Rei Lear na pandemia
Por
Santiago González Sosa y Ávila
Rei Lear. Benjamin West (1788). Museu de Belas Artes, Boston |
Que imagem
mais sugestiva do que a de Londres em 1606, atingida pela praga? As ruas
desertas, as lojas fechadas, um ou outro cachorro sem dono, os teatros vazios,
o estrídulo dos sinos que dobram diante das dezenas de mortos e William
Shakespeare isolado escrevendo Rei Lear em seu ócio produtivo. Sem
dúvida, uma lenda demasiado romântica para não repetir até a exaustão. Ou
seria, se ao menos não falássemos da mais tremenda tragédia shakespeariana, a
mais excruciante, aquela que “melhor reflete a mentalidade apocalíptica e o
medo do declínio do mundo”.
Vários meios
de comunicação se envolveram na divulgação dessa anedota, talvez para nos
inspirar ou discutir a probabilidade de que isso realmente aconteceu. Até James
Shapiro, o especialista que serviu de fonte para muitos desses artigos,
esclareceu que Shakespeare não compôs a peça quando a praga atingiu os
londrinos, mas durante uma pausa entre os surtos periódicos que varreram
Londres entre 1603 e 1610. Menos atenção foi dada ao fato de que o tom geral de
Rei Lear se encaixa perfeitamente com o desânimo que a pandemia da covid-19
nos trouxe. Vamos colocar as duas ideias juntas para perguntar: o surto de 1606
determinou a atmosfera sombria e comovente de Rei Lear?
A carreira
de Shakespeare se desenvolveu sob a constante ameaça de que a peste bubônica
pudesse acabar matando-o, matando as pessoas ao seu redor ou, pior, forçando os
teatros a fechar. De fato, a primeira vez que ele teve contato com os efeitos
devastadores da praga tinha apenas três meses de idade, quando, no verão de
1564, a epidemia atingiu um quarto da população de Stratford-upon-Avon. No
surto de 1592, enquanto fazia seu nome nos palcos de Londres, a praga matou uma
em cada onze pessoas em Londres e, no surto de 1603, uma em cada cinco.
O surto de
1606, segundo o próprio Shapiro, alterou os contornos da vida profissional do
bardo, transformou e reviveu sua companhia de teatro e matou vários jovens
atores que trabalharam sob sua competência. Tudo isso tornou mais fácil para
ele escrever para o teatro fechado de Blackfriar’s (que contava com uma
audiência mais sofisticada, que chegaria a determinar o tipo de trabalho que
ele poderia escrever), e permitiu que colaborasse com músicos e dramaturgos
altamente talentosos. (Além de que, insisto, também poderia tê-lo matado: uma
dúzia de pessoas da congregação onde Shakespeare morava morreram no mesmo ano,
incluindo sua proprietária Mary Mountjoy, com quem teve uma amizade
surpreendentemente próxima.)
Uma boa
variedade dos versos de Lear, sem dúvida, se refere à peste, mas o que a
distingue das outras obras de Shakespeare que se referem aos sintomas, crenças
associadas à enfermidade ou, no caso de Romeu e Julieta, a quarentena, é
que seu tom parece coincidir com o argumento de que o clima na Inglaterra era
sombrio naqueles anos, que havia “uma sensação de que a riqueza e a
estabilidade do mundo em geral estavam em rápido declínio”. As descobertas
astronômicas (de que a lua não era uma esfera perfeita, de que os cometas
apareciam no firmamento supostamente imutável) devem ter criado fissuras na
visão de mundo de alguns ingleses, enquanto os eclipses do sol e da lua em 1605
podem ter causado o crescimento da ansiedade daqueles que associavam esses
fenômenos ao Apocalipse.
Se
Shakespeare compartilhou esse sentimento ou simplesmente se aproveitou dele
para seu trabalho é um tanto irrelevante e, de qualquer forma, não sabemos como
ele poderia ter sido afetado, psicologicamente ou pessoalmente, pela epidemia,
nem no surto de 1606 nem no nenhum dos quais ele testemunhou. A verdade é que Rei
Lear está cheia de caos e niilismo.
