Uma Medeia contemporânea. Elegia à solidão e à morte e a condição feminina na obra de Bernadette Lyra
Por Ruy Perini
“Ulpiana foi escrito porque sempre
achei perturbadora a atitude das pessoas diante da morte. Sobretudo, se essa
morte se deve a um ato voluntário por parte de alguém. Nesse último caso, os
viventes que ficam buscam alguma coisa que atenue o espanto, a dor da perda, a
sensação de culpa. E seguem repetindo os pequenos rituais do dia-a-dia,
enquanto têm de enfrentar as lembranças e o fato de que a vida inevitavelmente
se acaba, às vezes de forma brusca e inesperada”.
(Bernadette Lyra no lançamento
do livro Ulpiana)
Bernadette Lyra. Foto: Gelson Santana. |
A prosa de Bernadette Lyra não é muito
formal, muito menos convencional. Percorre cenários realistas e surrealistas com o mesmo desembaraço. Cotejando um romance mais antigo, A
panelinha de breu, de 1992 e o mais atual Ulpiana, de 2019, podemos
constatar variação de narradores e cenas inusitadas, se pensamos em traçar um
eixo narrativo linear. Talvez o único ponto comum percebido nas suas várias
fases de produção literária seja a valorização do mundo feminino, sem nunca
cair na pieguice e no panfletismo que costumam impregnar os textos feministas.
Para isso, costuma fazer um resgate de vivências, temperadas por uma imaginação
fantástica e urdindo entrechos cativantes, embora intrigantes e instigantes.
Seus livros não são de leitura fácil pela complexidade dessa tessitura, mas
conseguem manter a atenção do leitor pela riqueza e ao mesmo tempo simplicidade
de informações, e por lançar um fio de um suspense que torna difícil a suspensão
da leitura quando o tempo disponível para a mesma se esgota.
A autora não
desperdiça prosa e assim, os dois romances aqui em análise são muito densos,
posto sejam curtos, e, portanto, muito palatáveis. Difícil é resistir à
tentação da releitura, pois ao terminar sempre fica a sensação de que muitas
coisas ficaram a desvendar, como sói acontecer com os bons escritores. Machado
de Assis dizia que não gostava de escritores que diziam tudo, indicando que uma
obra literária deve sempre deixar ganchos, metaforizados talvez no trapézio
onde Brás Cubas pendurava suas ideias mirabolantes, onde penduramos a nossa
imaginação de leitor para embalançar a recriação/continuidade da e(hi)stória.
A panelinha de breu
Neste romance Bernadette aproveita
uma lenda capixaba, segundo a qual a personagem histórica Maria Ortiz teria
comandado um movimento feminino para expulsar holandeses que conseguiram
invadir nossa baía e tentaram instalar-se na bela Ilha de Vitória para criar um
enclave batavo nestas paragens. A “artilharia” usada teria sido um prosaico
arsenal de pedras e caldeirões de água fervente, possivelmente simbolizados na
panela de breu fervente.
O Professor Francisco Aurélio Ribeiro num posfácio lembra
que o livro tem vários narradores, mas que “há um predominante, que conduz o
fio narrativo, alternando passado e presente, o tempo ficcional e o histórico.
Esse narrador homozigótico, condutor da narrativa, pode ser visto como os olhos
cegos do tio de Elissa, personagem arquetípico do vidente Tirésias do mito
clássico”.
Elissa é a protagonista do romance,
mas está longe de monopolizar a trama e a narração. Como indica ainda o
Professor Ribeiro, “Todos os personagens contam suas histórias, como nos contos
de Sheherazade ou O Decameron de Bocaccio”.
Todos os personagens envolvem-se
narrando-se em diferentes ocasiões, criando uma trama fantástica em que entram
história, lendas e a ficção criada pela autora. Bernadette mistura cenas
realistas abordando, por exemplo, temas caros ao mundo feminino como o aborto, com a lenda histórica da nossa possível heroína Maria Ortiz.
