Se a rua Beale falasse, de James Baldwin
Por Pedro
Fernandes
Um romance
não precisa dizer tudo. Está, muitas vezes, no que não se diz, a principal
qualidade que favorece a grandiosidade de uma narrativa. O desfecho do drama Se
a rua Beale falasse, de James Baldwin ― mergulhado de sugestões sobre
o destino das duas famílias envolvidas no imbróglio narrado e uma tentativa de
equilibrar as forças trágicas que se acentuam ponto a ponto no correr da
narração ―
demonstra a segurança de um escritor em pleno domínio dos estratagemas
narrativos. Mas, isso não é novidade.
Quando este romance é publicado, em 1974, o escritor já havia realizado alguns
dos seus mais reconhecidos trabalhos nesta forma literária; O quarto de
Giovanni e Terra estranha, talvez dois dos seus melhores livros e
por isso mesmo os mais conhecidos, já estavam à disposição dos leitores.
O principal
problema em Se a rua Beale falasse está no oposto do que se lê no
desfecho da narrativa. É o excesso de contar. Uma desnecessária preocupação de
cariz realista, no sentido de querer oferecer uma totalidade sobre os
acontecimentos, que, por fim, ignora os protocolos de narração realista.
Não se trata aqui de querer filiar este romance de James Baldwin entre os
limites do realismo escolar; o que se admite é a escolha por um modo de narrar
cujos protocolos recuperam uma preocupação com a história contada. No entanto,
em sua execução, o escritor rompe com eles displicentemente, o que é pior, não
é uma ruptura proposital.
Desde o
início da narração, sabemos que o fio narrativo é destrinçado por uma voz em
primeira pessoa ― situada num tempo posterior, a jovem Tish rememora os
acontecimentos recentes que a conduziram a este tempo fora na narração,
isto é, o tempo que, à maneira do desfecho da narração, é sugerido. Isso
significa dizer que a escolha do escritor para a construção da história foi
pelo narrador em primeira pessoa. Qualquer leitor sabe que contar algo pelo
ponto vista original limita tudo à presença testemunhal de quem narra, fora
isso, o narrador precisa sempre se apoiar no elemento documental ou mesmo no
que terceiros lhe contam. O defeito desse romance de James Baldwin é primário:
numa irrupção que se tornará recorrente desde sua primeira aparição, a narração
em primeira pessoa abre-se para uma onisciência involuntária¹.
É óbvio que
isso não reduz em nada a importância do romance, mesmo porque, nenhuma obra é
pura forma e estrutura e, no caso específico de Se a rua Beale falasse,
o tratamento do seu escritor talvez nem seja percebido na leitura, ainda mais,
se considerarmos o roteiro folhetinesco empregado: o que se conta é a história
de amor entre dois jovens do Harlem; embora não se pratique a interdição pela
ordem familiar, como a princípio pareceria acontecer, esse amor será colocado à
prova pelas artimanhas do próprio destino ― a descoberta da gravidez tão
logo o amante é preso sob acusação de estuprar uma porto-riquenha. Mas o vício
da interferência onisciente abala as estruturas da verossimilhança, esse pacto
assinado livremente mas indispensável para o bom funcionamento de qualquer
narrativa, incluindo as que propositalmente questionam suas diretrizes.
A primeira
vez que a voz da narradora é abafada por um rasgo onisciente se oferece no
relato do reencontro entre os amigos Fonny e Daniel. A certa altura, diz a
narradora: “Mas isso significava que eu tinha de sair para fazer compras, e lá
fui eu, deixando-os sozinhos. Temos um toca-discos. Quando eu estava saindo, o
Fonny pôs para tocar ‘Compared to What’, enquanto o Daniel, acocorado, tomava
cerveja”. Antes disso, já foi narrado o encontro dos dois enquanto “Fonny vinha
descendo a Sétima Avenida numa tarde de sábado”; depois, o relato continua
repetindo, inclusive, a conversa das personagens. Ora, nesse caso, há uma saída
engenhosa da narrativa que é induzir, pela narração indireta do episódio do
encontro noutra passagem sinalizando que foi conversado pelos amantes noutra
situação. O fato de lidarmos com os trânsitos involuntários da memória, tudo se
justifica plenamente. Mas, o problema é que isso não é suficiente, principalmente
para os episódios posteriores: a viagem da mãe de Tish a Porto Rico em busca da
testemunha de acusação de Fonny contada com riqueza de detalhes; os diálogos
entre o pai da narradora e o pai do amante; ou o irrisório episódio que conta
um instante de Fonny na prisão no qual a personagem ora se encontra entre
outros presos numa cela tumultuada e, inexplicavelmente, masturba-se agitadamente
sob os lençóis sem ser alcançado por ninguém, como se, por um erro de
continuidade, Fonny não estivesse acompanhado e sim sozinho.
