A autópsia de Pinóquio
Por Julio
Ocampo
Ilustração de Alex Cerveny para a edição de As aventuras de Pinóquio (Cosac Naify, 2011). |
As
aventuras de Pinóquio não é um livro qualquer. Tampouco é um conto de fadas feito
para colocar crianças para dormir, mas uma fábula para acordar adultos. O
midiático boneco de madeira, segundo conta o escritor Pino Corati em seu livro Pinocchio,
fratello mio, poderia ser Dante, Jesus ou Ulisses. Heróis épicos redimidos depois
de superar o caminho da dor, a vulnerabilidade às tentações, os pecados
capitais e os demônios aninhados na mente... Tão difícil, complexo e ao mesmo
tempo necessário para transcender a uma esfera superior. A autópsia desse
clássico da literatura universal passa por aqui.
“Carlo
Collodi não era maçom, mas um defensor da cultura maçônica. Em sua obra é
frequente o uso da numerologia, da psicanálise, da alquimia, do simbolismo e do
esoterismo”, explica Bernardino Fioravanti, histórico bibliotecário do Grande
Leste da Itália, a mais antiga seção maçônica do país. Centro nevrálgico de uma
liberdade de espírito, de pensamento, como requisito para alcançar a verdade.
Uma filosofia de vida onde há espaço para qualquer tipo de religião (não é
ateísta) e indivíduo, nacionalidade ou raça que esteja disposta, como pedreiro
ou mestre-de-obras no passado, a esculpir uma consciência através de reflexões
existenciais que determinam uma melhoria interior, do subconsciente. Morra para
nascer de novo. Como Cristo; como Pinóquio, um pobre menino de madeira imaturo,
estúpido e incapaz de lidar com a vida, com a ética e muito relutante a qualquer
tipo de responsabilidade e disciplina.
Assustado
com a moral e abandonado ao hedonismo, à preguiça, ao egoísmo ou à gula, que
são revelados através de situações surreais ou fantasias reais com alguns
protagonistas: seu pai, o cocheiro, Figaro, o grilo falante ou o Honrado Juan,
entre outros. Eles parecem decorar superficialmente uma história que, no
entanto, esconde muito mais do que ensina. E as aventuras de Pinóquio poderiam
ser lidas em uma chave iniciática ― através de erro e da penitência ―
em busca do fogo sagrado, do eu superior, do terceiro olho (Pin-occhio, olho-principal), resultando numa criança renascida das piores misérias humanas:
egoísmo, ganância e insatisfação.
“A morte é a
mudança definitiva. Purifica porque significa renascer. É verdade que seu nariz
proeminente tem várias lendas como uma espécie de metáfora para o desamparo de
Collodi (a importância dos opostos), mas, na minha opinião, é a demonstração
visível de um mau comportamento para tomar consciência. Então aparece o grilo,
uma espécie de superego, que indica o caminho a seguir”, diz o professor
Fioravanti, que sobre esse boneco enxerga uma espécie de alegoria do ser ainda
inferior, ainda puro, sem polimento, sem escultura, condenado a morrer jovem,
como os adolescentes pasolinianos dos subúrbios romanos. Um menino virgem que
cresceu se juntando aos devires pirandellianos e encontrou com personagens
esotéricas para se transformar: o gato é um corpo astral e a raposa um mental.
Não foi por acaso que o maçom Walt Disney queria levá-lo para as grandes telas.
A mística
de Collodi
Collodi...
Era uma vez:
Um menino
que se tornou escritor,
um castelo
que se tornou uma vila,
um relvado que se tornou um jardim,
um pedaço de
madeira que se tornou criança,
um livro que
se tornou um parque.
Pinóquio é
um romance de formação carregado de propósitos, alegorias, símbolos,
hieróglifos e oportunidades. Uma mensagem espiritual que convida ao
desenvolvimento pessoal, para polir as arestas da alma. É uma obra filha de seu
tempo, uma vez que Collodi (pseudônimo Carlo Lorenzini) publicou em 1882 com
uma Itália recém unificada, já livre do jugo da Igreja e do feudalismo. É ainda
uma obra filha de seu autor, uma revisitação ao tempo da infância precisamente
em Collodi, um pequeno povoado toscano enfeitado com cavernas artificiais,
sebes, labirintos, borboletas e que hoje é um museu ao ar livre.
