O desejo póstumo de E. M. Forster
Por Edu
Bravo
E. M. Forster, 1947. Foto: Bill Brandt |
No dia 9 de
junho de 1970, o correspondente da ABC em Londres enviava uma nota telefônica
informando sobre a morte do escritor E. M. Forster, acontecida dois dias antes
no King’s College de Cambridge, prestigiada instituição educativa na qual o
escritor havia estudado quando jovem e onde resida desde 1961. Entre outras
coisas, o texto ressaltava que Forster era um dos romancistas ingleses mais
importantes do século XX, que estava em todas as listas de grandes escritores contemporâneos
e, ainda que talvez não encabeçasse essa relação, “ninguém discute seus méritos
para figurar nela”. Um fato que, por sua vez, era surpreendente para o
jornalista porque “essa honra foi assegurada com apenas cinco romances, alguns
contos e vários ensaios. Uma produção literária muito breve para o talento de
Forster e sua longevidade. No dia primeiro de janeiro havia completado noventa
e um anos.”
Quando o
redator se referia a cinco romances, tinha razão. Até então tinha vindo à luz
apenas Where Angels Fear To Tread (Onde os anjos não se aventuram, em
tradução livre), A mais longa jornada, Um quarto com vista, Howards
End e Uma passagem para a Índia. Mas, a esses cinco romances se
somaria poucos meses depois da morte de Forster mais outro: Maurice. Um livro
que foi escrito em 1914 e, por desejo expresso do escritor, só foi possível publicar
postumamente.
A razão para
essa espera foi dada pelo próprio Forster numa nota acrescentada ao manuscrito
nos anos sessenta. Nela dizia: “Um final feliz era imperioso. Do contrário, não
teria me dado ao trabalho de escrever. Havia decidido que, na literatura ao
menos, dois homens poderiam apaixonar-se e continuar apaixonados para a eternidade
permitida pela ficção, e, nesse sentido, Maurice e Alec ainda perambulam pelos
bosques. Não sem razão dediquei o livro ‘A um ano mais feliz’. A felicidade é
sua nota principal ― o que, por falar nisso, trouxe uma consequência inesperada:
tornou o livro difícil de ser publicado. E, a não ser que o Relatório Wolfenden1
se torne lei, provavelmente terá de continuar na forma de manuscrito. Se houvesse
criado um final infeliz, com um rapaz balançando na ponta de uma corda ou com
um pacto suicida, tudo ficaria bem, pois não poderia ser acusado de promover pornografia
ou sedução de menores. Mas, como os amantes se safam sem punição, a obra
consequentemente recomendaria o crime.”
Essa confissão
revelava o sofrimento vivido por Forster por sua condição de gay num país em
que até os primeiros anos 80, as relações entre adultos do mesmo sexo não eram
completamente legais. Uma proibição que, além de acabar com a reputação de
qualquer cidadão, podia provocar sua prisão, tal como havia acontecido com
Oscar Wilde, alguns anos antes. Assim, embora Forster tenha se apaixonado
platonicamente por alguns dos seus colegas do King’s College de Cambridge
durante a adolescência, sua iniciação sexual foi tardia, depois já dos trinta,
e quando estava fora da Inglaterra.
Seu primeiro
amante foi um jovem militar em recuperação de saúde que conheceu quando estava
no Egito durante a Primeira Guerra Mundial e depois um motorista de bonde alexandrino
chamado Mohammed-el-Adl. Mais tarde teria alguns amantes esporádicos na Índia
e, em regresso a sua terra natal, sua relação mais duradoura seria com Bob
Buckingham, homem casado que, com sua companheira, fazia parte do círculo
íntimo do escritor, este também formado pelo compositor Benjamin Britten e o
autor de Adeus a Berlim, Christopher Isherwoord. O mais chamativo, ao
menos do ponto de vista freudiano, era que Buckingham trabalhava na polícia e
junto com a condição de amante se somava a de encarregado de perseguir socialmente
esse amor.
Do King’s
College a Alexandria
Nascido em
1879 numa família abastada, E. M. Forster ficou órfão de pai logo aos dois
anos. Por causa dessa morte, ele e sua mãe, que enviuvou com apenas 25 anos,
foram acolhidos pela família paterna. Essa situação favoreceu a uma relação entre
os dois muito estreita. Os dois realizaram uma longa viagem pela Europa que
mais tarde inspiraria alguns dos livros do escritor como Um quarto com vista;
e até à morte de sua mãe, quando Forster tinha já 66 anos, mãe e filho sempre viveram
juntos.
A situação
dos Forster permitiu que o menino estudasse na Tonbridge School, colégio da
elite inglesa onde o escritor precisou se encaixar na rígida disciplina, nos
valores de competitividade e as tradicionais características de masculinidade
impostas. A situação mudaria quando foi para o King’s College; aqui encontraria
certo ambiente de camaradagem e excelência intelectual que precisava. Aqui
participou de uma sorte de grupo secreto chamado Os apóstolos e entrou em
contato com algumas das personagens que posteriormente formariam o grupo de
Bloomsbury, do qual também fez parte embora com menor protagonismo. Além de seu
comportamento retraído, enquanto os componentes do grupo foram criadores
tardios, quando Forster o integrou durante 1910 e 1920 já havia escrito a maior
parte de sua obra romanesca. Eram conhecidos já Where Angels Fear To Tread,
A mais longa jornada, Um quarto com vista e Howards End.
