horas.” Esse era o cenário da performance artística Ritmo 0, de Marina Abramovic, apresentada em uma galeria de arte na Sérvia, em 1974.

Que efeito pode gerar a assinatura de uma mulher permitindo que façam o que quiserem com ela, sem que se sofram consequências? As portas foram abertas e, ao tomar consciência da proposta, o público começou a agir. Inicialmente, a performer teve o corpo manipulado. Foi beijada no rosto, acariciada, recebeu uma rosa. Ela não agia ou reagia, entregue à situação. Depois de algum tempo, o público começou a desafiá-la: com a tesoura, cortou sua roupa; com a faca, sua pele. Um homem afastou suas pernas e posicionou uma faca entre elas, sobre a mesa. Horas depois, outro homem acorrentou-a e retirou os espinhos da rosa que ela havia recebido, cravando-os, um a um, no ventre da artista. A arma foi, então, engatilhada e posta entre as mãos de Marina para que atirasse contra si mesma. Finalmente, outras pessoas desencorajaram o homem que protagonizava o ato.

Na primeira vez que tomei contato com o episódio, fiquei chocada não só com a radicalidade, ou com a coragem da mulher que a propunha, mas com a crueldade de que somos capazes. Há poucos dias fui tomada novamente por esse sentimento, ao ler sobre uma pesquisa realizada com estudantes universitários nos Estados Unidos, revelando que um terço dos homens entrevistados afirmara que estupraria uma mulher mediante a garantia de impunidade. A noção de culpa parece-me, nesses casos, mero instrumento jurídico e não um sentimento real. A tendência é que seja atribuída ao outro, ao mais próximo, a quem seja possível: “por que, afinal, essa artista deixou uma faca e um revólver à disposição, se não era para incitar a fazê-la sofrer?”; “Por que, então, essa menina provocou se não queria ir até o fim?” O uso do pronome feminino não é acaso. Bruxas já foram queimadas, adúlteras apedrejadas, vadias estupradas e, em uma sociedade governada pelo machismo, as mulheres continuam a ser culpadas para muitos olhos – aqueles que espiam pelas frestas.

Para homens ou mulheres, no entanto, a culpa se mostra um sentimento por vezes indispensável – e esses dias em meio a uma pandemia contribuem para esse veredito. Por pior que seja nos sentirmos culpados, isso anuncia que somos capazes de ocupar o lugar do outro, perceber o efeito dos nossos atos naqueles a quem prejudicamos. Quem sabe a culpa seja uma das primeiras noções que nos permite, quando crianças, reconhecer o que fazemos de errado pelas nossas próprias mãos. Para além dos traumas ou do emprego tirano da culpa como ferramenta de poder, quem sabe ela seja, finalmente, necessária: parte do que nos torna mais compreensivos com o que está além da realidade evidente. A culpa pulsa, remói, incomoda. Faz com que sejamos, porém, mais humildes e menos super heróis.

Voltando a Marina Abramovic, após as 6 horas de performance, a artista retomou a autonomia e começou a agir normalmente. Com o corpo dolorido e lágrimas nos olhos, começou a vestir-se para ir para casa. Em minutos, o público se dissipou e não restou uma só pessoa na sala. Os que até ali a torturaram foram incapazes de encará-la, quando mostrou-se igual. Humana. Miraram os próprios sapatos e seguiram para suas casas. Engana-se, contudo, quem pensa que sentiam culpa. Nos seus olhos baixos, imperava a covardia.




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