De amor e trevas, de Amós Oz
Por Pedro
Fernandes
Amós Oz. Foto: Leonardo Cendamo. |
“Aqui está
você ―
aqui é o centro do mundo”. A lição aprendida por Amós Oz a partir da leitura
dos contos de Sherwood Anderson explicitada no desenvolvimento final deste
longo itinerário memorialístico que percorre da infância ao nascimento
do escritor é uma das chaves de acesso sobre De amor e trevas e este
livro uma espécie de farol que ilumina todo o restante de sua vasta produção
literária. A expressão assim deslocada de seu contexto pode favorecer ao leitor
compreender à luz de certo narcisismo que se imiscui na gênese e por entre um
texto autobiográfico. Isso porque se colocar como centro do mundo é, por si só,
uma atitude egotista e marcada por um certo pretenciosismo. Mas, nada disso é o
que se imprime neste livro e o sentido da expressão relaciona-se com outro
gesto, este sim, fundamental a todo escritor porque integra seu longo
itinerário de aprendizagem: o mundo sobre o qual escreve é o seu próprio mundo.
Voltemos ao começo
deste romance. Na ocasião quando o escritor/ narrador responde a uma
inquietação recorrente entre os entrevistadores: o quanto de verdade, de
acontecido, está contido nos episódios registrados em sua obra. À
pergunta, que de algum tempo para cá tem contribuído para o empobrecimento das
discussões sobre o literário, sobre o que é autobiográfico nas histórias que escreve,
chega uma resposta refinada de uma ironia mordaz que se aplaca com um doce episódio.
“Tudo é autobiográfico: se um dia eu escrever uma história sobre o caso de amor
entre madre Teresa e Abba Eban, com certeza vai ser uma história autobiográfica,
não há história que não seja confessional.” A constatação está na abertura do
capítulo 5 que é uma espécie de aula-mestra e fundamental a qualquer leitor que
sepulta o texto literário em reduções generalistas como se este fosse uma
entidade puramente repetitiva dessas coordenadas que determinamos como verdade,
fato, documento ou realidade. Amós Oz chama esse leitor de
preguiçoso, fofoqueiro, voyeur que se contenta a
descobrir, “sem eufemismos nem papo furado, quem na verdade fez o que com quem,
como e quando.”
Daí, se
coloca a desenvolver uma compreensão sobre o verdadeiro motivo da morte de sua
avó Shlomit, que chegou a Jerusalém diretamente de Vilna num dia quente de
verão do ano de 1933. A obsessão dela ― arraigada por toda a família materna
de Oz ―
é retrabalhada pela escrita de forma variada para deixar o leitor entre a
dúvida sobre a morte da velha tal como registrada, vítima de um infarto, ou se
de excesso de limpeza: “não foi o coração que a matou, e sim o excesso de
limpeza. Ou antes, nem foi a limpeza, mas seus desejos ardentes e secretos a mataram.
Ou melhor, nem foram os desejos, mas o pavor de vir a ser tentada pelos
desejos. Ou ―
nem a limpeza, nem os desejos, nem o pavor dos desejos, mas a raiva inconfessa e
permanente que tinha desse pavor, uma raiva sufocada, maligna, inesgotável,
raiva de seu próprio corpo, raiva do seu desejo, e também outra raiva, ainda
mais profunda, a raiva de fugir de seus próprios desejos, raiva opaca,
venenosa, raiva da prisioneira e da carcereira, anos e anos de luto secreto
pelo tempo vazio que passa e repassa sobre o corpo encolhido pela voracidade sufocada
desse mesmo corpo.”