Quer dizer,
se nos guiarmos pela alternativa sugerida pela narrativa em relação à primeira
irrupção da onisciência, os episódios da viagem e da cela poderiam ser
elaborações da narradora a partir do que terceiros, no caso as próprias
personagens principais dos acontecimentos, lhe relataram. Mas, e o caso segundo
justifica melhor, resulta em ruptura com a verossimilhança a elaboração precisa
dos diálogos, maneiras e detalhes de ações. No final, e isso fica claramente
demonstrado no terceiro episódio citado acima, não deixamos de notar que todas
essas situações são facilmente descartáveis sem alterar o funcionamento ou o
sentido do romance. São episódios encaixados e sem eles a obra se revestiria de
outras cores, sobretudo porque isso permitiria o escritor se aprofundar no drama
interior dessa personagem ― o que, certamente, é responsável pelos melhores momentos
da narração: o despertar do amor de infância, a descoberta dos corpos, a
aprendizagem num mundo ridiculamente hostil para com os afro-americanos. Não apenas
isso, mas os desdobramentos desse olhar periférico, seja em
relação às políticas e os embates de raça nos Estados Unidos, seja a crônica
viva sobre a cultura e as vivências da periferia afro-americana.
Todas essas
especulações sobre a estruturação do romanesco em Se a rua Beale falasse poderiam
se desfazer se encontrássemos nesse título o ponto de vista da narração. Mas
não é a rua Beale a narradora. Logo à entrada do romance, a narradora determina
seu lugar: “Me olho no espelho. Sei que fui batizada com o nome de
Clementine, por isso faz sentido que as pessoas me chamem de Clem, ou até
mesmo, pensando bem, de Clementine, já que esse é o meu nome: mas não chamam.
Me chamam de Tish.” O referente do título é o nebuloso episódio de estupro de
Victoria: é a rua a única, que se falasse, poderia testemunhar em favor de
Fonny, dele, e de todos os pretos que são arrastados para os porões das prisões
para acobertar os crimes dos brancos, já que o drama dessa personagem não é individual,
mas uma história que se repete continuamente. O destino de Fonny, por exemplo, está
entrevisto no do amigo Daniel, raptado pela polícia à porta de casa para se
tornar estatística sobre o tráfico de drogas e depois transformado em ladrão de
carros.
A principal via
no interior da discussão sobre o racismo denunciada neste romance é sobre como
um país pode constituir um sistema penal ineficiente porque forjado por brancos
que se dividem entre perseguir, acusar, prender e matar pretos; e não é apenas
os episódios de Daniel e Fonny que expõem isso. Alguns dos mais dramáticos e
cruciais para o futuro do amante de Tish são aqueles que colocam a mulher
negra como fetiche sexual transformando-a em objeto de uso e posse de brancos. No
primeiro episódio recordado pela narradora, o assédio de um jovem branco que
leva a atuação violenta de Fonny e por pouco não resulta na prisão do seu amante;
outra vez, é o policial da ronda, autor da acusação contra Fonny, quem atenta
contra Tish. Solto como um lapso inconsciente este segundo caso favorece
pensarmos com suspeita de ser o policial o verdadeiro autor do estupro da
porto-riquenha. Eis então mais um motivo em que falar demais resulta em
falta grave na construção da narrativa; está nos interditos o seu melhor. O que
o romance revela é uma dimensão que se oculta sob a aparente normalidade das
coisas e só visível por aqueles para quem a realidade não é a ordem que se
apresenta. E qual a saída para isso (se há)?
