Pacarrete, de Allan Deberton


Por Pedro Fernandes



Num país tomado pelo nivelamento do gosto cultural imposto pela cultura de massa, este filme é ao mesmo tempo um hino de amor à arte e um manifesto. De regresso à terra natal para acompanhar a irmã doente, Pacarrete volta a sonhar com a possibilidade de fazer reconhecida; mergulhada na cultura francesa, sente que seu destino é integrar o palco principal da tradicional festa da cidade e desempenhar um número de balé inspirado de Le Carnaval des Animaux, de Camille Saint-Saëns, e eternizado pela bailarina russa Anna Pávlova. Se ela conseguirá ou não realizar o feito, não cabe aqui revelar; fica o leitor desafiado a ver o filme sabendo que nada em Pacarrete é gratuito.

O conjunto bem elaborado dos elementos cinematográficos e uma narrativa que tende para o símbolo oferecem a dupla qualidade do verdadeiro cinema: contar uma história e transformá-la em imaginário. A personagem, inspirada numa figura com biografia fora do universo ficcional, é o rosto comum de imaginação excepcional que habita o interior do mundo desde os tempos imemoriais, qual aquele cavaleiro da triste figura de um lugar perdido da La Mancha eternizado por Cervantes. E, qual o Quixote é símbolo de um mundo em crise, Pacarrete é parte de um Brasil em vias de desaparecer, enquanto se conforma em força e signo de nossas obsessões individuais.

Impetuosa, faladeira, geniosa ― tal como se diz no nosso vocabulário popular ― a personagem descoberta por Allan Deberton oferece-nos ainda uma rara oportunidade de pensarmos num país que mata, desde sempre, seus filhos de rica imaginação ao reduzi-los à lista de esquecidos e aos epígonos de loucos, marginais, indecentes, inoportunos, desgarrados do status quo dominante. A cisão entre o Brasil que sonha e o Brasil que tolhe sonhos (de variada maneira) é uma vigorosa crítica a um modelo que elegeu a hipocrisia, a ignorância, o capital financeiro e a dissimulação cultural como modelos de predominância sobre a história, a inteligência, o capital simbólico-imaginário e o reconhecimento cultural para depois repisar o discurso facilmente questionável de que somos um país sem cultura.

Educada num tempo quando a língua e a cultura francesas constavam no currículo básico escolar, Pacarrete é a mulher de outra sensibilidade; ficou presa àquele universo idealizado, do qual prevalece mais seu vigor imaginário. E, perdida num mundo brutal e esquizofrênico que, exceto o pequeno ajuntamento da família e dois amigos, é a ignorada quando não o objeto de ridicularização: a velha desbocada, implicante, a louca de quem todos zombam dos bêbados às crianças que insistem continuamente a lhe bater a campainha. Nesse sentido, Pacarrete é ainda uma imagem sobre o curto-circuito que nos levou ao apagamento de uma ordem civilizatória, visto que, tudo se lhe sobrepõe: dos modos de comer e ser à incapacidade do necessário silêncio para a criação e o repouso. Esta é outra de nossa parte que se degenera, ou que, possivelmente, sequer tenha existido.

Voltemos à peça do encanto de Pacarrete o curto bailado solo “A morte do cisne” criado pelo coreógrafo e bailarino russo Mikhail Fokine porque há muito o que explorar nos jogos textuais propostos na / pela narrativa fílmica. A peça executada por Anna Pávlova registrada em filme em 1925 é retomada pela película de Allan Deberton, tanto no registro original quanto na simbólica recriação ante um teatro integralmente vazio, o que não é, agora, pura repetição do cinema mudo do tempo da bailarina russa. O silêncio e a solidão da artista retomam o que dissemos acima sobre silenciamentos, esquecimentos, apagamentos e a negação de uma ordem da arte pela imposição do reino da repetição esvaziada da mesma forma em degradação.

A primeira coisa a destacar no jogo de relações entre uma peça de fins do século XIX para início do século seguinte, é na atualidade da arte que não atende às forças transitórias do tempo e do capital; para Pacarrete, como a execução de “A morte do cisne” de Pávlova demonstra, a arte é o que se opera no artista. Essa sensibilidade resulta ainda na própria estruturação do filme quando esquecemos que temos uma narrativa que se mostra e nela nos abandonamos, como é o caso da excepcional sequência inaugurada pelo retorno de Pacarrete à casa depois de ser abandonada de qualquer jeito na periferia da cidade pela secretária de cultura que ignora a possibilidade de apresentação da bailarina.

Depois, é como se misturam: a vida da protagonista do filme de Allan Deberton, a vida de Anna Pávlova, e a narrativa exposta na peça de Fokine. O passado de Pacarrete, trazido à superfície da narrativa na sequência referida acima, esclarece que foi mulher frente ao seu tempo e ao seu lugar pela paixão desempenhada pela música, a dança e a língua francesa sempre excepcionais. Como a personagem cearense, a bailarina russa veio de periferia e, antes de se revelar pela arte precisou enfrentar as várias limitações de padrão impostas ao balé em seu tempo. Esta, no entanto, pela cultura e as circunstâncias, viu reconhecido o esforço, aquela ficou arrastada para o ostracismo. O balé de 4 minutos, produto de uma combinação difícil de executar, a técnica com a expressividade, segue os últimos momentos da vida de um cisne ferido; esse instantâneo evoca o fim das duas personagens aqui relacionadas.

O que Pacarrete também encena são esses minutos finais de uma existência. O tema da morte não vigora apenas na presença da peça de Fokine. Move-se em sentido variado nas múltiplas frentes da narrativa: desde o sentido biológico, da decrepitude dos corpos (outro tema evidenciado em passagens excepcionais da peça fílmica) ao sentido simbólico, quando toda uma consciência perece pelo esquecimento do outro. É nessa dupla direção que se move a vida de Pacarrete e com ela se modelam narrativamente todos os sentidos do balé no filme: da resistência ao longo silêncio da personagem atestando sua entrega sem grandes questionamentos. A constatação que nos deixa aturdidos é a da consciência da vida como perda outra condição continuamente reparada pela arte.

Fora das linhas da ficção, a produção conseguiu alinhar o quesito fundamental para a permanência da força artística do filme: a escolha de Marcélia Cartaxo, a atriz revelada pelas mãos de Suzana Amaral e que eternizou um rosto para a Macabea de Clarice Lispector. A atriz performa junto com Pacarrete o destino inexorável de todos e a eternidade de poucos. E se confundem, personagem e atriz. Se o balé de Fokine nos revela precisão e expressão é porque consegue captar entre a existência e a cena a vida em sua pura forma ou o que dela escapa. Não há arte sem esse jogo dialético. É bom saber que a cultura de massa ainda não conseguiu corromper essa sensibilidade. E este filme é uma prova inquestionável disso.


Comentários

Anônimo disse…
Pacarrete é a síntese do artista brasileiro.
vou assistir o quanto antes!
muito obrigada pela dica.

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