O que Amós
Oz incita, além de reforçar certas bases do tratamento literário com a realidade,
é que o leitor não se deixe permanecer preso à superfície das coisas; isso é,
de alguma maneira, uma obviedade, sobretudo quando lidamos com a literatura,
mas há outro extremo dessa constatação que resulta tão problemático quanto ―
considerar que o ficcionado se situa numa região inferior e / ou oposta do fato. O episódio sobre a morte da
avó do escritor não deixa de atestar o fato e, ao mesmo tempo, não deixa de
examiná-lo à luz da variedade de possíveis determinações. Aqui, alguém poderia
dizer que a variável é o literário. Bom, na mesma dimensão ensaiada por De
amor e trevas é preferível dizer que é e não é. O literário
lida com os possíveis, mas não é uma tarefa exclusiva sua: outras áreas também
o fazem, como o Direito e o Jornalismo. Nós próprios igualmente. E as variáveis,
incluindo as desenvolvidas na e pela literatura logo alcançam uma
verdade.
Dessa maneira,
o escritor israelense foge da simples conceituação ― nesse caso, reducionista ―
de que o autobiográfico constitui numa confissão limpa e sisuda dos
acontecimentos, como se o escritor fosse um imune ao ponto de vista ou a
fabulação. Talvez, por isso, o que mais se desenvolve no romance agora
comentado é uma contínua modificação da posição do narrador, sempre investido
ora do fabulador, ora do historiador, ora do biógrafo, ora do ensaísta e analista
literário e político, ora do cronista ou apagando-se na presença de outras
vozes que conjugam na constituição de um mundo cujo mistério se revela nas
pequenas coisas do cotidiano, na gente comum com seus sonhos, trabalhos, ideias
e ideais, obsessões, frustrações e conquistas, medos, ódios gratuitos e
provocados. Talvez por isso a variedade de pontos de vista desse narrador: ora
o mundo é entrevisto pelas lentes da criança, do adolescente, ora do próprio
adulto que especula sobre o foco desse olhar o passado seu e coletivo. Nada,
entretanto, interfere o funcionamento pendular dessa narrativa que perfaz os
volteios da memória, com suas repetições, previsões, induções, antecipações e
registros da frágil linha do presente, o ponto de feitura do próprio texto.
A longa
investigação conduzida por Amós Oz em De amor e trevas se desenvolve em torno
de três compromissos específicos: uma responsabilidade para com a memória dos
seus antepassados; uma leitura sobre os traumas familiares e as implicações
disso na sua formação pessoal; e uma tentativa de deslindar os misteriosos e
caminhos casuais e propositais que o levam à escrita tendo por limite encontrar
os pontos que convergem entre a criança e o adolescente que foi e o homem que
é. No fim, o que se revela não é apenas um retrato possível do criador e sim as
matrizes ideológicas enformadoras de um mundo invocado à luz de um deslocamento
necessário das imposições e dos determinismos. Isto é, alcança o intervalo
entre um mundo que caduca e outro que desponta ainda movido pela mesma força
universal dos povos: a plenitude de viver.
Quando dizemos
que há no encontro entre o menino Klausner e o adulto Oz parece válido citar
duas imagens situadas em passagens muito distintas da vida e da própria
narrativa: é o encanto do menino com os homens fortes e bronzeados que vez ou
outra saem das montanhas para comerciar no mercado de Jerusalém; depois, é a
observação de Árie, seu pai, da transformação do seu filho pálido e magro num
desses homens que ele então invejava. Os dois episódios parecem oferecer uma
síntese sobre esses dois mundos que se enfrentam na memória do escritor e sua
descoberta da comunhão possível; significam em parte uma convergência entre o
intelecto e a força, numa ocasião quando essas duas condições pareciam
restritas a dois mundos indiferentes: o do trabalho braçal e do trabalho intelectual.