Podemos também encontrar n’A panelinha de breu referência ao clássico de
Lewis Carroll na sedutora personagem Alice, a irmã de Elissa que usa um
misterioso colar de iluminadas contas vermelhas. A complexa trama da narrativa vai sendo montada como uma peça mise en abîme e, na verdade, o possível papel
de heroína só se materializa na representação da protagonista pelo travesti
Dame Kiri.
O romance mistura assim realismo,
sonhos e fantasias delirantes, constituindo “um retrato parodístico e
polifônico da condição feminina, em leitura dialógica com o tempo, a história e
a própria literatura.”, conforme a brilhante síntese do Professor
Francisco Aurélio Ribeiro.
Ulpiana
Este romance de Bernadette Lyra
foi-lhe inspirado em uma viagem a Kosovo, onde visitou as ruínas do cemitério
de Ulpiana. A necrópole é um resquício das várias civilizações e culturas,
especialmente romanas e bárbaras, que habitaram ou passaram pela região, mas que
guarda também marcas trágicas da guerra que sacrificou muitas vidas e a
dignidade de muitas pessoas nas guerras que se seguiram ao desmantelamento da
antiga Iugoslávia, dividida em várias nações no final da década de 1980 e
durante a década de 1990.
O
suicídio de uma mulher desesperançada pela condição limitante decorrente de uma
doença que lhe tolhe os movimentos e a autonomia, mas sem tirar-lhe o
raciocínio e o poder de decisão, obriga a sobrinha, única parente com quem
mantém um elo afetivo e social, a interromper uma viagem de férias em Ulpiana.
A viagem, curiosamente, foi sugerida pela mesma tia que se lança da janela do
apartamento após observar pela última vez a vida que corre na cidade abaixo.
Esta cena, cotejada no livro com a cena observada da janela por Cesare Pavese
antes de suicidar-se, inicia o livro e a partir daí, através das reminiscências
da sobrinha, várias estórias / histórias são contadas com a costumeira dose de terno
suspense e inquietante condição humana que caracteriza a escrita da autora. A
sugestão da viagem dá-se num momento em que a sobrinha chora um amor perdido, com
o comentário: “Não interessa que você queira que as coisas durem. Mais dia,
menos dia, tudo morre. Na vida tudo se arrasta em direção à morte como um cão
leproso”, diz o romance.
A sobrinha tenta entender o fatal
ato da tia, a princípio atribuindo a morte ao descuido da cuidadora, mas segue
montando uma trama com várias situações limites que culminam com a história de
dona Tude, que teve uma educação primorosa, mas após a orfandade cai na rede do
até então atencioso marido, que a partir daí mostra-se um pilantra que lhe
rouba a herança, a dignidade e todas as esperanças de felicidade.
A história do livro é em torno da
inominada sobrinha e é narrada por ela a partir da desilusão amorosa que
motivou a sugestão da viagem por parte da tia. Ela fora apaixonada por um
hippie e com ele se envolveu na busca de uma realidade nirvânica através do uso
de cogumelos alucinógenos no místico Nepal. O próprio nascimento do namorado
foi decorrente do relacionamento estabelecido em torno do uso dessas
substâncias pelos seus pais, mas ele, na verdade, é um personagem que não tem
nenhum peso na trama, pois sua história não passa dessa busca infrutífera pelo tal
cogumelo e um encantamento pela anunciada peça infantil da nova namorada, peça
que fica só na promessa.
A história de dona Tude é contada em
parte pela avó da protagonista e em parte por um narrador observador que parece
socorrer a protagonista quando são relatadas as suas reminiscências. Tal história,
talvez a abordagem mais trágica da morte no livro, lembra em parte o mito de
Medeia, a heroína grega que, na tragédia de Eurípides, ao ser abandonada por
Jasão mata os filhos para se vingar do ex-marido. Medeia não se suicida, pois só
quer se vingar do pai dos seus filhos. É uma heroína e tenta uma nova vida de
aventuras, mas à dona Tude não resta mais nada. Sua vingança não é contra o
rufião com quem casou, mas contra o mundo machista e contra a família que lhe
arranjou um casamento tão desastrado após ela amargar a espera sem resposta de
um rapaz de fora por quem se apaixonara anos antes e que lhe prometera voltar
para desposá-la.
