A mamã por cima dos telhados e o meu amor, de Maria Azenha
Por Pedro
Fernandes
A mamã
por cima dos telhados e o meu amor é um livro, como próprio título enuncia,
estruturado a partir de dois mitologemas poéticos ― a mãe e o amor.
Cada um deles se inscreve de maneira
variada ao longo de poemas. E em cada poema, o que se manifesta é uma voz em
descoberta do mundo enquanto danação e morte. Essas duas imagens (também
podemos dizer assim) dão forma ao conteúdo poético do livro e cada uma delas se
tem seu ponto de partida no espírito próprio da voz que anima o poema (e esta
por sua vez possa ser uma extensão da poeta) não estão à serviço de sua
individualidade mas se reintegram às forças universais, ponto de integração de
toda verdadeira literatura. Isso é importante de observar porque se do grande
caldeirão imemorial o poeta recolhe os materiais que dão fôlego à palavra é
sempre a ele que volta, reintroduzindo novos materiais. A poesia participa
ativamente do trabalho de formação dos novos mitologemas.
O que chamamos
por mitologemas é, podemos dizer, uma extensão dos topos literários cujas
raízes se mostram nativas dentre os sedimentos nem sempre visíveis no solo
fértil do inconsciente coletivo, como postulado pelas proposições da psicologia
analítica de Jung, identificador desse vasto território anterior a ordem
memorial da vida. São partes formativas do que E. M. Meletínski
conceituou a partir daí como arquétipo literário; para o teórico russo,
isso se distinguiria, em parte, da ideia de topos, por acréscimo, uma
vez que, à maneira junguiana, os arquétipos “são antes imagens, personagens,
papéis a serem desempenhados e, apenas, em medida muito menor, temas”. A mãe,
aliás, é designada por Jung como o mais importante dos arquétipos mitológicos; ela
expressa o elemento do inconsciente eterno e imortal. Ora, nesse mesmo raciocínio,
o poeta se integra nesse conjunto arquetípico pela sua natureza de despertar a
consciência individual a partir do inconsciente coletivo e também, repetindo
por cima do texto de Meletínski o que
ele identifica de Jung o arquétipo da criança, “a ligação com a
indiferenciação inconsciente primitiva e a ‘antecipação’ da morte e do novo
nascimento”.
Nesse
sentido, o mitologema é sempre uma imagem universal e imemorial. Sua
força forma a atmosfera do poético e vibra com intensidade variada nos
poemas. Em grande parte dos textos reunidos
em A mamã por cima dos telhados e o meu amor ― como é o caso do poema que
oferece o título para a antologia ― o que se observa é uma voz poética em
tentativa de contato com essa dimensão, manifesta sempre em contínuo silêncio,
como se este mundo habitado pela poeta fosse um só deserto onde restasse apenas
sua voz (e talvez sim, no mundo da técnica e do barulho, o poeta é, paradoxalmente,
o que luta contra o silêncio): a mãe quando aparece encontra-se qual a voz que
a interpela, envolta na dor mundo, como se lê nas interrogações de “Auschwitz
no coração” (“Filha, Filha, / Onde estás?) ou procura um mundo
habitável. Neste último caso, o mais visível e dos mais singulares encontra-se
no poema “Nossa Senhora de Burka”; o título oferece uma imagem que mesmo comum
não deixa de intrigar o leitor ― sim, todas as Nossa Senhora estão
vestidas assim, mas nunca reparamos nas suas vestes. E esta que bate à porta da
poeta enquanto se dedica a colecionar poemas que são objetos com os quais não
sabe o que fazer deles, está “à procura do filho que perdera / Há mais de dois
mil anos”. Quer dizer, o que se testemunha é uma sucessão de desencontros: a filha
que interpela e a mãe não escuta ou a mãe que não escuta o filho.
O
desencontro é produto de um mundo, como dissemos, atulhado pela dor da perda. Há
certo compromisso ético na poesia de Maria Azenha impossível de não repararmos:
o do poeta que se questiona sobre sua atividade nesse tempo atravessado pelos grandes
e pequenos horrores, de Auschwitz à mortal e contínua indiferença individual. O
apelo a esse mitologema da mãe, revisitado em múltiplas dimensões que
esta imagem assume na cotidianidade da literatura, mas sempre ressaltado na
poesia da poeta portuguesa pelas frações entre mãe e filhos ou vice-versa,
atendem à fatal constatação do homem enquanto ser deserção no mundo. Interferem-se
mãe e poeta visto que o lugar assumido por este último num tempo
improvável para a poesia é o da voz que enuncia sozinha o que é ignorado pelo
filho.