Essa distinção, aliás, é responsável por todo o drama que se forma no interior
de Amós Klausner e que depois transborda para a relação entre o filho e o pai. Quando
decide abandonar a família e ir para o kibutz aos quinze anos, depois de
deixar os estudos, ele acredita que para ser um homem rural precisa abdicar daquilo
para o qual foi educado desde a infância, uma concepção que não lhe é própria,
mas que se forma a partir das indiferenças incutidas pelos pais e advindas,
claro está, do convívio num mundo alheio a outro. A escolha de outra identidade
singulariza esse impasse: Amós Oz é o nome que elege depois de sair do kibutz
para o qual o pai havia aceitado que fosse e sua integração ao universo de Hulda,
onde viveu de 1954 até 1985. Quer dizer, foi no kibutz, que ele iniciou
o trabalho com a literatura e onde publica parte importante de sua obra.
Filho único
de uma família formada por imigrantes da diáspora judaica ― a
família da mãe sai da Rússia até escapar do cerco nazista em Jerusalém e a família
do pai sai da Lituânia pelos mesmos motivos ― Amós foi criado para alcançar
as posições negadas aos seus pais; ao menos é assim que enxerga todo o esforço
deles para sua formação primorosa e os incentivos para as atividades intelectuais,
entrevistas na precoce descoberta da leitura em hebraico e da sede voraz pelos
livros. Há aqui outro episódio que à maneira da imagem sobre o homem livre vindo
de terras distantes oposta a dos homens presos às seus lugares importante de
ser citada: o cartão infantil de escritor, forjado e admirado pelos pais,
e a descoberta do jovem de que seu universo caberia algo mais que a trabalho
com a terra.
O imperativo
para a escrita se reveste portanto de um esforço que inclui determinação e fuga
desse destino primeiramente entrevisto como um propósito particular dos pais:
Fania, apesar de concluir os estudos, aceita, em parte, o fatal destino de ser
dona de casa, dádiva que não deixa de interpretar com certo peso ao considerar
o fatal destino de seus amigos, mortos pelos nazistas de Hitler, pelos
comunistas de Stálin ou pela guerra entre judeus e árabes no cerco a Jerusalém;
Árie passou a vida a cobiçar a posição conquistada pelo tio na universidade e
foi continuamente recusado, porque esse tio apesar de reconhecer os esforços intervisse
de forma contrária para que o sobrinho não se tornasse professor na mesma
instituição ―
a atitude não deixa de ter certo toque de mesquinharia, mas se justifica pelo
medo de ser discriminado como homem sem zelo com a coisa pública, centrado em seus
interesses paternalistas; depois disso, na idade quando conclui o doutoramento,
o impeditivo é outro não menos perverso: as instituições não aceitam pela
meia-idade. No mais, a razão parece única: uma incapacidade de Árie em praticar
toda sorte de bajulações a fim de pertencer aos circuitos que validassem seu
nome para o cargo. Ele aceita essa condição com elevada resignação; Fania, sabemos
pelo seu destino, não.
O extenso
drama vivido pela mãe até o fatal destino escolhido por ela deixa marcas que
assombram a Amós desde sempre; e são essas frustrações familiares, conjugadas a
um modo de vida de restrições das mais espartanas que o enterram num drama cuja
natureza não é exclusivamente explicada por uma recusa da condição de intelectual,
mas pela recusa desse mundo para o qual foi arrastado. Esse embate é o universal
impasse entre o homem e as terríveis forças do destino e cujas dimensões
encontram nesse contexto implicações com a diáspora do povo judeu e os conflitos
induzidos pela chamada alta civilização entre judeus e árabes. Há similitudes
em quase todas as questões individuais, nacionais e universais e um claro exemplo
está na maneira com o escritor justapõe esse embate no Oriente Médio depois da
criação do Estado de Israel pela ONU e a celeuma causada pelo menino Amós num
almoço de afinidades atadas entre a família judaica de um tio e uma família
árabe implicada numa questão judicial depois de um deslize nos correios da
cidade. A partir do acidente cujo desfecho fica por se descobrir ― o menino
despenca de uma bola de ferro pendurada numa árvore que estraçalha o pé da
criança filha dos da casa ― as relações entre as famílias Al-Siluani e Klausner
nunca mais serão as mesmas, ainda que Arie tenha empregado todas as
alternativas diplomáticas para tentar obter o perdão ou pelo menos um diálogo
às claras sobre o desastre causado pelo filho.
