A cidade do vento, de Grazia Deledda



Por Pedro Fernandes

Grazia Deledda. Roma, novembro de 1927. Arquivo L'Illustrazione Italiana. 


As aparências enganam. E alguns enganos produzem desvios no destino com consequências irreversíveis. A narradora de A cidade do vento foi colorida com as mesmas tintas que sobraram da feitura de Emma Bovary: a mulher ávida por leituras, seu passatempo predileto, e profundamente marcada pela idealização amorosa se pela leitura, não sabemos, afinal, seus hábitos de leitora não são minuciosamente explorados. Sabemos que a modesta biblioteca que a família herdou pertencera ao seu tio bispo e que nela estão de livros não adequados à idade da narradora lidos na surdina da noite aos religiosos, dispensados de sua atenção: “todos os grandes clássicos, nossos ou traduzidos em língua italiana, muitos volumes em língua latina e livros religiosos, vidas de santos, bíblias e monografias religiosas”, descreve.

Os livros constituem ora em objeto de formação autodidata, visto lhe ser negada a educação formal e básica, ora o antídoto contra o ritmo monótono da vida. Por um golpe de sorte nos negócios do pai, a família é elevada a uma condição mais confortável, o que não implica uma saída do pequeno vilarejo. Assim, o que varia é a casa, que se converte em ponto de passagem. Mas a condição modesta e o destino esperado permanecem os mesmos. A mãe, entretanto, vê do seu entreposto, que a única filha pode significar o salto econômico e social para a família. Se proposital ou não também ficamos por saber arma-se o encontro dessa jovem com o filho do orgulho de um dos hóspedes mais fiéis. E é aqui que tudo são contradições. O tal destino preparado pela mãe só virá numa altura quando ela própria não guarda muito tempo para desfrutar.

Nota-se que, a condição dessa Bovary italiana não repete integralmente o fracasso da Bovary francesa. Vigora o casamento como destino inexorável às mulheres da época, a frustração e a desilusão ao constatar no casamento um enlace favorável exclusivamente ao homem mas o destino trágico se converte na integração da mulher, pelo menos em parte, na mesma ordem dos tempos onde foi educada. A Bovary italiana, por pura incapacidade de ler o mundo pelo seu idealismo, não se deixa conduzir pelo destino que talvez fosse capaz de lhe guiar para fora de sua condição. Por isso, não sobra espaço para acusar essa personagem de acomodada; e podemos mesmo inferir que, reparasse ela nos sinais do tempo do primeiro amor, o destino não lhe diferente. A narradora não é motivada pelos ventos da idealização amorosa, ainda que eles soprem constantemente.

Na saída para a lua-de-mel, quando o sopro morno da eterna felicidade bafeja a consciência da personagem, tudo é desfeito numa situação que se ampliará num crescendo desesperador à medida que o tempo passa: a soldadesca que transforma o casal em epicentro de sua pilhéria e a coparticipação meio indireta do companheiro, revela imediatamente para esta mulher, que ela está condenada a viver sozinha; depois, o abandono a ermo enquanto sozinho o companheiro sai em busca das chaves da casa de retiro, a rudeza dos gestos dele que sempre ressaltam nela o papel de sua posse, entre outras situações, converte o mundo de pedras do vilarejo da infância e juventude da narradora em muro entre os dois amantes.

Toda a angústia é transformada em silêncio e contentamento com as pequenas coisas. O que assistimos é a lenta modificação do ideal pelo real. Esse processo é magistralmente bem construído pela escritora. Somos informados dessa variação de persona pelas internalizações das forças da natureza na personagem. Não se trata de uma simples transferência dessas forças ou fontes naturais para o interior da personagem e narradora. Isso é feito de uma sutileza poética que se manifesta para nós indiretamente, das observações que a narradora faz sobre os outros, como passa a assimilar a estreita sintonia assumida entre os moradores do vilarejo para onde vai com o companheiro e o tempo. A cidade do vento é um romance feito de sinais. E é da imprecisão de leitura deles que se estabelece, para a narradora, sua descoberta de estranha solidão acompanhada e, para nós, a estreita comunhão que mantemos com as forças mais primitivas do mundo sem, qual a narradora, repararmos devidamente. Nos dois casos, parece ser o excesso de razão o que nos cega.  



Na cidade dos ventos, a narradora pode testemunhar o valor da intuição para compreender inclusive o passado negado pela impossibilidade de ler o mundo além das aparências. Isso significa dizer que Grazia Deledda se revela mestra em transformar uma pauta ― a da condição da mulher ― num tema que sem negar sua origem e suas implicações, porque todas comparecem nessa consciência angustiada de recém-casada da narradora, se amplifica numa dimensão universal. Se formos ao que dizíamos acima sobre o tratamento de interiorização do exterior, logo compreendemos: o vento é para todos, cada um o recebe e manipula à sua maneira, mas é dele a decisão das coisas, de levá-las ou retrazê-las, cobrando-nos outra vez o que fazemos com o nosso passado e nossos destinos.

O vento nesse romance adquire a expressão dessa variabilidade dos destinos da narradora. E, se lembrarmos do romance mais conhecido da escritora, Juncos ao vento, é um elemento metafórico recorrente na sua literatura. No caso de A cidade do vento, a estreita combinação proposta entre memória e realidade (o passado outra vez manifestado num presente não-amistoso) é mediada pela dinâmica dessa força da natureza. E o vento assume várias manifestações ao longo da narrativa. É reconforto e prazer para narradora na sua ambiência de paz original e o que lhe rasga quando diante da suada animalesca dos soldados durante e no fim da viagem para a lua-de-mel. Se observarmos o impasse entre a narradora e Gabriel, o grande segredo dessa narrativa, este homem não é a manifestação visual do corpo viril, é o som do violino, a materialização do ar; é o que lhe fica e lhe retorna. Além, da sua insistente repetição na condução do ritmo de vida na cidadezinha de destino do casal.

Mas, o lugar alcançado por Grazia Deledda com a investigação sobre a variabilidade do curso dos destinos, qual o curso dos ventos, é demonstrar como a história é feita de uma contínua libertação da história. Isto é, o passado irresoluto pode afetar o presente e o futuro visível. É esse impasse, portanto, mais que o amor, somado à condição da mulher no casamento, as duas grandes questões predominantes no romance agora lido. A continuidade da nova vida da narradora só parece possível depois de revisitar o acontecimento que teria lhe forjado outra possibilidade de vida. Essa compreensão parece dialogar com o entendimento de que, mesmo parecendo sós, estamos profundamente ligados com a natureza, o tempo e a história; somos sujeitos feitos de ancestralidade. Resulta de uma grandeza a maneira como a romancista faz de uma pequena situação o drama que alimenta e expande a narrativa.

Essa disposição, determinante para a literatura dessa escritora, se faz com as mesmas tintas reutilizadas por uma variedade de sucessores na literatura italiana até os dias atuais quando somos outra vez arrebatados pela ficção aí produzida com obras como as de uma Elena Ferrante ou de um Domenico Starnone, para citar dois dos nomes mais recorrentes entre os leitores brasileiros neste entre-décadas. Resta a intrigante pergunta por que essa obra, vastíssima, tenha sido reduzida a um só título: Juncos ao vento. O romance há muito publicado por aqui foi novamente traduzido e reeditado na mesma ocasião deste até então inédito A cidade do vento. Será que nos falta, antes de uma Ferrante Fever, uma febre por ler e descobrir que nesse passado agora ignorado está a chave para descobrir do que são feitos os gostos contemporâneos?


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