Bem sabemos que
esse mitologema literário quase sempre se retoma pelas matrizes pela sua dupla
dimensão, vivente e mortal, que se nele abriga se abriga sobretudo
na cultura ocidental; ou ainda, por aquilo que se convencionou em certas seções
do cristianismo como culto da mãe, por
nela se observar o princípio da mais pura e sincera forma de amor, uma
porção infinita capaz de suportar as mais cruéis das dores: a indiferença, o
escárnio, a violência e a brutalidade da morte gratuita. A poeta, entretanto,
não se filia a essa segunda dimensão, um tanto idealizada, diga-se, pelo
pensamento religioso; sua referência é histórica (como já sinalizamos) e
mítica. Logo, ainda que tenham mãos grandes (para referirmo-nos a uma imagem
surrealista de um poema com igual título) e nos possa oferecer o refúgio na
aridez do mundo, a mãe nem sempre pode sozinha com o peso de toda gente e nem é
a força redentora do mundo, porque ela, qual os entes colocados à sua margem, é,
igualmente como todos, uma condenada: ― “Aqui, / Ninguém pode ser feliz!”
// ―
“O céu é um matadouro de estrelas / Com figuras ao contrário!”
O amor que
se enuncia no título do livro, materializado em sua dimensão individual, não é,
portanto, o amor materno. A mãe aqui é ausência, dor, solidão, intuição, silêncio,
procura, memória, espera, sopro e recusa do poético, dimensão secreta da ordem
e da desordem. Pode-se dizer que a poeta encontra na recuperação mítica (e não
mística) da mãe a impassibilidade para o mal do mundo porque contra aquele
hospeda o segundo mitologema recuperado na sua poesia. O amor não é outra vez
uma manifestação idealista; mas a pulsão que rege os corpos e a vida. Este,
portanto, é eterno, variável, ou melhor, eterno porque variável. Há um poema
que conjuga as duas imagens recorrentes na antologia e que ratifica essa
leitura. À pergunta-título “O que é o amor, mãe”, um poema-resposta, num dos
raros momentos em que se encontram a voz interpeladora e a voz materna: “O
amor, filha, / É quando a eternidade / Sai do seu lugar // E entra no teu
coração.” Ou seja, amor e eternidade são correspondentes; um e outro são
afetados pela natureza em comum que dele fazemos: o amor e a eternidade estão
sempre pensados como entidades futuras.
Agora se o
amor só o é quando exercício presente no coração, todo amor, por universal que
seja (a porção que ainda nos resta do sagrado para recuperar o poema “O amor é o
que nos resta”), é manifestação individual. Neste livro de Maria Azenha, se as
feições desse mitologema é variada, há uma prevalência: o amor enquanto força que
intercede e anima existências em conjunto, este feito de certa porção carnal e
instintiva. Assim, há espaço para o amor romântico, matéria para o equilíbrio
entre dois corpos, e amor erótico, pulsão capaz de colocar corpos e espíritos
em movimento. E é aqui que se oferece o duplo itinerário da poesia:
reapropriação dos temas perenes no imaginário coletivo e devolução alterada de
suas feições.
É que o tempo
do poeta é simultaneamente esse imemorial e o material e o segundo participa
nesse trabalho de interferência e alteração do primeiro. Ora, o amor é a
alternativa contra a dor e danação do mundo, mas, não a força idealizada
estabelecida pela cultura. Vislumbra-se assim que o desencontro do homem com
mundo ―
aqui materializado no descompasso de vozes da mãe e da filha ou o seu contrário
―
é produto também dessa incapacidade de enfrentarmos o mundo tal como se nos
apresenta por uma aposta racional (sim, por contraditório que pareça) na
idealização, no possível, sempre colocados como porvir. Mas, o que nos
resta nesse deserto do real é tão somente nós, nossa força e o agora;
é de todos a responsabilidade pela desordem e pela ordem do mundo. Para isso
existem os poetas: para atestar o que, apesar de fundamental, nunca é assumido diretamente
como responsabilidade nossa. O exemplo está dado no mundo próprio erguido com o
substrato verbal: cada poema de Maria Azenha é evidência de que se com palavras
construímos realidades potentes e originais, com ação somos capazes de modificar
os rumos e os limites que até agora perseguimos com as dimensões mais cruéis do
ideal e da razão.
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