Quinquilharias, recordações e a alma de Wisława Szymborska
Por
Martín López-Veja
O Prêmio
Nobel de 1996 descobriu para o mundo uma poeta que pouquíssimos conheciam fora
da Polônia, receosa às entrevistas e que considerava que se confessar
publicamente equivalia a perder a alma. Wisława Szymborska escrevia poemas
transparentes que olhavam o mundo de um novo ângulo que se encontrava no
interior dos seres e das coisas. Sua resistência em contar mais sobre sua vida
do que aquilo que aparecia em seus poemas não intimidou Anna Bikont e Joanna Szczęsna,
autoras da biografia Quinquilharias e recordações (Âyinè, tradução de Eneida
Favre). Juntas, eles destilaram todas as vicissitudes da vida que habitava em
poemas, resenhas, conferências e recitais; conversaram com amigos,
reconstruíram sua árvore genealógica, recuperaram textos inéditos e organizaram
uma história tão coerente que causou a curiosidade da própria Szymborska, que
acabou concordando em se reunir com suas biógrafas, dizendo: “Certo, vamos
esclarecer”.
O resultado
são quase seis centenas de páginas cheias de descobertas, inteligência, ternura
e admiração. Um livro que não é apenas uma biografia (magnífica), mas também
uma abordagem aguda de seu trabalho, uma antologia de seus versos, um álbum
fotográfico muito rico, um catálogo de suas colagens e mesmo um romance sobre
seus ancestrais.
As autoras
reconstroem a infância de uma Szymborska que obrigava todo mundo a ler para
ela, que beijava sapos e que, junto com algumas amigas, amarrou o menino que
gostavam a uma árvore e aí deixaram enquanto decidiam qual delas o amava mais. Essas
amigas guardaram alguns de seus primeiros poemas, agora recuperados: “Nada é
novo, tudo aconteceu antes, / assim que o sol nasceu / voltou a nascer. / A
grande guerra também não é nova; / Caim começou a matança por Abel. / Alguém
sempre morre e alguém nasce / e entre queixas se vai à escola. / E sempre por
uma má escrita / se ganha uma surra na escola e outra em casa”.¹
Szymborska
esteve, desde tenra idade, no centro da vida intelectual de Cracóvia. Abandonou
a sociologia entediada com o marxismo explicando tudo, mas seguiu as regras do
partido. Quando recebeu o Prêmio Nobel, houve quem tomasse o prêmio como uma
afronta a Zbignew Herbert e revelasse seu passado comunista. Um passado que
esta biografia não esconde: poemas para Stálin (“O Partido, a visão do homem, /
a força popular e sua consciência, o Partido. / Nada da Sua Vida será
esquecido. / Seu Partido limpa a escuridão”) e Declarações como “Devo ao
Partido o pleno conhecimento da verdade” ou “Só peço para morrer como comunista”.
Ela também não escondeu isso, mas sem a necessidade de atos espetaculares de
contrição a Grass, evoluiu para um individualismo compassivo que
a impediu, quando chegou a hora, de ingressar na organização Solidariedade: “Não
tenho mais sentimentos de coletividade”. Nunca perdeu a timidez diante de
Czeslaw Milosz, o outro Nobel polonês de sua geração, porque nunca quis se
tornar no monumento que ele estava encantado por ser e porque, embora sempre
tivesse grandes conversas, Szymborska preferia ceder ao humor e à improvisação
de poemas liméricos.
Em 1959, começou
a dirigir a seção de poesia da Zycie Literackie, onde publicaria os
primeiros poemas de Adam Zagajewski. Para espantar os maus poetas, organizava
números como jogar o sapato num editor caído que gritava: “Eu prometo! Nunca
mais lhe trarei poemas!” Na revista, ela também foi uma das editoras do “Correio
Literário”, onde respondeu às cartas dos leitores com aquela mistura única de
humor, inteligência, ternura e acidez (ver o fim da post). Há nessa correspondência (citada aqui
abundantemente) tudo isso, mas também certeiros ensaios concentrados sobre o verso
livre ou a tradição. Em 1963, ele abandonou a redação, mas continuou a escrever
resenhas: foi assim que começaram as “Leituras não obrigatórias”, ainda
inéditas no Brasil. Szymborska escolhia os livros que resenhava na caixa dos
descartes. Preferia o que não tinha nada a ver com a literatura oficial. Quando
ela voltou a escrever resenhas em 1993, continuou a escolher os livros da mesma
maneira: “A política ainda é um vampiro ansioso para tirar o sangue de todos nós”.
Szymborska manteve
uma de suas babás de infância por um longo tempo porque “todos nós precisamos
de alguém que grite conosco de coração”. Seamus Heaney escreveu para ela depois
do Nobel, avisando-a do que a esperava: amigos que ela não lembrava, parentes
desconhecidos, inimigos inesperados. “Pobre Wisława”, resumiu. E tanto: a
notícia sobre prêmio a surpreendeu enquanto escrevia um poema que, apesar de
sua contínua recusa a viagens e entrevistas, ela só pôde retomar três anos
depois.
Szymborska
tinha uma predileção pelos animais que tinham mais a ver com curiosidade do que
com amor. Ela nunca teve um animal de estimação, mas tinha um fascínio especial
por macacos, uma espécie de espelho ante o qual se questionar. Uma vez foi
feita uma sessão de fotos no zoológico de Cracóvia com um chimpanzé. Eles sentaram
ao lado da poeta, um tentou mordê-la quando quis abraçá-lo, e quando a ouviu
gritar, outro estendeu a mão, arrancou algumas folhas e cobriu a boca com elas.
“Não queria que eu gritasse ou queria que eu pedisse desculpas?”, se perguntava
Szymborska, que havia aprendido a se surpreender com uma frase de Montaigne: “Veja
quantas pontas tem esse bastão!”
Nota:
¹ A tradução considera o texto em espanhol.
Ligações a esta post:
* Este texto
é a tradução de “Tratos, recuerdos y el alma de Wisława Szymborska”,
publicado aqui, no jornal El país.
Comentários