O teatro de Gógol
Por Joaquim Serra
Ao ler O
inspetor geral devemos sempre ter em mente a epígrafe da peça: a culpa não é do
espelho se a cara é torta. Tudo começa da pior maneira possível. O prefeito
recebe uma carta dizendo que um inspetor fará uma visita à cidadezinha a fim de
fiscalizar os serviços. Diz a carta do amigo que lhe informa o fato inesperado:
“como sei que você, como todo mundo, tem lá os seus pecadilhos, pois você é um
homem inteligente e não gosta de deixar passar o que lhe cai nas mãos... então
aconselho tomar precauções”. Para o leitor acostumado com as personagens do
universo gogoliano, os pecadilhos do prefeito e do alto escalão reunido daquela
cidade muito provavelmente não é algo tão delicado como a palavra sugere. Todos
se acusam já nas primeiras páginas. O leitor sabe logo o que precisam maquiar –
quase todo o dia a dia – daquela cidade para receber a visita ilustre.
Como disse
Shakespeare sobre a consciência culpada: o ladrão vê em cada sombra um policial.
Bóbtchinski e Dóbtchinski, duplos não só nos nomes, mas também caricaturas de homens, não se
firmam em pé, não como personagens porque Gógol é um mestre dos tipos (tipos
que o leitor familiarizado com a literatura russa vai encontrar em Gógol a
origem de uma miscelânea de personagens para sempre fixados no imaginário dos
escritores russos). São como os dois Ivans, de A briga dos dois Ivans, somente
à espera de que em alguma troca malfadada um chame o outro de “raposa velha”.
Espelhos que se repelem porque detestam ver-se a si próprios, o que, aliás, nos
volta à epígrafe.
Enquanto o
prefeito, o inspetor de escolas, o juiz que acha que a aplicação da lei é algo
um tanto complicado para ser feita, o chefe dos correios que fica vermelho de
curiosidade e por isso abre todas as correspondências para se emocionar com a
vida alheia, e o encarregado da assistência social discutem as medidas para não
terem problemas com o inspetor, do outro lado da cidade um funcionário de São
Petersburgo viciado em jogos e esbanjador compulsivo tem problemas financeiros
e é quase expulso da estalagem onde se hospedou. A dupla Dóbtchinski e
Bóbtchinski escuta conversas de e acerca desse homem misterioso, Khlestakóv, e
o tomam pelo tal inspetor.
Tal equívoco
não é de todo inesperado na obra de Gógol. O leitor de Almas mortas vai se
lembrar um certo capitão Kopeikin. Na obra, enquanto estavam tentando descobrir
quem era o tal Tchítchikov, o chefe dos correios exige a palavra para contar
sua teoria de que Tchítchikhov não poderia ser ninguém além de um capitão que
fora ferido na campanha de 1812. Só depois de páginas e páginas do relato sem
pé nem cabeça que alguém se dá conta de que Tchítchikov não poderia ser o
capitão Kopeikin porque este perdera o braço e a perna na guerra, enquanto
aquele andava por aí inteiro a praticar o exercício estranho da compra das
almas. Porém, o que acontece em O inspetor geral é que a dupla consegue, sem
provar nada e nem sequer perguntar a Khlestakóv, persuadir todos de que aquele
é o tal inspetor que viria de São Petersburgo (sabe-se lá o que aconteceria em Almas
mortas se o tal capitão Kopeikin não tivesse perdido a perna e o braço).
O prefeito e
os seus vão à procura desse homem. Khlestakóv se aproveita da situação para
enganar aqueles que pensam ser muito espertos por estar um passo à frente do
inspetor. O falso inspetor, desse modo, encarna seu duplo, e o faz tão
malandramente que engana, engrandece a sua imagem para os provincianos e
consegue juntar uma boa quantia em dinheiro que é fruto de empréstimos.
Na peça O
casamento, um homem quer que o amigo se case a qualquer preço, mas o Oblómov da
primeira metade do século XIX, não quer deixar o conforto da vida de solteiro
em nome da obrigatoriedade do casamento. Podkolióssin é um conselheiro já não
tão jovem. Um solteirão que gosta de passar o dia fumando charuto e de roupão –
para Oblómov só lhe falta o divã e um amigo alemão. Podkolióssin acaba por se
render e conhece Agáfia Tíkhonovna (o sobrenome quer dizer a discreta, a
silenciosa) que é uma personagem que encarna os ideais românticos em um mundo
tomado pela malandragem e pelas máscaras sociais.
