Anacrusa, de Ricardo Daunt
Por Pedro
Fernandes
A passagem
mais recordada toda vez que se quer designar a linguagem como o princípio
original e enformador do mundo está no primeiro capítulo do livro de João; é o
versículo no qual o autor do Evangelho retoma o episódio genesíaco da ordem do
mundo: “No princípio era o Verbo”. Toma-se, assim, o sentido quase imediato do
último termo como designativo da palavra ou ainda na categoria
gramatical para o qual se volta ― o termo que denota ação, estado. Este, por
sua vez, sabemos constitui o complexo de atividades desempenhadas; mas nele se
contém ainda toda a dimensão essencial para a existência, o tempo. Assim é que
tempo e linguagem se designam como dois princípios de irrupção simultânea do
acaso. A palavra, conforme, dissemos antes, não é ainda a materialidade feita
com letras, por mais que o papel figurativo que a favorece enquanto enformante
das coisas esteja ativo. O mito cristão não deixa de esclarecer que o mundo
se formava à medida que o seu criador nomeava seus materiais constitutivos.
Não é o
caso aqui de se oferecer uma leitura sobre o Gênesis ou sobre o Evangelho de
João. Tampouco iniciar a longa aventura pela linhagem da linguagem enquanto
matéria constitutiva do todo, incluindo ela própria. A menção se faz para outra
vez recuperar a compreensão segundo a qual toda obra literária reensaia as
matrizes do mito original. Isto é, no princípio, a palavra e o homem que
circunstancialmente a modela a projeta a partir de /e com ela um universo com
existência e força próprias, compreendido ora pelo cotejo que faz com o mundo exterior
ao texto, ora pelo cotejo que faz com outros mundos de substrato verbal, ora
pela combinação dos dois, ora ainda pela tentativa de negação dos dois, como se
quisesse oferecer um mundo autônomo com leis determinadas não pelo seu criador,
mas por seus habitantes, desfazendo-se, assim, desse princípio dogmático que enforma
a existência desde os tempos imemoriais.
Anacrusa, de
Ricardo Daunt é um livro que se filia a essa última estirpe. Os seus
princípios designativos muito próprios de uma anarquia ganham força a partir da
contínua negação da linguagem enquanto representação materialista das coisas e
da narrativa como uma tentativa de estabelecer certa ordem no caos da realidade.
Quer dizer, trata-se, tal literatura, de reanimar a desordem como um princípio ativo
de estabelecimento do mundo, ressaltando que a ordem é tanto uma aparência quanto
um simulacro em busca do qual todos são continuamente reanimados a correr.
Nesse caso, a literatura não se confirma como só mais uma alternativa nesse
trabalho de encontrar um sentido original, mas garantir a multiplicação dos
sentidos, oferecendo não um universo em concentração mas em expansão.
O trabalho,
desde o aparecimento das primeiras formas radicais de manipulação dos estratos
narrativos, é um esforço de, pelo lado de dentro da linguagem, encontrar outras
maneiras de habitar o mundo; não se perde nisso o princípio universal de busca
ou estabelecimento de um sentido ou a tentativa, para uns distintiva mas para
nós integrativa, de alcançar pela palavra a origem do sentido ou da compreensão
do mundo enquanto caos gerador de ordem. A tarefa parece iluminada por certa
luz fenomenológica, a mesma que repensa a relação iluminista e racionalista
homem e mundo enquanto dicotomias ou que o primeiro se coloque acima do segundo
por sua natureza enunciativa, articuladora e criadora.