Ao investigar
sobre essas possibilidades da conclusão da história, incluindo os esforços do
pai nesse sentido, Amós Oz se envolve no que é um dos pontos mais interessantes
em De amor e trevas: a construção de um retrato sobre seus
antepassados. É por esse tratamento que descobrimos o exímio fabulador, capaz
de a partir dos relatos de terceiros, como de sua tia Sonia ― a
que nunca é capaz de se referir diretamente sobre o fim trágico da irmã Fania. É
através de Sonia que o narrador / escritor tem acesso ao passado infantil e
jovem da mãe e é também a partir dela que pode reconstruir o encontro dos seus
pais e uma melhor imagem sobre os avós maternos, a vida simples e mais adiante
de algum luxo na Rússia até mesmo depois da Revolução, a fuga, mais tarde, com
a ascensão do nazismo, toda a sorte de humilhações, as histórias que permearam o
imaginário infantil da casa das três mulheres, para os itinerários entre a vida
e a morte da diáspora, tudo é reconstruído muitas vezes com uma precisão de
detalhes por esse narrador, como se atestasse a memória como um repositório
capaz de tudo apreender e registrar. O mesmo tratamento se percebe na leitura imaginativa
dos retratos de família que, juntamente com os depoimentos, são os elementos factuais
a partir dos quais todo o mundo ficcional é reanimado.
Da mesma
maneira como revive seus antepassados, a narrativa oferece alguns ricos perfis
sobre intelectuais que ligados ou não à família do escritor / narrador
contribuíram para a formação do pensamento e da literatura hebraica. Dentre as
figuras uma poderá logo chamar a atenção do leitor: Shmuel Agnon, ganhador do
Prêmio Nobel de Literatura em 1966. O escritor é retomado aqui a partir da
implicância com o tio de Amós, o professor Yossef Klausner ― redator
da Enciclopédia Hebraica. As implicâncias entre os dois faziam que nunca
se cruzassem, embora fossem vizinhos e, para infortúnio de Agnon, na rua
Klausner, nome dado em homenagem a Yossef e nunca alterado mesmo depois de o
escritor ser galardoado com o Nobel. Yossef também não sonha que Árie e o
pequeno Amós frequentam às escondidas a casa de Agnon. Todas essas histórias,
tal como aquela sobre a preocupação da avó com a limpeza, uma vez enredadas constituem
o extenso anedotário recuperado pelo escritor no tratamento de seus perfis. Algumas
dessas histórias chegam a ser repetidas, como se fossem um refrão ou aquele
recurso adjetival notado desde a epopeia grega clássica, que aqui igualmente ajudam
ao leitor a fixar nitidamente a imagem particular das personagens, visto que é
por entre uma ampla galeria que este narrador se move.
Mas, não é apenas
a presença de Yossef ou de Agnon que vigora nas raízes formativas de Amós Oz
escritor. Ou muito mais tarde a descoberta de Sherwood Anderson, depois de
passar pela literatura de escritores de todas as partes do mundo. Em cada uma dessas
figuras do universo familiar se ressalta alguma devoção à escrita, aos livros,
à educação e ao intelecto. A certa altura é a tia Sonia, uma das vozes
convocadas por esse narrador, que compreende esse tratamento com a maneira mais
subversiva encontrada pelo povo judeu de vencer as imposições jogadas
contra ele: privado de tudo, o saber, repetindo uma fórmula que se faz
universal, nunca é capaz de ser destituído e é sempre a condição fundamental
para conseguir ocupar alguma posição esteja onde estiver. E a celebração ao
saber está em toda parte em De amor e trevas: nos encontros do menino e
do jovem com seus professores sempre admirados; na descrição das extensas
bibliotecas do tio e do pai e no amor incondicional desses dois pelos livros e
pela leitura; na observação zelosa sobre a obstinação dos da família pela
educação; da dedicação contínua da mãe à leitura; e, principalmente, no fazer
literário mais simples ― seja o chiste enfadonho do pai e suas lições de etimologia,
seja o trabalho incansável do seu avô materno com a escrita de poemas em russo
e as muitas histórias inventadas desde a infância dos pais à sua infância e
contadas no leito de dormir, sobretudo aquelas inventadas pela mãe cheias do
moralismo trágico dos russos.
