Conversas com suicidas
Por
Carlos Mayoral
Alfonsina Storni. Mar del Plata, 1925. |
Safo terá
pulado do alto de uma pedra no fim da vida? Foi capaz de assumir que nunca
poderia esquecer o amor não correspondido? Ao escutar o canto da sereia, o
suicida sempre a imagina bela, atraente, necessária. Alfonsina Storni reflete
sobre sentada na areia da praia de La Perla, em Mar del Plata. Deixou tudo
amarrado, muito bem amarrado. Tomou cuidado para que seu filho não suspeite
sobre a verdade: sua mãe deixou o hotel para observar o mar tranquilamente,
embora o jovem acredite que se trate apenas de uma noite a mais. Alfonsina,
entretanto, sabe que não. Alfonsina e, certamente, Safo também. Porque Safo é a
poesia, diz-se. Ela alcançou a plenitude que ninguém alcançaria mais tarde, logo
seu salto para o vazio do alto da rocha estava mais que justificado. E se a
poesia, como diria depois Jaime Gil de Biedma, é o único recurso para dialogar
ao mesmo tempo com os seus contemporâneos e os seus antepassados, quem sabe, isso não é agora uma conversa. Alfonsina sorri e sobre a cena sobrevoam alguns
versos da deusa de Lesbos: “Morta jazerás, nem memória alguma futura / de ti
haverá”1.
Ao fechar os
olhos, irrompe sua memória. Recorda as últimas tardes no mundo material. Ali,
agora se utilizam da mesma pedra de onde um dia Safo se matou para apedrejar um
amigo de Alfonsina: seu querido Leopoldo Lugones. Velho, havia acompanhado seu suicídio
com a dose perfeita de uísque. Todo suicídio deveria ser acompanhado com uísque,
pensou. Alfonsina o recorda perfeitamente: o sujo bistrô em Buenos Aires, copos
esvaziados e os versos de Martín Fierro sobre a mesa. Poucos meses mais tarde,
Lugones será encontrado morto num lugar tão imundo e podre como aquele velho
bistrô portenho. Sobre a mesa que se apresentou como testemunha da morte,
encontraram a garrafa de uísque, um copo com água, os restos de cianureto e um
texto que começava assim: “Não consegui terminar o livro”. O tempo não passa:
transcorreu oito meses do suicídio de Lugones até a cena agora protagonizada
por Alfonsina, que continua olhando o mar imóvel.
Chove. A chuva
lânguida transcende
Seu cheiro
de flor fria e suave.
O dia é
longo e triste. Alguém compreende
Que a morte
é assim..., que assim é a vida.
Também chega
à memória de Storni a agradável companhia de seu querido Quiroga. Seu histórico
suicida é inigualável: Horacio viu como seu pai, seu padrasto, sua companheira,
seu melhor amigo e, certamente, seu admirado Lugones escolheram a porta do
suicídio para escapar de um século, o XX, que só cumpriu trinta e seis anos e
já decepcionava. As mortes de Horacio Quiroga e Leopoldo Lugones estão separadas
por poucos meses e, ainda assim, tanta distância... O suicídio conta com a
sedução do desconhecido: a vertigem começa por atrair e deixa de empurrar. Para
Horacio, talvez, a morte era mais um auxílio, a trama, o meio e não o fim. Assim
Alfonsia havia reconhecido anos antes, com alguns dos versos tão magistrais
como premonitórios.
Morrer como
tu, Horácio, em tua lucidez,
E assim como
em teus contos, não faz mal;
Um raio a
tempo e se acabou a feira...
Dirão
depois.
Mas, Gil de
Biedma não sabe que a poesia não apenas permite dialogar com o passado e o
presente, como também com um futuro que tende a se repetir. É por isso que
Alejandra Pizarnik, várias décadas mais tarde, escreveria em seu diário uma linha
definitiva: “Todos os anos o mar realiza um ato de alegria. A razão: a posse de
sua amada Alfonsina Storni.” Porque o mar que agora observa Alfonsina é o mesmo
que mais tarde quis arrastar Pizarnik. E ela, solícita, dedicou grande parte de
sua vida a descrever num papel a atração que essa massa de água provocou em seu
espírito. A morte sobrevoa o poema de Alejandra, ditando esses versos que só o suicida
sabe traduzir. Os versos de Lugones, Quiroga, Pizarnik e Storni sempre
estiveram aí, mas foi necessária a porta do suicídio para que entrassem na literatura.
Num setembro
qualquer alguém viu como o corpo de Pizarnik havia se afogado ante dezenas de barbitúricos.
Num de seus cadernos, havia escrito: “não quero ir nada mais que até o fundo”. E
no fundo, pela primeira vez e para sempre, havia lugar para Alejandra.
Agora,
a menina
encontra a máscara do infinito
e rompe o
muro da poesia.