O que
Ricardo Daunt faz em Anacrusa, no entanto, não é investigar os volteios
da origem, muito embora, o traço que parece acompanhar essa literatura da
desintegração não deixe de mostrar suas feições. Por vezes, suspeitamos encontrarmo-nos
diante dos princípios fundadores de uma cosmovisão, quando o escritor busca os paramentos
para a composição de seu universo fabular; e esses princípios se mostram em
campos criativos diversos ― fundação do mundo, da ordem social, da narrativa,
do texto, de uma peça, de um poema, do roteiro para um filme. No fim, alguém
poderá dizer que é tudo isso e não é. Enquanto experimentação, basta dizer, que
nada de concreto se ergue, mas se mostra o mundo (e toda sorte de variantes a
partir desse termo, qual o verbo bíblico) enquanto descontinuidade, fazimento e
desfazimento contínuos.
A crítica encontra
na própria leitura dos fragmentos do livro uma alternativa. Na passagem que aparece
intitulada “Capítulo sem número” sugere-se que o narrador possível de Anacrusa
(possível porque não se oferece uma narrativa e sim protonarrativas)
manipularia esse mundo delimitado pelo substrato verbal do livro como quem
manipula um caleidoscópio. Na tentativa de se atribuir uma ordem de sentido
para o texto, confunde-se, desgraçadamente, narrador com escritor. Isso porque,
alcançamos na passagem referida o gesto de manipulação desse protonarrador com
o objeto em questão. A leitura tem, obviamente sua valia, mas não deixa de ser limitadora,
contrariando, se for para seguir às cegas o rastro do escritor na entidade que
se move com as palavras, o próprio texto.
“Parti,
então, de um pressuposto aparentemente grosseiro e redundante: tanto o
caleidoscópico quanto o nítido nulo não se repetiam empiricamente, ambos
ofereciam infinitas possibilidades de prognóstico, e ambos, também, se
interferiam mutuamente quando um invadia os domínios do outro. Em estando eu na
região limítrofe de tais domínios ― e a ilação só é válida para o local
fronteiriço ―, poderia concluir que o caleidoscópio e o nítido nulo, em dado
momento e em dado lugar, coincidem completamente, e o propósito básico de um é
o propósito do outro, de forma que qualquer pessoa que ainda sinta alguma
emoção por caleidoscópios estará, mutatis mutandis, estabelecendo alguma
espécie de contato com o nítido nulo. Suas chances de pisar o mesmo território
que piso agora não serão nunca desprezíveis, bastando que o manipulador de
caleidoscópios traga sempre um exemplar no bolso do paletó, fazendo uso dele quando
sentir necessidade.”
Ora,
qualquer uso de um caleidoscópio não servirá para revelar as imagens-possíveis no
campo proposto dos fragmentos de Anacrusa. Isto é, embora, o objeto sirva
de uma matéria capaz de decifrar um método criativo ― revelado pelo fragmento,
pela composição irregular, repetível e irrepetível simultaneamente, múltipla ―
não oferece qualquer segurança para que avistemos uma unidade mais ou menos
fixa de sentido formada do que se busca em textos do tipo narrativo: uma história.
Se, repetimos, formos seguir a questionável justaposição escritor-narrador, o
início da passagem acima em destaque logo chama o caleidoscópio e o ponto de
efervescência da ordem do sentido, o lugar zero da escrita, repetindo os termos
de Roland Barthes, são pressuposições grosseiras e redundantes. Não
é pura artimanha de um texto que trapaceia com o seu leitor, mas de um texto
que trapaceia ele próprio porque se pretende jogo único no extenso tabuleiro
das criações verbais.
Toda vez
que se nos apresenta um broto de narração, a mão que tece, destece. Desse modo,
retornamos ao ponto de origem, o de quando nada sabíamos sobre o assunto do
texto. Mas esse movimento, obviamente, embora pareça o mesmo, não é: a cada desfazimento,
desde o segundo, saímos com algo acumulado dos instantes anteriores. O problema
é que também não nos é dada a chance de, no fim do itinerário com as migalhas
que juntamos ao longo do percurso, encontrar um fio narrativo. Mesmo assim, temos
os possíveis. E aqui parece estar o ponto neutro: a realidade, entendendo por
esta no sentido mais simples, o das manifestações captadas pelos sentidos
imediatos, é um múltiplo de possibilidades, nunca um todo harmônico e
explicável ― este parece ter sido apesar de inaugurado na criação do mundo negado
ao homem, para outra vez voltarmos ao Gênesis, quando este foi expulso do
paraíso.