Com isso, se
evidencia o florescimento de uma rara vivência no / pelo literário. Há uma motivação
particular: o menino que encontra nos livros e na leitura uma maneira de não
deixar de ser o centro das atenções num ambiente familiar em que a criança é um
acessório a ser admirado puramente como fiel seguidor dos protocolos da vida
adulta; a cura para a solidão de filho único e de poucos amigos; a alternativa
de sobrevivência na escola, quando consegue driblar a violência dos mais velhos
sobre ele pela atitude a Scheherazade de enredar histórias sem fim colhidas da
imaginação e das leituras dos livros de aventura; a possibilidade de fazer
vingar a paixão infantil pela professora do segundo ano; etc. Ao mesmo tempo,
encontramos a constatação sobre a formação de um berço cultural no Oriente
Médio e daí a aproximação que se forma com as outras culturas, da qual o
próprio Amós Oz é profundo devedor.
Quando descobrimos
o menino que se coloca no centro das atenções pelo seu desempenho intelectual pode
voltar a saltar, outra vez, o estabelecimento da imagem do sujeito egocêntrico,
algo que se associa sempre ao caráter de todo artista. E essa característica
pode mesmo ser admitida não com esse nome, mas como um pabulagem da criança que
não sabe ao certo o que fazer com a sorte de adulações que lhe rodeia. É possível
quase sempre admitir que essa recorrência filtrada pela escrita apenas neste
período da vida do escritor se constitua numa maneira sagaz de se emascarar do
egolatrismo. Mas, não é o que revela a leitura sobre De amor e trevas.
O que é brilhante
neste romance é a maneira como o narrador não se deixa conduzir pela força
dramática das situações, como o caso daquelas biografias que carregam as cores
nas dores de sua personagem. Amós Oz não tem pretensões heroicas, tampouco hagiográficas.
Seja a morte da mãe e a despedida do pai, quando deixa a casa paterna para ir viver
num kibutz (esta, um dos episódios que nos arrasta para as lágrimas porque
de uma imagem vibrante) tudo é descrito sem dramatismos baratos. Com isso,
nunca prevalece sobre todos sua imagem, mas ele se faz personagem entre as
demais personagens. Se havia, então, quaisquer interesses de constituir uma
imagem oposta ao original (outra vez a implicância fato-ficção) conseguiu. A
imagem que prevalece é a de um escritor que busca se reconhecer, individual e coletivamente,
sem que, para isso, precise se mostrar acima de ou melhor que.
Isso é muito raro.