Tudo andava
de mãos dadas. A chave para essa nova Itália ― antigattopardo ─ que estava se formando
era uma chave maçônica, a doutrina liberal de intelectuais e políticos como
Giuseppe Mazzini e o apoio incondicional dos judeus, afogado pelos papas do
outro lado do rio. Foi liderada por Garibaldi, um maçom, e foi aprovada graças
a obras como Pinóquio, um pedaço de madeira ─
sem manipulação ─ que
aspirava à quintessência após superar a indolência e a impertinência. Do menino
ao homem, da madeira à obra de arte, do profano ao iniciado perdoado... Somente
através das vicissitudes encontradas na Terra dos Jogos, mas sempre com amor
recíproco com o seu pai e a importância da fada (a mãe que nunca teve), pronta
para lhe dar uma chance toda vez que sua alma era escravizada pelos carmas
que nela se formavam e o levava a se perder em paisagens obtusas.
A fábula é
tão atual que Gepetto e ela exemplificariam as partes masculina e feminina,
respectivamente, que cada indivíduo apresenta em seu complexo espírito. Representam
o amor altruísta e inegociável, chaves para o grande objetivo maçônico:
conhecimento, consciência, aceitação, mudança. Um eu existente que é despertado
através da sabedoria. “A formação moral e filosófica. É isso que estamos
procurando. É necessário coragem para avançar, modificar, superar o medo da
reencarnação metafórica”, conclui uma das cabeças pensantes mais sublimes e
lúcidas de toda a Itália, um intelectual maçom com uma mensagem de abertura
para a igreja e crítico de todos os clichês gratuitos derramados contra uma
disciplina da vida que outrora fora chamada de burguesa pelo marxismo e
científica pelo clero.
A baleia
e o cristianismo
A história
termina com Pinóquio engolido pela baleia depois de salvar seu pai com sua
própria morte. Ele desce aos infernos ou ao mundo das trevas, como Branca de
Neve, mas a fada recompensará seu heroísmo, trazendo-o de volta à vida como uma
criança de verdade. Com um punhado de experiências na mochila e as cicatrizes
mentais, depois de três dias e três noites nas entranhas do cetáceo. O mesmo
intervalo de tempo que sofreu o profeta Jonas, que desobedeceu a Deus,
recusando-se a oferecer sacrifícios em Nínive, arqui-inimiga de Israel. O
Antigo Testamento registra que ele escapou para Tarsis num barco, a tempestade caiu
e acabou dentro de um animal marinho gigante. O perdão foi o seu salvo-conduto para
ser vomitado pelo animal depois se dirigir a Nínive com o apelo divino.
A fúria da água
é o elo de tudo. De Jonas a Pinóquio ─
já despertos e absolvidos ─
passando por Pier Paolo Pasolini, cuja parábola, no entanto, seguiu na direção
oposta: a maioria de seus meninos miseráveis e miseráveis da periferia
preferia morrer a perder sua ingenuidade, isenta de processos morais. Genésio,
o mais taciturno dos Ragazzi di vita, fez isso na linfa sombria do
Aniene diante dos olhos de seu amigo Riccetto, quem assiste à desgraça sem
querer. E ele já tinha um emprego, algum futuro, um porvir, já não era a
criança que anos atrás poderia ter se afogado no Tibre por querer salvar uma
andorinha. Ele havia pactuado com a vida, tornando-se, segundo o cineasta, o
décimo terceiro resultado do consumismo burguês.
Não há registros de que Pier
Paolo tenha compartilhado com alguma ideia da maçonaria anglicana moderna
(surgida em 1717), mas o contrário sim. O certo é que, como a chama viva, ele
sempre expressava tudo como o oposto de tudo. Desenhou o que era impossível falar,
mas o que correspondia a cada palavra . Trabalhou com paixão, por isso nunca gozou
de perdão. Como arqueólogo da alma, procurou incessantemente a verdade. Como
Pinóquio; como o seu Cristo feio e humano que imaginou em O Evangelho
de São Mateus... E foi tragado pelas trevas no Hidroscalo de Ostia, próximo
ao mar. O que não se sabe é se, em sua peregrinação, ele tentou fazer um pacto
com ética e a vida ou se permitiu ser arrastado por ela diante de uma
incapacidade dilacerante de mutilar egos, apegos carnais, vícios, erros,
contradições e pecados. Ele foi libertado... Como todos.
* Este texto
é a tradução de “La autopsia de Pinocho”, publicado aqui em Jot Down.
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