Onda de calor, de Raphaël Jacoulot


Por Pedro Fernandes



A primeira memória de um leitor de O estrangeiro, de Albert Camus é continuamente ativada neste filme de Raphaël Jacoulot. Não é o caso de sua narrativa se filiar (não integralmente) numa filosofia do absurdismo, muito embora não deixemos de testemunhar uma situação que nela se mostra: a tendência humana da procura por um significado inerente à vida num universo caótico e irracional. As personagens, exceto Josef descrito como um jovem de “fraqueza bondosa e afetiva”, mas compreendido pelos do lugar como um indivíduo inconsequente e destituído de objetivo ―, estão envolvidas por algum tipo de busca e isso não deixa de causar alguma interferência na ordem coletiva.

As situações registradas pelo diretor francês são livremente baseadas em fatos reais; passam-se num pacato vilarejo ao sul da França e recuperam outros dois elementos viscerais no romance citado anteriormente: a figura do estrangeiro, que, se não tolda as relações entre as pessoas dessa comunidade exerce algum tipo de influência que será vital para colocar todos em questão sobre suas próprias atitudes; e a violência de uma atmosfera febril que invade os espíritos e embacia os sentidos colocando os habitantes sempre em baliza com os tais princípios da ordem.

O trabalho de Raphaël Jacoulot é primoroso. Primeiro, não estabelece segredos acerca do episódio trágico em torno do qual se desenvolve a trama; depois, articula todas as situações de modo a estabelecer uma série de conclusões precipitadas. Mais que o efeito de ocultamento do agente da ação principal, o que a narrativa provoca é a proposital identificação moral dos espectadores com os do vilarejo para, progressivamente, revelar uma metáfora sobre a crise da coletividade pelo que nos define: a incapacidade do ser autêntico porque uma consciência do eu pressupõe um mascaramento para com o outro.

É notório que Josef, incapaz de agir tal como os demais porque desprovido do inautêntico logo sirva de cobaia para as ações dos demais. E aqui entra outra qualidade de Onda de calor que não debanda para o território de o homem nasce bom e a sociedade é o que corrompe. Também, ao explorar com certa minúcia os impasses entre essa personagem e a coletividade (e o movimento contrário) não se reduzir à sua condição, o que nas mãos de um roteirista hollywoodiano transformaria a narrativa no drama piegas do dilema simplista entre bom e mal, normal e anormal, entre outros jogos de oposição que bem sabemos em nada contribuem para uma compreensão sobre a dinâmica das coisas. Jacoulot parece preferir, sempre, o intermeio das simples dicotomias.

A maneira como a narrativa fílmica integra o universo exterior com as implicações interiores, algo que contribui para uma dinâmica até mesmo simbólica das ações é outra característica importante em Onda de calor. A situação trágica que abre e é a mesma que fecha a narrativa, perfazendo uma circularidade mítica encontra eco no próprio movimento da natureza a integração dia e noite. Aqui, enquanto o primeiro expediente domina a cena fílmica é também a ocasião que permite as vivências cotidianas e nelas a fabricação das falsas ilusões de verdade, restando à noite o velado, o suspeito, o obscuro e o mal. Esse itinerário é interessante porque condiz com certa constatação fatalista desse filme: o coletivo é a mais impossível das verdades e ele só existe para a manutenção de um status quo conveniente para os seus partícipes. Como o conveniente para uns não é para outros, então nenhuma ordem sobrevive aos seus próprios princípios.

O único incômodo desse filme tem a ver com um traço genuinamente do cinema francês: tudo sempre acaba em tribunal. De maneira que essa passagem, talvez evitável, chega a colocar em xeque todo o edifício narrativo tão bem construído. Se por um lado é aqui que conseguimos visualizar a quase verdadeira face de todos, por outro parece se mostrar certa matéria da dicotomia do culpado ou inocente. A alternativa seria, obviamente, estabelecer-se na suspeita, quando muito, ressaltando a dubiedade, o que, naturalmente, enriqueceria o debate que este filme suscita.

Isso porque Onda de calor não é um drama policial já que não interessa ao cineasta a resposta final acerca de uma investigação. Ao analisar sobre a falibilidade do coletivo pela interposição da inautenticidade das relações humanas, o que este filme verifica ainda é qual a fronteira do aparente e sua contribuição para o esgarçamento da ordem e, consequentemente, a escalada da intolerância ao outro.

No mais, o filme utiliza-se de um acontecimento fatual para construir uma reflexão sobre questões recorrentes na história universal dos indivíduos e das coletividades. A tentativa de não se prender ao episódico e querer oferecer uma atenta reflexão sobre nós mesmos é um ponto interessante e que faz desse trabalho de Raphaël Jacoulot numa dessas pequenas obras-primas do cinema feitas para nos tirar do conforto de nossas falsas e ilusões e certezas, o que, não é apenas indispensável como necessariamente bom para os tempos que atravessamos.


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