Os
pretendentes de Agáfia – levados por uma casamenteira a pedido da moça – chegam
todos na mesma hora e se colocam a exibir feitos e títulos. No mundo que Gógol
retrata, o título dá importância às máscaras, os homens têm a profundidade de
seus feitos sempre hiperbólicos. Isto basta para o leitor de O nariz se lembrar
da ofensa maior de Kovalióv quando encontra o nariz perdido. O problema já não
era ter o nariz se despregado do rosto, mas ver que este tem um cargo mais
importante e anda mais bem vestido que seu dono Kovalióv.
Movidos pelo
dote de Agáfia, que é filha de um comerciante, seria fácil para o amigo de
Podkolióssin dissuadir e dispersar os pretendentes e deixar o caminho livre. Seria
só dizer que tudo era falso e o desinteresse pela moça arrebataria seus
corações de modo tão apressado como se o interesse por ela sequer tivesse
existido. O caminho para Podkolióssin finalmente estava livre e ele agora
finalmente se casaria. Neste momento o leitor deve se lembrar quem é Gógol, o
imbróglio é a única constante a se agarrar firme.
Poucas
linhas separam suas criaturas do desespero e da comicidade. Mas Gógol é um
gênio dos tipos. O seu Tchítchikov, de Almas mortas, foi replicado pelo grande escritor
soviético Mikhail Bulgákov para exemplificar a fragilidade do novo mundo
soviético diante de um espertalhão em As Aventuras de Tchítchikov. Como citado
acima, Podkolióssin vai produzir no leitor de Oblómov, de Ivan Goncharov, uma
grande sensação de familiaridade a ponto de o leitor, arrisco dizer, prever o
final na peça. A obra satírica A vida e as extraordinárias aventuras do soldado
Ivan Tchônkin, de Vladimir Voinóvitch, publicada já na segunda metade do século
XX, tem profundo enlace com os métodos e tipos gogolianos, mas dela se falará
em breve aqui no blog.
Gógol tinha
uma relação especialmente complexa com o resultado de suas obras por conta da
religião (conta-se que ele se correspondia com a mãe à procura de histórias
provincianas interessantes), e que isso resultou na perda de vários de seus
escritos. Suas personagens estão intrinsecamente envolvidas no universo
mecânico a que estão sujeitas. A repetição do procedimento do duplo corrobora a
força dos homens serem iguais exigida pela normatividade de sua época. O
sobrenatural é uma das formas que mexem nas estruturas de suas marionetes. Sem
o estranho nariz, o que seria de Kovalióv? Sem o capote extraordinário, o que
seria de Akáki Akakievitch? Homens comuns, repetidamente perdidos no dia a dia
da burocracia, como prova o próprio nome e profissão do herói trágico de O
capote.
Vale terminar
este exame superficial com um comentário da tradutora Arlete Cavaliere acerca
da estética de Gógol, diz ela: “a criação de Gógol faz-se a partir de um
movimento de contemplação: Gógol como que contempla aquilo que descreve e
comunica ao leitor esta espécie de ‘vidência’. Para ele a palavra russa não era
só descritiva, mas reflexa como um espelho e, segundo suas próprias palavras,
‘para animar de modo sobrenatural um objeto, é preciso olhar para ele com mil
olhos’”.
______
Teatro completo
Nikolai Gógol
Arlete Cavaliere (Trad.)
Editora 34, 2009
Editora 34, 2009
408 p.
Para este
texto
Nikolai
Gógol. Teatro completo. Tradução do russo de Arlete Cavaliere. São Paulo: Editora 34, 2009.
Comentários
Aproveito então para lhe perguntar sobre a frase de Doistoiévski, 'Todos nós saímos de O Capote'. O senhor já postou alguma coisa sobre isso? Vou começar a visitar seu blog para me informar mais sobre essa literatura tão linda que é a literatura russa!