Charles Dickens: Carlitos, McCartney e o Natal

Por Carlos Zanón


Robert W. Buss, Dickens's Dream, 1875.


Tal como Carlitos ou McCartney dos Beatles, Charles Dickens foi uma celebridade universal. Desde sua aparição com apenas 25 anos de idade, agradou a todos. Como os dois primeiros, foi impossível de detê-lo e tinha consigo o dom da oportunidade. Os três estiveram no momento preciso ante o clique: Dickens, o da fotografia; Chaplin, o do cinema; e McCartney e os seus, ante a televisão e os toca-discos compactos. Eram reconhecíveis, assediados, procurados, exigidos e adorados. Forças autônomas, em aparência inesgotáveis, que vinham de onde não deveriam ter saído da pobreza, da orfandade, do outro lado da lei para chegar aonde, sem saber como, ao que lhes esperava. Hoje não é possível imaginar um mundo sem eles. Entusiasmo, criação, absoluta liberdade ante a contenção já são ante a denúncia, o bom gosto, o vulgar, o genial, a não impossível conexão entre o popular e o erudito.

Em Dickens o imigrante não quer sair de onde tentam de expulsá-lo (o pobre quer comer no mesmo restaurante que os demais). É Carlitos vagabundo e a florista cega, os finais de bolsos vazios e grandes esperanças. Mas também é Dickens quem denuncia em Tempos modernos ou O grande ditador. Dickens é “My Love” e “Obladi Oblada”, mas também “Golden Slumbers” (um título, diga-se, bem dickensiano) ou “Here, There and Everywhere”. Mas, em especial é Dickens essa canção ao piano, esses dedos que dão umas notas simplistas mas irresistíveis, esse gancho melódico que nunca chega ao culto e sim ao autodidata (apenas intuí que soaria melhor). É “Martha, my Dear” esse final de filme que nos mata de prazer cheio de culpa. Hugh Grant subindo tocando “Softly” junto a um menino maltrapilho e maltratado.

É impensável Chaplin sem Dickens como Frank Capra (“Wonderful Life” não é outra coisa que retorcer com perversidade o braço de Conto de Natal) ou David Lean ou George Cukor ou maravilhas como Ladrão de bicicletas. Mas também a montagem paralela dos primeiros planos em David Griffith são Dickens como assinalou Eisenstein sobre as personagens bizarras de David Lynch. O cinema (e as séries) caiu bem a Dickens, aos seus romances derivados das sagas medievais, narrativas sobre acontecimentos e personagens fora do comum. E nele, a personagem que não muda, o Gary Cooper que as circunstâncias do futuro narrativo o tornam mais sombrio mas nunca o destrói, numa viagem até à redenção, quase sempre dentro de um sistema no qual acredita. É lógico que acredite que bons vencem e que a justiça existe sim e é humana (já Kafka, dickensiano casual, criaria labirintos sem saídas) porque ele é o exemplo em si desse final feliz que enche de esperanças toda uma sociedade (a dignidade dos pobres e a bondade dos ricos).

Chaplin, McCartney ou ele mesmo trabalhando desde pequeno para manter sua família, já que seu pai estava na prisão por dívidas se tornaram milionários queridos e populares. A tal nível que até mudaram as regras do próprio jogo (a defesa dos direitos do autor se deve e muito ao romancista). Qualquer cinismo seria cobrado. Daí seu sentimentalismo direto, grotesco (só desde aí pode se descrever um estalo de alegria com bem disse Chesterton), brega muitas vezes mas também emotivo, sincero como a má poesia (Oscar Wilde), mas assegurava o tiro da crítica social, da denúncia, da vontade de destacar causas e efeitos do capitalismo urbano numa Londres que é cenário e ao mesmo tempo alma de todo Dickens. Carlitos era Londres no Novo Mundo, o bizarro de uma indumentária digna mas miserável ― outra razão dickensiana com suas personagens excêntricas, fora de compasso. 

Charles Dickens, como outros companheiros em seu tempo nestas linhas, acertou ao saber que a ficção é uma força poderosa para modificar as coisas. Oliver Twist foi responsável direto por expor os arrabaldes londrinos e Conto de Natal descobre o que acontece quando quem tem dinheiro não ajuda à sua comunidade. O maltrato nos orfanatos, as crianças delinquentes, os labirínticos corredores de uma justiça lenta, surda e cega simultaneamente, a pobreza herdada. Prostitutas, bêbados, arruinados, velhos e dementes ― a todos eles Dickens outorga a dignidade per si e os mostra como joguetes de um sistema quando este funciona sem Deus nem equilíbrio ético, como um romance cruel e vingativo, sem moral e sem justiça poética. Conto de Natal é o maravilhoso fracasso de um panfleto sobre a situação de extrema pobreza infantil e suas condições de trabalho inumanas que o escritor decidiu converter em ficção. Sua genialidade acrescentou o gótico às narrativas, histórias de fantasma, a melancolia, o que pode ser e não foi, as decisões que não tomamos, o fantástico e... o Natal. Dickens talvez não tenha inventado o Natal e sim a maneira de celebrá-lo: em família, festivo, integrador, imprevidente e grotesco. Os Natais vitorianos, frios e contidos, nunca mais foram os mesmos depois de arrasados por um menino de mãos manchadas de betume que queria viver dentro das casas, das famílias e dos livros.

* Este texto é a tradução de “Charles Dickens: Charlot, McCartney y la Navidad”, publicado aqui, no jornal El País.


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