A espera melancólica, simbolizada na execução ao piano de “Clair
de Lune”, belo exemplar da introspectiva música de Debussy, preocupa o pai que
lhe arranja o casamento com o esperto contador que consegue encobrir falcatruas
nos contrabandos vendidos no seu comércio. Interessante que a execução da
música, antes era apreciada e elogiada pelos transeuntes: “lá está dona Tude a
tocar Clair de Lune”. Mas, após começar o seu infortúnio, o comentário é
acrescido de um lamento: “lá está dona Tude a tocar Clair de Lune ao piano,
coitada”.
O
livro é também um encômio à escrita. Dona Tude após a falência do comércio que
herda dos pais começa a lecionar para sobreviver e costuma ler poemas de Tagore
para os alunos, o que a deixa muito emocionada. Essas reações provocam o
repúdio dos pais que exigem que ela pare com as leituras para não influenciar
negativamente os alunos. Começa então a escrever todas as noites como uma
necessária catarse para dar conta da sua solidão e dificuldade em cuidar dos
três filhos sem nenhum apoio do marido. Certa noite, ao escrever sobre a cena que
antecede o suicídio de Pavese, quando ele vê pela janela uma moça que lhe
lembra Constance, a moça por quem fora rejeitado, o marido chega e, revoltado
porque ela não passara bem o seu bife, dá-lhe mais uma surra e rasga seus
escritos aos quais ateia fogo no meio da sala provocando uma algazarra dos
filhos. O vidro de barbitúricos que Pavese usa para se matar forma uma bonita
metáfora para narrar o ápice da tragédia que leva ao trágico assassinato dos
filhos e suicídio de dona Tude: “O que ocorreu depois disso tudo, encheu de
terror o vidro da alma de todos”.
Ao
se aproximar do final, o livro retoma a narração da protagonista que volta à cena
do seu retorno para contar o funeral da tia cujo voo para a morte é associado a
uma antiga reprodução de um quadro de Chagal, que ela tinha na parede do quarto
e que muito apreciava, representando um homem e uma mulher flutuando sobre os
telhados da cidade. Descobre também entre os guardados da tia, fotos que a
ajudam remontar a história daquela que se tornou a sua tutora após a morte da
avó que a criou, já que ficara órfã desde o parto da mãe. Em uma das fotos
desenha um coração de ponta cabeça, como o que vira na lápide do isolado túmulo
de dona Tude e a coloca sob os crisântemos junto ao lado esquerdo do peito da
tia, que também sofrera uma rejeição social por ter se juntado a um homem
casado que fora explorar sítios arqueológicos na sua cidade.
Os
dois últimos capítulos são os mais enigmáticos, parecendo confundir os
personagens com a própria autora. A narração continua com a protagonista. Há uma
cena no cemitério com uma misteriosa mulher com um vestido roxo, abraçada a um
maço de verbenas azuis, e uma outra clareada pela lua – o Clair de Lune de
Debussy? – observando pela janela do quarto, uma mulher “que passeia em um
jardim entre rosas vermelhas, com um vestido branco largo e engraçado e abelhas
zumbindo em torno de sua cabeça” identificada como a “namorada da
morte, aquela a quem a morte chama de mana, menina, meu amor, meu coração [...]
que acorda às três da madrugada, senta-se à escrivaninha, [...]” para escrever. E o livro termina com a própria narradora sentando-se à
escrivaninha e olhando para a tela vazia do computador. A tela vazia parece um
claro convite para o leitor continuar viajando. Para Ulpiana? Pelas belas cenas
ricas de personagens enigmáticas? Pela literatura, enfim, mas principalmente
pela magnética estória / história criada por essa grande escritora que nos presenteia
com mais esse rico romance e que nos convida a pensar e elaborar melhor a
finitude da vida.
Referências
LYRA, Bernadette. A panelinha de breu. São Paulo: Estação Liberdade; Vitória: Instituto de Ensino Superior Prof.
Ceciliano Abel de Almeida, 1992
LYRA, Bernadette. Ulpiana. São Paulo: A lápis, 2019.
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