O tempo de ontem e o tempo de André: lendo Lavoura Arcaica de Raduan Nassar
Por
Flaviana Silva
Lavoura
arcaica do escritor Raduan Nassar é um livro reservado para o visitante que
tem fome de linguagem poética; não tem rodeios na prosa e nem doses de
descrições sem sentido. A obra é o alimento perfeito para quando a vida cobrar
uma porção exagerada de arte; é subjetiva, mas direta em sua forma singular. Esse
romance é simplesmente uma ponte bem articulada entre a arte e o ser.
O leitor é guiado
para um tecido de memórias que envolvem uma família residente no interior brasileiro através da
narrativa de André, o jovem protagonista que por não conseguir lidar com o
espaço de sua casa e com seus conflitos afasta-se dos seus pais e de seus
irmãos para morar sozinho na cidade; o irmão mais velho não aceita a situação
de tristeza da mãe após a partida do irmão e resolve buscá-lo. O encontro entre
as personagens abre o romance destacando aspectos importantes como o tempo, o
espaço e a vulnerabilidade humana diante dos próprios sentimentos.
Não é
necessário detalhar os motivos da partida de André tendo em vista que a busca é
a melhor parte da leitura: deixar o lar confortável é uma decisão que modifica
a personagem e refaz todo o seu pensamento, algo que não é determinado pelo
lugar, mas sim, pela ação do tempo. É intrigante perceber que o tempo é um
elemento de destaque no romance, além de ser o construtor do processo da
identidade do rapaz também é evidenciado como o desconhecido, o que não pode
ser controlado, é o parente autoritário que domina as personagens, assim como o
pai cheio de lições rigorosas e arcaicas, o tempo causa conflito interno e
externo na narrativa.
Não é
novidade que não sabemos lidar com a espera que os processos exigem. Durante a viagem
memorialística realizada por André em sua narrativa temos acesso aos seus princípios
sobre a virtude da paciência, assim como somos levados a conhecer a sua família
e os segredos pessoais que ele esconde dos parentes, seus afetos negados e todo
o sentimento reprimido de um romance impossível.
Ao encontrar
André, o irmão mais velho admite que carrega consigo a mágoa provocada pelo
abandono; a família foi modificada pela decisão do jovem e agora é necessário
retornar. O tempo de voltar também determina uma construção importante: André
não consegue entender o sentido de viajar para um lugar que já não é seu, mas
decide aceitar o seu percurso. O leitor tem acesso a essa viagem através de
reflexões cheias de poesia que são apresentadas com detalhes bem construídos.
O espaço é
onde as ações importantes acontecem e por isso deve ser considerado como o
grande palco dos conflitos. De um lado temos a casa de André na cidade que não
é detalhada, nem sabemos como é sua estrutura, por outro, temos a criação de um
espaço familiar pintado em uma tela no imaginário do leitor. Assim é possível
alcançar a mesa e a cristaleira que brilham na luz da noite que inunda a casa. O
olhar do narrador faz uma transposição para o nosso olhar e somos levados a
conhecer todos os cômodos, a importância é justificada pelas mudanças causadas
em André, que apesar de parecer estar em casa não se sente como sendo parte do
lugar.
Após chegar
e conversar com a mãe, percebemos que o processo que leva o jovem a sair de
casa já tinha sido realizado bem antes da partida; ele era o filho pródigo
desde sempre, é inevitável não lembrar da parábola contida no texto bíblico que
enuncia o retorno de um filho que “estava perdido e foi achado”. No diálogo
entre André e a mãe entendemos essa relação entre a personagem e seu
desconforto perante sua família:
“— Meu
coração está apertado de ver tantas marcas no teu rosto, meu filho; essa é a
colheita de quem abandona a casa por uma vida pródiga.
— A
prodigalidade também existia em nossa casa.
— Como, meu
filho?
— A
prodigalidade sempre existiu em nossa mesa.” (p.156)
O filho pródigo
dessa narrativa é recebido com um amor que apesar de ser expressado não aceita
seu novo tempo, André já não tem as mesmas ideias, é um ser com opiniões novas
que desfaz toda a concepção do seio familiar como o lugar de paz e harmonia, ao
conversar com o pai em um diálogo bastante forte, recebe a mensagem de que suas
ideias não podem trazer mudanças para aquele lar e que não é permitido colocar
seus conhecimentos naquele espaço.
André está
em seu próprio tempo, com uma ousadia que não é aceitável perante sua família,
o romance destaca um fim trágico que mostra dois tempos bem evidentes, o tempo
de ontem que significa o que está preso na tradição e o tempo presente que
sempre vem, esse é o lugar da personagem protagonista, o tempo do agora que não
se entende com o lugar do pai e da família. Esse romance produz uma
inquietação, mas deixa claro que a Literatura sempre anuncia a novidade, o que
estar por vir.
Lavoura
arcaica foi publicado em 1975 e tem em sua tessitura o ambiente rural
brasileiro por excelência, distante de qualquer comentário desprovido de poesia
a obra exalta a beleza que existe em tudo que é proibido, o sentimento é o
elemento escondido, desautorizado e impedido. Esse romance é considerado uma
grande obra literária por ser um rio sem fim; ao chegar no último parágrafo
perde-se o ar, encontramos ali, na insuficiência dos processos a lacuna do
leitor e o “amplo” vazio das personagens.
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