A vida e as extraordinárias aventuras do soldado Ivan Tchônkin
Por Joaquim Serra
A vida e as
extraordinárias aventuras do soldado Ivan Tchônkin é uma sátira escrita por um
dissidente soviético. Só essa afirmação já deveria aguçar a curiosidade do
leitor atento às vicissitudes russas já que, como se sabe, os seus mais
célebres escritores nunca agradaram de fato a censura ou os críticos da época. Estes,
enquanto brigavam em um cabo de força para construir a identidade de um povo,
cabia ao escritor russo penetrar nas camadas altas do pensamento filosófico
transformado em uma narrativa quase sem ação ou ir até o mais baixo dos porões,
na mais afastada das aldeias para ver como se comportam os de carne e osso que
vagueiam sobre um mundo desconhecido.
Mês passado
comentei brevemente algumas peças de Gógol. O projeto estético de Vladimir
Voinóvitch, em A vida e as extraordinárias aventuras do soldado Ivan Tchônkin,
recupera boa parte da tradição gogoliana. Também tem fortes ligações com outras
narrativas de guerra como As aventuras do bom soldado Švejk, de Jaroslav Hašek,
um monumento do humor negro que tem como cenário a primeira guerra mundial. Na União
Soviética, o relato acerca do soldado Tchônkin circulou apenas por meio de samizdat
(publicação clandestina) e custou a Vladimir Voinóvitch a saída de sua pátria.
Tudo começa
quando o soldado Ivan Tchônkin é enviado para a aldeia de Krásnoie para tomar
conta de um aeroplano que aí pousara por problemas mecânicos. Tchônkin é um
homem simples, mal sabe ler e se comportar em público (apesar das reprimendas e
insistência dos seus superiores). Encontrou no serviço militar um lugar, antes
de tudo, para sobreviver, já que tem um passado marcado pela miséria. Talvez
para alguns vigiar um aeroplano imóvel poderia pôr em xeque as habilidades
militares que poderiam ser melhor utilizadas, não para o herói de Voinóvitch. Diz
o narrador: “o tempo de Tchônkin não fora dividido e distribuído para qualquer
objetivo nobre; seria apenas para viver e completar o fluxo da vida, sem
extrair dali qualquer conclusão: resumia-se em comer, dormir, beber e atender
às suas necessidades psicológicas ou chamados da natureza”.
Na aldeia
Tchônkin conhece Niúra Beliachova, uma moça simples que vive apenas na
companhia de um porco (que vai custar um episódio de ciúme por parte de
Tchônkin), e, movido por instintos quase animais, começa a viver com a moça. O
vizinho Gladichev é um simples camponês metido a cientista que recebeu certa
notoriedade através de suas experiências fracassadas cruzando geneticamente
tomates com tubérculos. O narrador não o poupa toda vez que entra em cena. Por
conta de suas experiências no mundo do plantio, sua casa cheira mal e a mulher
o escorraça. Segue aqui um trecho de uma das teorias de Gladichev quando este
tenta explicar a Tchônkin um benéfico alimento ainda desprezado pelos homens:
“Avalie por
si mesmo. O chão precisa ser fertilizado com merda para termos uma boa
colheita. Todas as ervas, cereais e frutos que nós e os animais comemos vêm da
merda. Os animais nos dão leite, carne, lã e tudo o mais. Nós usamos isso e
depois transformamos em merda outra vez. Essa é a origem de... como posso
dizer... a circulação da merda na natureza. Vamos perguntar a nós mesmos por
que motivo devemos usar a merda na forma de carne ou leite ou mesmo deste pão
aqui, isto é, em forma processada e beneficiada. Surge a pergunta legítima: não
seria melhor livrarmo-nos de nossos preconceitos e falsos melindres e usar a
própria merda, em forma pura, como uma espécie de vitamina maravilhosa? No
início, é claro — Gladichev se corrigiu, ao observar que Tchônkin se encolhia
—, haveríamos de tirar-lhe o cheiro natural e então, quando o homem estivesse
acostumado, era só deixar como estava. Mas, Vânia, essa tarefa pertence a um
futuro distante e às futuras realizações da ciência. Proponho que brindemos ao
êxito de nossa ciência, ao poder soviético e à pessoa do Camarada Stálin, um
gênio de fama mundial.”
A cena toda
é gogoliana do começo ao fim. Mistura o assunto baixo de Gladichev com a figura
altiva de Stalin misturando o cômico com o grotesco. Os sonhos e devaneios com
a figura do camarada Stalin, a falta de conhecimento histórico das
personalidades e acontecimentos, isso quando não são confundidos e entrelaçados
com outros eventos e outras personalidades, são mostrados através da
perspectiva do riso como aquelas pessoas estavam longe do sonhado homo
sovieticus.
Mas não é só
ao particular da vida cotidiana que o narrador irônico de Voinóvitch se apega.
Para abrir uma segunda história de seu relato, diz ele que “a notícia de que a
guerra começara pegou todos dormindo porque ninguém estivera dando a mínima
atenção ao assunto”. Assim como a sátira de Jaroslav Hašek trata da ida de um
louco para a guerra (porque só um louco poderia querer ir para a guerra, o que
nos remete ao famoso paradoxo Ardil 22), a de Voinóvitch trata da segunda
guerra. Primeiro a guerra é distante, com pequenas referências aos bombardeios,
assinaturas e àquilo que ficaria marcado para sempre na memória do século XX,
para depois tomar conta da narrativa e da vida dos personagens de A vida...
O
relato, portanto, é divido simbolicamente em duas partes: na primeira Tchônkin se
torna uma sentinela sob os gritos e caprichos de seus superiores, na segunda a
guerra ganha protagonismo. E, claro, o pobre diabo Ivan Tchônkin sofrerá as
consequências positivas e negativas da nova situação já que os personagens de
Voinóvitch, como se vê em Gógol, podem ser marionetes atrapalhas a serviço de
um diabo sagaz e desimpedido.
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