A única
saída desse destino de um só vencedor apenas se pode oferecer pelo lado de fora
da lei ―
mesmo porque esta só existe como subterfúgio para uma ordem aparente. Não é
suficiente ser bom, esforçado e dedicado, como são os protagonistas em Se a
rua Beale falasse, as determinações legais sempre colocará fora os
que não se adéquam às determinações feitas para colocar uns sobre os
outros; é preciso encontrar uma voz na mesma língua dos brancos a fim de
trapacear o sistema forjado por eles. É o que observamos no esforço coletivo
que une os dois pais de família, de formações diferentes e divergentes mas
interessados em salvar o filho em comum; e é apenas pelo trabalho fora
da ordem que conseguem levantar capital para construir a hipótese de liberdade
de Fonny, um gesto que parece repetir o mesmo destino fatídico dos tempos de
escravidão com a compra das alforrias. Esse esforço, que implica a construção
de uma terceira ordem, é o que fica ― ainda não construído ―
entrevisto num romance que é denúncia e anunciação.
James Baldwin,
ele próprio figura casualmente salva do destino imposto aos afro-americanos, parece
preferir nesse romance o lugar do desencantado esperançoso: há, em toda a
parte, os fins trágicos, mas isenta seu casal e faz dele inaugurador desse
possível. Repousa aqui todo o sentido simbólico de matriz cristã desempenhado
pelo filho de Tish e Fonny. A criança é a figura principal em torno da qual
todos, em maior ou menor grau, se unem. É impossível negar as infiltrações
bíblicas na obra; muitas vezes estas se mostram em claro tratamento de negação
e rebaixamento do sagrado. É o caso da concepção desse salvador, que, se
faz com as tintas de um vivo humanismo: não é um rebento feito por intervenção
divina, mas do amor carnal e sincero entre dois jovens que vivenciam a força de
seus corpos; e ele também não cumprirá integralmente sua missão, visto que para
nascer, alguém precisa morrer.
A esperança
e a salvação representadas nesse nascimento encontra justificação nos títulos
que nomeiam as duas partes do romance: “Preocupada com minha alma” e “Sião, a
terra prometida”. Tish se assume uma virgem negra que aprende com o seu corpo a
ser morada do ser. Toda a provação das personagens está circunscrita na
primeira parte: junto com o receio da jovem Tish de não conseguir alcançar
sua missão, o filho por vir é força, sopro, alma para todos que o
cercam; é a terra prometida. A clara referência exposta pelo título da segunda
parte pelo aposto que esclarece o sentido do primeiro termo reanima a ideia desse
lugar possível, qual Jerusalém passa a significar para os diferentes povos
cristãos e o povo judeu.
Esse outro
mundo não é apenas onde se possa exercer o amor interrompido do qual o mundo
comum inveja sem alcançar (como é caso dos interventores brancos), mas que todos
possam existir livremente. Reforça-se, assim, um dos princípios caros ao pensamento
de James Baldwin que foi o de estabelecer outra via não-dissociativa entre as
diretrizes que balizaram os debates sobre raça no seu país e no seu tempo. Numa
época quando os embates de raça são uma constante e quando os lugares no
interior do movimento negro ainda não se desfizeram, ou pior, se multiplicaram para
atender as bandeiras de múltiplas ideologias, continuar existindo pelos
princípios universais do humanismo (que nunca serão pela exclusão e dissociação
do que é humano) parece ser a mais cara lição demonstrada em obras como esta e
pelo pensamento político do seu criador. Se isso não dirime eventuais questões
estruturais e formais do romanesco, coloca-as nas adjacências, porque as
urgências, repetimos, estão fora de qualquer estrutura e formas.
Notas
¹ As considerações
estruturais levantadas neste texto sobre a variável discursiva do narrador em Se
a rua Beale falasse não tomam o texto original, o que pode invalidar o
referente, isto é, ao invés de ser um problema do romance, ser da tradução.
Sabemos que as sutilezas verbais de uma língua nem sempre se fazem transferíveis
a outra. Em caso, é possível lembrar do tratamento rítmico da narrativa de Toni
Morrison, sempre visível pela crítica de língua inglesa como uma qualidade criativa
dessa escritora e nunca captado pela tradução brasileira, por melhor que seja. Nesse
sentido, talvez o melhor fosse evitar a questão, mas um olhar adestrado e
impertinente dificilmente deixaria de pontuá-la.
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