E muito
bonito. Há passagens singulares nesse itinerário, capazes de nos oferecer a
dose certa dos sentimentos que evocam. Citamos a despedida entre pai e filho,
mas poderíamos citar ainda nesse mesmo rol de imagens que provocam nossos
afetos: o do simples telefonema para os parentes em Tel Aviv que mudava, uma
vez por mês, a vida de todos na família de Oz; a consciência coletiva do pai
que usa lâmpada de baixo consumo de energia para não afetar os vizinhos; os
vários episódios sobre a vivência com / pelos livros ― de quando o pai lhe oferece
um espaço na estante para sua incipiente biblioteca, o pai que precisa se
desfazer do livro de estima para comprar comida para a família; a admiração e o
reconhecimento buscado junto a Agnon; o registro sobre a morte pelos nazistas
do tio David com o filho de três anos e a companheira; as sábias aprendizagens
com o avô Naftali Hertz; a vida da mãe com as irmãs Sonia e Chaia; este que é
um conto inserido na tessitura do romance, o episódio que evoca a relação do
menino Klausner com uma carpa na banheira de casa; a maneira como age para
estar perto da professora do segundo ano; a dedicação do pai com os da casa em,
diariamente, no período de safra das laranjas, acordar mais cedo, preparar um suco
aquecido para o filho e a companheira; a estreita dedicação de Árie com Fânia;
mesmo as descrições do submundo interior para o qual a mãe é, de tempos
em tempos arrastada; a descrição sobre a emoção dos judeus pela criação em 29
de novembro de 1947 do estado de Israel; as estratégias de bondade de duas
freiras que decidem permanecer na Jerusalém sitiada e se desdobram em caridades
para ajudar as pessoas, sem olhar questões religiosas ou rejeições; as
descobertas e os encantos pelas novas leituras; enfim, a lista é bastante
extensa.
É possível
que De amor e trevas tenha ganhado a projeção que ganhou ―
este é, certamente, um dos livros mais conhecidos de Amós Oz, foi adaptado para
o cinema pelas mãos de Natalie Portman em 2015 ― pelo tecido autobiográfico
que o envolve, porque, afinal, a curiosidade sobre a vida alheia move a humanidade
desde a origem dos tempos; mas, esse simples contato com o rico universo é
suficiente para despertar outras maneiras de ver nosso entorno porque as
celebrações variadas aqui exercitadas (ao simples, ao conhecimento, aos afetos
mais íntimos, às lutas) cobram o valor mais caro que nos define enquanto
civilização: humanismo. E, se além disso, tiver alcançado tocar em valores tão
básicos, entretanto quase não praticados, como a solidariedade, a empatia, o
reconhecimento, a compaixão, então, valerá duplamente.
As duas
palavras que o escritor escolheu para enfeixar a variedade de narrativas registradas
nesse romance esclarecem, uma vez atravessado todo o longo percurso, uma das
forças vitais desse livro. O escritor israelense substitui o antônimo de amor
por trevas. E aqui, nessa palavra, se contêm tanto o sentido oposto da primeira
e aquela dimensão sobre a qual investiga ao longo dessa descida ao passado. O
que constata? Que, seja as forças que jogam homens contra homens, seja esses
horrores mais íntimos que não se mostram nem mesmo para os que os carregam, há
uma outra dimensão da vida fundamental de ser exercida: e esta é colocada no
título e ao longo do romance, em primeiro plano ― sempre.
Há ainda
outros ricos momentos de aprendizagens: sobre a diáspora, a história de
formação dos povos, a leitura do conflito entre israelenses e palestinos, ou a
geografia e o vivo retrato da Jerusalém de antes e depois do cerco. Em parte, essas
ocasiões estão a serviço de revelar para o leitor as bases do pensamento ético
e político do escritor feito, mas são, lições inestimáveis capazes de
esclarecer ou propor uma visão mais nítida sobre o universo com o qual mantemos
algum contato desde a infância, mas sempre pouco discutido ou confuso para nós.
Reforça-se aqui o entendimento reiterado por Roland Barthes na sua Aula
e que se tornou frase feita em todo curso de literatura: “Se, por não sei que
excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser
expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva,
pois todas as ciências estão presentes no monumento literário.”
Se este foi
um livro com o qual o escritor pode encontrar as respostas de toda uma vida ― o
destino da família e seu envolvimento com a literatura ― constituindo para si um longo
itinerário de reaprendizagens particulares, é para o leitor um
itinerário de reaprendizagens para uma vida. O trânsito entre um polo e
outro é o que nos faz pensar sobre a força universal da literatura, capaz de nos
fazer ver o mundo nosso pelas lentes do outro. Não há preço para isso e esse valor
insubstituível, o próprio valor da literatura, é alcançado por De amor e
trevas.
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