Para tempos de isolamento: Naoko Ogigami
Por Paula
Luersen
cena de Megane, de Naoko Ogigami. |
Depois de
mais de oitenta dias de reclusão, vivendo em um país que não apresenta a menor
perspectiva de retração da COVID-19, em que o respeito pelos mortos precisa ser
afirmado frente à assustadora indiferença de grande parte da população, é
difícil saber a que tipo de arte dedicar o nosso tempo. Pois a necessidade de
arte não chega a se colocar como dúvida: em tempos de estupidez e descaso
gerais, precisamos da arte para nos manter lúcidos e engajados com o mundo. As
escolhas, contudo, acabam tomando uma importância fundamental para que a nossa
sensibilidade, já tão ferida, não seja atingida em cheio a ponto de nos deprimir.
Considerando
esse cenário, encontrei nos filmes de Naoko Ogigami, assistidos durante a
quarentena, nada menos que tranquilidade. Após o primeiro filme, tive de
procurar pelos outros, tamanha a habilidade da roteirista e diretora japonesa
de me manter interessada no que tem a dizer. As histórias de Ogigami não trazem
a leveza por abdicarem de temas complexos; pelo contrário, nos seus filmes
encontramos personagens atravessados por perdas e insatisfações, de fragilidade
evidente. Mas o modo como Ogigami compõe o espaço, a maneira sutil pela qual
nos revela dramas cotidianos, a quietude em que mergulha todas as relações, nos
permite alcançar um estado de contemplação.
Filmes como Kamome
Shokudô (2006) e Toiretto (2010) são narrativas guiadas por personagens
aparentemente neutros em relação ao que se passa em suas vidas. No primeiro
filme, Sachie, uma japonesa de meia idade, resolve abrir um pequeno café na
cidade de Helsinki, Finlândia, lugar que pouco a pouco passa a reunir pessoas
de outras nacionalidades e com diferentes interesses. No segundo filme, Ray, um
pesquisador bastante apegado à sua rotina solitária, é levado a ter de conviver
com os dois irmãos e a avó numa mesma casa, após a morte da mãe. A avó, que nem
mesmo fala a língua dos três irmãos, é uma das mais interessantes personagens
de Ogigami.
Ambos os protagonistas,
de Kamome Shokudô e Toiretto, estão diante do luto materno, mas não demonstram
desespero ou consternação, afirmando uma atitude de compromisso com as próprias
vidas que se intensifica no contraste com as emoções daqueles que os rodeiam. É
através dos encontros que somos levados a conhecer as angústias e manias dos
protagonistas, de forma doce e bem humorada. Poucas vezes acompanhamos no
cinema de Ogigami pessoas explorando individualmente os seus dramas; os
conhecemos pelas trocas, através de diálogos que nem sempre envolvem palavras.
Uma refeição,
um programa de TV, uma máquina de costura, a letra de uma música, café ou
cigarros podem ser os disparadores e mediadores das relações que orientam a
narrativa. A diretora é muito feliz em transpor para suas obras a naturalidade
com que os encontros e conexões se constroem no correr dos dias, em seus acasos
e coincidências. É um tipo de cinema que não está preocupado com os grandes
eventos, tampouco se prende às minúcias das histórias pessoais. O que há de
mais bonito em cada um dos filmes é o que paira entre as personagens, aquilo
que se complica, se entende e se resolve nas trocas entre as pessoas, em meio
ao simples convívio e na presença de uns junto aos outros.
Ogigami
deixa bastante claro aquilo que quer nos mostrar, mas é preciso paciência para
percebê-lo, acompanhando com atenção o seu elogio à lentidão. Em Megane (2007),
Taeko, uma professora vinda de uma cidade grande descobre ter ido passar as
férias em um vilarejo em que basicamente não há nada para visitar, nenhum
roteiro ou programação a seguir. Na vila há somente a pousada onde Taeko se
hospeda e uma praia quase deserta. Lá circulam as pessoas do próprio vilarejo e
os pouquíssimos hóspedes que chegam à pousada, que parecem recorrentes. O
desafio aqui parece ser confrontar a personagem principal com a falta do que
fazer e com os hábitos das pessoas que vivem outro tipo de vida.
Como todos
os outros filmes da cineasta japonesa, Megane é classificado como uma comédia,
mas o humor é bastante sutil e circunstancial. Ele resulta do olhar da
protagonista que julga todas as pessoas do vilarejo de acordo com suas
expectativas, enquadrando-as em um esquema que inicialmente só nos faz ver as suas
excentricidades. É com o decorrer do filme que os personagens vão se
aprofundando, de modo que quem se torna plana aos nossos olhos é então a
protagonista. O equilíbrio é conquistado em uma cena longa e silenciosa, quando
a câmera parada nos convoca a contemplar longamente o grupo de pessoas da
pousada que, por sua vez, contempla o mar. A escolha das locações contribui
muito para o filme e a direção nos presenteia com planos abertos e luminosos, mostrando
o mar translúcido e o verde das árvores que contornam a praia. As refeições na
pousada e a comida como um todo são novamente muito importantes, perpassando a
relação das personagens e estimulando os sentidos do espectador.
Termino esse
texto com Megane, pois nesse filme narra-se uma prática que gostaria de
destacar: vários dos habitantes do vilarejo comentam com a visitante
recém-chegada que gostam de dirigir-se à praia de tardinha para “crepuscular”.
Diante da desconfiança da interlocutora, lhe é explicado que crepuscular é
permanecer até o anoitecer na praia em silêncio para pensar sobre a vida, sobre
as pessoas que já morreram, sobre as memórias que delas guardaram. É desse tipo
de matéria, simples mas epifânica, que se faz o cinema de Naoko Ogigami.
Imagino que faria muito bem a todos nós, enquanto sociedade, se aprendêssemos a
crepuscular às vezes.
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