Da releitura como habitação
Por Guilherme
Mazzafera
“Ler é
cobrir a cara. E escrever é mostrá-la”
Alejandro
Zambra, Formas de voltar para casa
Sem título. Gianni De Conno. |
Há um
pequeno gesto que fazemos ao querer dissipar um pensamento incômodo: um menear
de cabeça, um estalar de dedos, um raspar de dentes. O vincar da unha na carne
para impedir o espirro. No meu caso, é forçoso dizê-lo, tenho crises de
releitura.
Elas surgem
sem aviso: irrompem em meio ao rijo tecido de uma rotina estrábica, avultam sem
refreio, exigem controle do parco tempo administrável. Muitas vezes, basta ver
o nome de um autor querido, há muito olvidado, em texto alheio. Outras, o
rápido vislumbre de sua lombada esquiva no amealhar-se da estante. Em suma:
saudade. Do texto, do autor, de nós mesmos enquanto lemos.
No primeiro
volume dos diários de Emilio Renzi há uma passagem que fala da pungência
mnemônica do leitor, que resguarda não tanto versos, enredos, personagens, mas
o lugar em que lê determinado livro e, desenovelando o fio, todo o contexto
circundante então experimentado. Esta memória faz-se fotografia levemente
borrada, em que os olhos ainda revelam-se avermelhados. A reconstituição
completa é sempre falha ou, no melhor dos casos, imaginada. Há lacunas por
completar, e muitas vezes o livro nos dá pistas sobre como fazê-lo.
Ao ler a
segunda parte do Quixote pela primeira vez, no último ano do ensino médio,
ganhei meu próprio e brevíssimo governo da Ínsula Baratária ao despertar de
madrugada com um redemunho de água descendendo do bocal da lâmpada. A solução
foi rápida e nada se perdeu neste pretenso naufrágio, mas minhas memórias do
livro tornaram-se inevitavelmente mais aquosas. O termo ínsula fez-se ainda
mais premente em minhas leituras, refugando traduções que o vertem
equivocadamente por “ilha”.
Outro úmido
exemplo se deu ao ler “O burrinho pedrês” em um quinze de novembro de chuva
carregada, em que o ribombar dos trovões reforçava o néscio desespero da
travessia do Córrego da Fome. Ou, ainda, em um junho de frio intenso (quando
ainda havia frio na época de frio), o périplo dos Noldor pelo excruciante
Helcaraxë em O Silmarillion foi plenamente referendado pelos caprichos
atmosféricos. Talvez nossa memória dos livros dependa exatamente dessa
consubstanciação entre mundo e palavra. O cru e o cozido.
Falei aqui
apenas de primeiras leituras, o que me conduz à questão vital: o que buscamos
ao reler um livro?
Meu autor da
vez foi Zambra, inicialmente recordado pelo belíssimo Formas de voltar para
casa. Mas não pude resistir e li todos os cinco livros seus que tenho. A
brevidade dos mesmos é alegre convite, e em uma mesma tarde de sábado, logo
precipitada em noite, percorri Bonsai e A vida privada das árvores,
livros-irmãos, de contiguidade expressiva e mesmo difusa em uma leitura ávida
como a que fiz.
Eu não
queria me aprofundar em Zambra, nem mesmo escrever sobre ele – o que talvez
equivocadamente faça agora, a partir de Zambra –, mas simplesmente ler seus
livros de novo, talvez em busca daquela delicadeza ruidosa ou do silêncio
comunicante que suas sucintas histórias evocam.
[Devo
confessar que não aprecio muito alguns topoi da autoficção, essa mania de tudo
converter em escrita interrompida, difícil, lacunar. Essa obsessão com
cigarros, dérives noturnas, relacionamentos difíceis e evanescentes,
apartamentos pouco arejados e sem móveis, incontáveis cigarros, a mescla
inevitável entre literatura e vida. Eu sei que dificilmente se pode exigir de
um escritor, hoje, que narre com a certeza vibrante do realismo francês do XIX,
com a falsa crença da história como progresso ou com a convicção de que a
experiência é de fato comunicante. Às vezes eu só quero uma boa história. Por
isso que, ato contínuo, fui ler (e não reler) A aranha negra.]
O que
buscava em Zambra, talvez, era o eu que, ao ler Formas de voltar para casa pela
primeira vez, não pensava em voltar para casa. O mundo era outro então (ou o
mesmo, mas eu certamente era outro); antes do golpe, de Trump, de 2018, de 2019,
de 2020. A Terra era um pouco menos plana e fascista. E talvez, só talvez, eu
soubesse, ainda, me perder nos livros. Em outros livros.
No fecho de Formas,
o narrador de Zambra descreve, com a delicadeza cortante que lhe é inata, as
agruras do ofício escolhido, em face de um segundo terremoto que aflige
Santiago mais de duas décadas depois do primeiro, tremores especulares que
estruturam a narrativa:
“É tarde.
Escrevo. A cidade convalesce mas retoma aos poucos o movimento de uma noite
qualquer, o fim do verão. Penso ingenuamente, intensamente na dor. Nas pessoas
que morreram hoje, no sul. Nos mortos de ontem, de amanhã. E neste ofício
estranho, humilde e altivo, necessário e insuficiente: passar a vida olhando,
escrevendo.”
Vejo-me
pensando, ingenuamente, nas mais de duas resmas de mortos do dia que finda,
contagem perversamente empurrada para dentro da noite. São as últimas semanas
do outono, que sinto como nenhum outro antes desse. A cidade convalesce, mas
retoma aos poucos o movimento de uma estação qualquer. Deixei São Paulo no final
de abril, rumo ao interior, à família, ao lar. Mas já não habito esse mesmo
lar. Sou visita. Há alguma casa para voltar se o mundo mudou tanto? Por sorte,
meus Zambras estavam alojados nesta outra casa, a que já foi minha. Trouxe-os
para mais perto, reivindicando nova posse.
Enquanto
seguia me perguntando por que sentia tão fundo a urgência da releitura, eis que
o próprio narrador de Formas me diz:
“Em vez de
escrever, passei a manhã tomando cerveja e lendo Madame Bovary. Agora penso que
o melhor que fiz nestes anos foi beber muitíssima cerveja e reler alguns livros
com devoção, com estranha fidelidade, como se neles pulsasse algo próprio, uma
pista sobre o destino.”
Não é de
hoje que listo com algum apuro minhas releituras anuais favoritas, embora nem
todas suscitem esta “estranha fidelidade”. Não sei com qual pista sobre o
destino Zambra me acena. Eu nem mesmo me importo com cerveja. Mas intuo que o
algo próprio não é rasgo em céu azul, mas fruto do hábito. Sempre gostei do uso
do verbo frequentar enquanto gesto ativo de leitura: lê-se o livro,
frequenta-se o poeta. A devoção abdica da idolatria, abrindo a porta da
comensalidade.
Ao
justificar para seu interesse amoroso o arrastado empenho na escrita de um
romance, revivendo aqueles dias de tremor, o narrador de Zambra diz: “É que eu
prefiro escrever a já ter escrito. Prefiro permanecer, habitar esse tempo”.
E chego a
esta formulação, imperfeita como tudo que se gesta com ênfase, inautoral como
tudo que vale a pena em literatura. É que eu prefiro ler a já ter lido. Eis a
límpida divisa do releitor. Prefiro permanecer neste livro, para, assim, voltar
a habitar meu tempo e suas estações, minha casa e seus cômodos, minha estante e
seus livros.
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