Nem mesmo
Julio Cortázar, amigo íntimo, foi capaz de afugentar os fantasmas que envolviam
a frágil mente de Pizarnik. Trocaram correspondências durante aquelas últimas
noites porque ela já havia deixado de contar como os próprios dias. “Eu te quero
viva, burra”, escreveu ele, como se desesperado pelo rumo dos acontecimentos
que não chegavam. Ela, por sua vez, contestava: “Julio, odeio Artaud (mentira)
porque não quis entender tão suspeitosamente bem suas possibilidades de
impossibilidade”. A essas alturas, o espírito de Artaud já havia se apossado do
futuro de Alejandra e o mar estava a ponto de possuí-la como, segundo a própria
Pizarnik, havia feito com Alfonsina Storni. Dois meses depois do suicídio de
Alejandra, Cortázar recebeu um envelope em cujo interior repousava uma
fotografia dela deitada na areia, nua e tranquila. Quem enviou essa carta?
Ninguém nunca soube, embora a única pista que temos é a certeza, segundo suas
palavras, de que Pizarnik nasceu morte e voltaria só quando o amor lhe pedisse.
Posto que o Hades
não existe,
seguramente estás
ali,
último
hotel, último sonho,
passageira
obstinada da ausência.
Isso não importa
para Alfonsina, porque sabe que ela continua aí, ao amparo das ondas. As mesmas
ondas que haviam dado título a uma das obras de sua querida Virginia Woolf.
Amava a escritora anglo-saxã. Ambas carregando a bandeira do modernismo, ambas
fazendo do feminismo uma forma de vida. Virginia também fora atraída pelo fluxo
da água que a arrastaria para o fim. Porque o mar, dentro dessa corrente
modernista que as duas predicaram, simbolizava o fim, a morte, o último
instante. Quando Machado, outrora ilustre modernista, devolveu ao mar a dignidade
em plena guerra civil espanhola (“De mar a mar entre os dois a guerra”), Woolf
e Storni já estavam embebidas o suficiente daquele final para se abraçar com
ele pela última vez. O caso de Virginia Woolf resultaria bastante dramático para
se mostrar neste texto: se jogou no rio Ouse numa primavera com os bolsos cheios
de pedras.
“Queria
escrever sobre tudo, sobre a vida que temos e as vidas que poderíamos ter. Queria
escrever sobre todas as formas possíveis de morrer.”
As mesmas
ondas que cruzaram pelo parágrafo anterior continuam transmitindo a Alfonsina a
paz que nunca sentiu fora desse mar que agora observa as costas de seu filho.
Muitos anos depois, Mercedes Sosa acabaria dedicando-lhe uma canção aos dois,
ao amar e a Storni, causando uma revolução sem precedentes no mundo da música. O
tema ganhou versões por vozes tão diferentes como Plácido Domingo, Calamaro,
Serrat ou Shakira. Daquele pó musical surgiu o lodo da celuloide, dando origem
assim ao filme que compartilha as duas palavras: Alfonsina y el mari,
dirigida por David Sordella. A mirada até aquela vasta porção de água havia se
tornado eterna.
Uma voz
antiga
de vento e
de sal
te recolhe a
alma
e a está
levando
e te vás
para além
como em
sonhos adormecida
Alfonsina
vestida de mar
Não restam
mais argumentos. Alfonsina se levanta e deixa que o som cubra tudo. Passeia pela
margem, deixando sobre a areia um rastro diminuto mas indelével. Reconhece-se
nesse rastro, como se reconheceram Safo, Lugones, Quiroga, Pizarnik, Cortázar, Machado,
Woolf... É o rastro que a literatura a deixou incrustrada na morte. Entra os
pés no mar deixando que a água lhe acaricie os tornozelos com suavidade. A luz
da manhã já corta a cena e ela pode se ver refletida no largo espelho. Contam que
Gabriela Mistral, mais tarde Prêmio Nobel de Literatura, havia sido avisada da
feiura de Alfonsina quando a poeta chilena se empenhou por se encontrar com
ela. “Cabelo mais bonito nunca vi, é estranho como se fosse a luz da lua em meio-dia,
pois era dourado, e alguma doçura loira resta ainda nos restos brancos”, havia exclamado
Gabriela. Pela primeira vez, Alfonsina pode apreciar essa beleza através de seu
reflexo. Suspira. Volta a suspirar. Introduz suas pernas no mar. Agora, a água
chega aos joelhos.
Oh morte, eu
te amo, mas te adoro, vida...
quando vier em
minha caixa para sempre dormida,
faz com que pela
última vez
penetre em minhas
pupilas o sol da primavera.
Epílogo
O cadáver de
Alfonsina Storni foi encontrado no dia 25 de outubro de 1938 sobre a areia da
praia de La Perla, em Mar del Plata. Seu filho soube do suicídio pelo rádio.
Algumas versões apontam que Alfonsina como Safo, se jogou no mar do alto de uma
pedra. Outras, muito mais românticas, contam que a poeta mergulhou seu corpo
tranquilamente na água até desaparecer para sempre.
Nota
1 A
tradução é de Giuliana Ragusa. As demais traduções de excertos literários são realizadas
a partir do texto original em espanhol.
Ligações a esta post:
* Este texto
é uma tradução de “Conversaciones con suicidas”, publicado aqui, em Jot Down.
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