O estopim da
Primeira Guerra Mundial provocou a dispersão do grupo de Bloomsbury e Forster, como
objetor de consciência, foi destinado a uma unidade da Cruz Vermelha no Egito.
Na cidade de Alexandria conheceu o poeta Konstantinos Kaváfis, com quem manteria
estreita amizade e autor a quem ajudaria a publicá-lo na Inglaterra. Embora os
poemas de Kaváfis não necessitassem de avalistas, o prestígio de Forster como
crítico literário, que o faria posteriormente a ocupar a pose nobre como
conferencista da BBC e o livro Aspectos do romance, era uma garantia
para os editores. Além disso, dessa experiência no Egito apareceriam os livros
de viagens: Alexandria: a History and Guide (Alexandria: história e roteiro,
em tradução livre), editado em 1922 e Pharos and Pharillon (A Novelist's
Sketchbook of Alexandria Through the Ages) (Pharos & Pharillon. Uma
evocação de Alexandria, tradução portuguesa), publicado um ano depois pelos
seus amigos de Bloomsbury, Leonard e Virginia Woolf na mítica editora conduzida
pelos dois Hogarth Press.
Da Índia
ao King’s College
Depois da
Primeira Guerra Mundial, com quatro romances de sucesso em seu currículo e
próximo dos 40 anos, parecia que para Forster já não existiam mais coisas para
conhecer e dizer. Mas, é a partir desse momento que o escritor começará uma
nova e frutífera fase tanto de sua vida profissional como pessoal e literária.
Em 1920, por
convite do marajá de Dewas, Tukojirao III, foi nomeado secretário particular, o
que levará passar uma longa temporada na Índia. Dessa experiência resultará um
número valioso de cartas enviadas para a família nas quais explicava as
peculiaridades do país, do seu povo e as diferenças em relação aos colonos
ingleses. Esse material seria copiado mais tarde em The Hill of Devi (A
colina de Devi, em tradução livre) e servirá de base para seu último grande
romance em vida, Uma passagem para a Índia. Desde sua publicação, as
exóticas aventuras de Adela Quested e a senhor Moore foram um grande êxito de
vendas, que alcançaram centenas de milhares de exemplares em sua edição de
bolso, chamando atenção de David Lean.
O diretor
britânico, famoso por títulos como A ponte sobre o rio Kwai, Lwarence
da Arábia ou Doutor Jivago, leu a obra, assistiu como espectador a Montagem
teatral que foi produzida do romance e, apesar da dificuldade de adaptação que
apresentavam as obras de Forster ― um grande número de personagens e uma trama
em que apenas sucedem situações ―, decidiu levá-lo ao cinema. Mas, tão logo
Forster aceitou a proposta de Lean, morreu. E sem assinar o contrato. Esse
inconveniente desaminou o diretor que continuou com o projeto embora precisasse
esperar alguns anos até do que o King’s College, instituição que se tornou
herdeira de todo arquivo do escritor e gestora dos direitos de sua obra, desse
autorização para o feito em princípios dos anos 1980.
Depois de
várias adaptações dos romances de Forster para televisão por parte da BBC, Uma
passagem para a Índia abriu uma série de grandes produções cinematográficas
baseadas nas obras do escritor britânico. Mas, se o pioneiro foi Lean, o diretor
que se especializará nelas seria o estadunidense James Ivory que, com seu
roteirista de confiança, Ruth Prawer Jhabvala, adaptou Howards End, Maurice
e Um quarto com vista. Foram esses filmes que popularizaram a obra de
Forster. Até então existiu um grande silêncio depois do último romance
publicado.
A razão
talvez estivesse no que destacava o jornal La Vanguardia no dia 2 de
janeiro de 1969, na passagem dos noventa anos do escritor celebrados no dia
anterior. Nesse artigo, o jornalista Enrique Laborde informava sobre a
concessão de Ordem do Mérito ao escritor e a publicação do livro-homenagem New Aspects of E. M. Forster, que, dizia, vinha a luz quando na Inglaterra “seu nome era
amado entre uma minoria de leitores, já que desde 1924 Forster havia se
dedicado ao ensaio e à crítica literária, deixando há muito os dias de viva
atuação literária”. Talvez esse esquecimento por parte das novas gerações de
escritores explicasse também por que a Academia sueca nunca lhe concedeu o
Prêmio Nobel de Literatura, apesar de figurar em proposições 16 vezes. Seja como
for, não existiu lugar para uma décima sétima, porque, no dia 7 de junho de
1970, Forster morreu no seu amado King’s College.
Notas
1
Estudo britânico, de 1954, que sugeria que o comportamento homossexual,
privado, consentido, praticado entre adultos, não fosse considerado criminoso
na Inglaterra. [A nota é de Marcelo Pen, autor da tradução aqui apresentada, publicado
em Maurice (São Paulo: Globo Livros, 2006, p. 252)].
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução livre de “El deseo póstumo de E. M. Forster: que dos homosexuales fueran felices (aunque fuese en la ficción)”, publicado aqui, na Vanity Fair.
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