Marvin, de Anne Fontaine
Por Pedro
Fernandes
A sinopse
oficial de Marvin não menciona ser uma adaptação da obra de Édouard
Louis; nem os créditos finais ou de abertura da película. Mas, resulta
impossível negar as relações entre O fim de Eddy e Marvin, ainda
que o romance nos coloque diante de outro rumo para a vida da personagem e se
revista de uma objetividade mais acentuada acerca dos acontecimentos relatados.
Quando se anunciou o novo filme de Anne Fontaine dizia-se que a história de um
ator, dramaturgo e escritor que transformou a miséria, a violência e a vergonha
de seu passado em campo de experimentação discursiva era a partir da obra de
Édouard Louis; um ano depois, o próprio escritor veio a público dizer que não
tinha nada a ver com o filme. A partir disso, tudo o que se disse foi
especulação.
Uma das
cenas finais da obra de Anne Fontaine apresenta o agora Martin Clement acolhido
pela apoteose de sua peça para o teatro encenada ao lado de Isabelle Huppert
numa entrevista utilizando-se de uma resposta contraditória acerca das relações
entre a vida pessoal dele e a obra. Afirma que tudo o escreveu é produto do que
viveu, mas o que se mostra na ficção nada tem a ver com sua vida. O imbróglio envolvendo
as duas obras aqui em questão, a literária e a fílmica, parece encontrar na
própria ficção uma resposta possível. Antes da acusação de efeito comercial o
que se coloca em questão é uma estratégia de dissimulação, esse elemento
fundador da criação mimética.
É óbvio que
os objetos miméticos prescindam de uma origem situada na experiência e vivência
dos seus criadores, entretanto, reduzi-los ao estatuto de me transferência
entre o vivido e ficcionado constitui um problema que coloca em negação o
trabalho criativo. Mas, agora, com a radical reiteração de que tudo é
autobiográfico, ou o pior, que a autobiografia é uma forma cujos limites são os
transposição de um para outro plano (compreensão errônea, diga-se), os
ficcionistas padecem de uma condição que nunca foi exclusivamente a sua: autores
de um discurso da verdade.
Esse problema
é vivenciado desde remotas eras, mas se acentua na contemporaneidade e Marvin
não deixa de trazê-lo quando coloca em cena o criador às voltas para desfazer a
sorte de mal-entendidos com a sua peça no âmbito da família deixada desde
quando consegue substituir a vida medíocre num vilarejo do interior da França
pela de aluno de artes cênicas em Paris. A impossibilidade de perceber as sutis
linhas entre essas duas realidades, a vivida e a ficcionada, é o que estabelece
a leitura rasa das criações e esta é a batalha final e incompleta do jovem Martin
Clement.
O filme Anne
Fontaine se constitui por três linhas narrativas que se mesclam e em parte não obedecem
a uma linearidade cronológica; isso porque parte do que se narra é produto do
trabalho de rememoração da personagem principal. Assim, encontramos a vida comum
no presente de Martin Clement (esta situada em media res), os anos escolares
de Marvin Bijou (a primeira identidade social de Martin) que esclarecem o
passado da personagem principal, e e o resultado entre o vivido e o ficcionado,
que se apresenta do meio para o final da trama fílmica pelos excertos da peça
desenvolvida entre Martin e Huppert.
O que
alinhava esses três fios são os dramas decorrentes das relações familiares, a
violência física e psicológica imposta por uma sociedade em franca degeneração,
o valor dos laços afetivos para a transformação das existências em perigo, o
drama do autoconhecimento e da autoaceitação numa cultura marcada por todos os
vícios do machismo, a superação dos sujeitos marginais em meio a esses
contextos de negação e insalubridade dos afetos e o imperativo da arte como suporte
de escape e de transformação das realidades fadadas à barbárie e mesmidade das
existências.
A partir do
último tópico é possível recuperar aqui algumas leituras sobre o Martin que
têm acentuado a maneira ingênua como a cineasta se utiliza do tema da dor como
um imperativo, quase determinista, para a criação artística, sem oferecer ao
espectador uma compreensão muito clara entre esses dois instantes na vida dessa
personagem. Isso implicaria, inclusive, na maneira como todas as situações e
demais personagens funcionaram apenas como acessórias do drama principal.
Parece que fica aqui algumas confusões por explicar.
Primeiro
porque a dor está muito distante de ser o imperativo para a arte. Ela se
oferece como um elemento casual que permite à criança uma alternativa ante sua
realidade de medo, repressão e silenciamento. Isso parece a situação da mais comum
em qualquer contexto de destituição marcado pela intervenção do artístico. O
que assistimos é a contínua apropriação desse criador das situações de seu
cotidiano e como dissimulá-las ao ponto de transformá-las em objetos simbólicos;
assim, o texto teatral encenado pelo agora Martin e Elisabeth Huppert tematiza
a complexidade dos laços afetivos entre mãe e filho e como estes implicam nos
sentidos sobre sua presença de indesejado no mundo.
Depois, nenhum
destino das demais personagens que constituem o cosmos da infância de Marvin
fica perdido ante a nova vida de Martin. E se as situações aparecem à serviço
do drama da personagem principal isso deve à escolha de perspectiva da narração:
não esqueçamos que tudo é entrevisto pelo ponto de vista de Marvin / Martin. Tudo
participa no tratamento particular de apagamento e revelação de um passado implicado
no reconhecimento de si e sua presença no novo mundo que se vislumbra. E esses
trânsitos são operacionalizados com bastante sensibilidade pela narrativa
fílmica.
É um filme
que propõe inovações no tratamento da formação do gênio? Não; nem é o caso de
genialidade o que nos apresenta. É sim uma vida comum que se refaz, primeiro pela
única oportunidade dada àqueles que padecem um futuro gris, depois, pela persistência
de seu estabelecimento num meio cujas diretrizes estão secularmente
solidificadas. Marvin repete as mesmas linhas de muitas histórias universais
cujo acaso ofereceu aos indivíduos marginais uma nova maneira de reescrever seu
destino. E, por romântica ou piegas que pareça, é outro reforço ao argumento fundamental
de que, se a arte não salva, transforma realidades.
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