Apenas na primeira
cena, Lear concede uma justiça absurda: ele pune Cordélia, a única sincera de
suas filhas, e recompensa Goneril e Regan, as lisonjeiras irmãs mais velhas,
que maltratam o pai, minam sua autoridade e o empurram em direção a uma espiral
de loucura que o leva a vagar no meio de uma tempestade de raios. Gloucester,
por sua vez, identifica o declínio moral como um sinal de ordem quebrada. Ele
está convencido de que seu filho Edgar conspira para matá-lo e é por isso que
ele interpreta os eclipses do Sol e da Lua como evidência de uma ordem
destruída: “o amor esfria, os amigos brigam, os irmãos se separam. Nas cidades,
motins; nos países, discórdias; nos palácios, traições; e quebradas as ligações
entre filho e pai; o rei se afasta do caminho da natureza: é um pai contra o
filho. Já vivemos o melhor de nosso tempo”1. Gloucester não sabe,
mas foi enganado por seu filho bastardo maquiavélico, que não receberá o devido
até o final da peça.
O destino de
cada personagem parece recair sobre a sorte e não sobre a lógica da justiça divina.
O duque da Cornualha, o implacável que arranca os olhos de Gloucester, morre
quase imediatamente depois de uma ferida causada por um servo; Goneril envenena
Regan e depois comete suicídio. Mas quando Albany invoca espíritos
sobrenaturais para “punir” as “ofensas vis” dessas sádicas personagens (na cena
IV), sua resposta é o silêncio. Lear e Gloucester são submetidos a uma série de
torturas, para o primeiro, mental, para o segundo, física; Kent e Edgar são
vítimas da cegueira simbólica de seus senhores. Os sinais divinos que Albany
pede não chegam nem existem, pois esse é um universo que não é injusto, mas
indiferente. Não importa se os criminosos morrem, os inocentes morrem.
A morte de
Cordélia não tem razão de existir. É executada por um assassino quando o bando “bom”
venceu o “ruim”. Ela morre enforcada como uma criminosa vil e como consequência
de um infeliz esquecimento por parte de Edmund, que tardiamente ordena
resgatá-la. Quando Lear entra com o corpo de sua filha, Edgar e Kent articulam
a cena em termos apocalípticos: “É esse é o fim sonhado?”, pergunta Kent, “Ou imagem
do horror?”, Pergunta Edgar.
Em História
da Inglaterra, Escócia e Irlanda, de Raphael Holinshed, uma das fontes que
Shakespeare usou para esta peça (e que ele havia recorrido para muitas outras),
não registra a execução de Cordélia. Outras versões da história de Lear, que
estariam ao alcance de Shakespeare, terminam com um final feliz, Lear
restaurado e Cordélia como sucessora. Por que Shakespeare optou por concluir
com a morte comovente da personagem mais inocente de sua peça? “Chegando como
chega”, diz Kermode, “depois de um sofrimento que parece estar terminando,
resulta de uma crueldade extraordinária. A morte de Cordélia, o tormento de
Gloucester, a angústia do homem velho que rasga suas roupas. Era como se
Shakespeare o incluísse com a intenção de ser, em seu terreno profissional, tão
cruel quanto o duque de Cornualha em sua peça”.
Shakespeare
oferece deliberadamente um mundo em que, como Gloucester diz, “Somos pros
deuses moscas pra menino; Nos matam pra brincar.” É difícil não pensar que essa
frase capte a tanto a perspectiva gris de Lear como o sentimento
aterrorizante de estar à mercê de uma pandemia aleatória, ou que em Londres em
1603 e 1606 se viviam ansiedades semelhantes às que estamos enfrentando em
2020, que em nesses momentos Rei Lear constitui uma leitura
masoquista. Mas aqui está uma ideia reconfortante: depois da praga, nem as
tempestades, nem os desastres, nem os deuses cruéis concordaram com Edgar de que
não viveríamos tanto tempo. Nenhum isolamento interrompeu a carreira de
Shakespeare, nenhuma pandemia acabou com os teatros e nenhum apocalipse, ao que
parece, acabou com o mundo.
Nota
¹ A tradução
dos excertos de Rei Lear é de Bárbara Heliodora publicada em Teatro
completo. Volume 1: tragédias e comédias sombrias (São Paulo: Nova Aguilar,
2006).
* Este texto
é uma tradução de “Rey Lear en la pandemia”, publicado aqui, em Letras
Libres.
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