O que se
sabe de Anacrusa, sem sair do campo dos possíveis, é do acontecimento-irradiador:
o assassinato de Isabel por Antonio Vidal. O resto são multiplicações,
incluindo mesmo a das protopersonagens: o filho não-nascido de Isabel e todas
as variantes assumidas, o cadáver, a companheira de Antonio Vidal, a musa, a
criança, um peixe, uma árvore, emergem do primeiro nome; do segundo, o
seu outro formado pelo mesmo par de nomes próprios e passam a se designarem
isoladamente por Antonio e Vidal num claro jogo psicanalítico entre o eu e sua
projeção. Este, aliás, é o tratamento da matéria verbal neste livro: a
linguagem enquanto corpo em contínua mutação no movimento do mundo e da
realidade que acima descrevemos como articulação pendular entre construção e
desconstrução.
Há toda
uma variedade de pequenos sistemas de sentido que cobram do leitor o mesmo
exercício, como se a forma derivasse por imitação da tese basilar de feitura do
texto, além, é claro, de um rico campo simbólico: a morte e o nascimento, o
mundo primitivo e o mundo hodierno, a liberdade e a prisão, o sonho, a
imaginação, o devaneio, a casa, o sótão, o bestiário, a culpa a confissão, a
flora, a água, a terra, a criança, o gênesis, o apocalipse etc. Há ainda as
infiltrações em modos de desconstrução da música, das artes plásticas e do
cinema. Tudo isso são caminhos oferecidos enquanto possíveis para a leitura.
Mas, um
deles parece se evidenciar ― partindo da confluência entre o tema e a forma do
referido “Capítulo sem número” ― pelos títulos que constituem as quatro partes
do texto: 1. Os nomes e os modos; 2. A levedura dos corpos; 3. A pelota de
Isabel; 4. O equinócio e a germinação das plantas. É outra vez o princípio da
criação o que se insinua na ordem desses termos, levando-se a deduzir esse material
como pura manipulação infantil dos pequenos mundos que costumamos forjar quando
crianças; nesse caso, a composição do habitat humano tal como se nota na
infância subjetiva tendo no homem a figura principal, o ser controlador, ou o
ser de linguagem, se nos detivermos apenas no tratamento verbal. O mundo em que
o homem, sozinho, desempenha suas funções à imagem e semelhança do seu Criador.
Fica a suspeita como possível resposta para a leitura inclusive da dicção descentrada
de uma narrativa que nunca passa do limite de seu nascimento, como se uma
impaciência desarticulasse o instante que viria no momento seguinte como continuidade
do instante anterior.
É assim
que se estabelece toda uma literatura que podemos designá-la como literatura
do porvir, visto que, o que dela se denota precisa passar
obrigatoriamente pelos desígnios da leitura; parte dela passa pela desconstrução
também de todo um senso de seriedade que passamos a construir com os
valores centralizadores da história e a tentativa de desvincular o literário do
papel de objeto feito para o entretenimento. Bom, não é ainda ao campo dos
passatempos que é possível incluir textos como o de Ricardo Daunt (ao menos no
sentido questionável de passatempo que as atuais sociedades têm fabricado)
porque uma vez situados nesses mundos de tinta e papel nos multiplicamos para
encontrar as senhas que nos abram as portas que nos mostrem uma a uma as partes
da casa. Acontece que esses textos estão para o desafio contrário que só a imaginação
― campo que cada vez nos falta num mundo feito do imediatismo da imagem como
representação ― e muita disposição podem nos oferecer: o mundo enquanto caos
por decifrar.
Comentários