A redoma de vidro, de Sylvia Plath
Por Pedro Fernandes
Sylvia Plath quando bolsista da Mademoiselle, em 1953. A imagem ficou registrada em A redoma de vidro |
A redoma de
vidro, de Sylvia Plath reúne dois livros. Um é composto pelos nove primeiros
capítulos. E o outro pelo restante do livro. A constatação evidencia ainda
uma condição: parece que foi escrito em duas etapas distintas. Estritamente
autobiográfico, o primeiro livro começou a ser escrito quando a escritora
estadunidense foi, assim como a personagem deste romance, premiada com uma
estadia em Nova York por uma daquelas muitas revistas para mulheres que
marcaram os anos pós-revolução feminina. E o segundo livro é fruto de uma
retomada da escritora ao projeto original e quando já estava atormentada pela
obsessão do suicídio, empreitada que conseguirá realizar depois de diversas
tentativas ao longo da vida.
O primeiro
livro que compõe A redoma de vidro quer ser um romance sobre, entre
outras coisas, o lugar social da mulher. A jovem Esther Greenwood sente-se
encantada com a vida de luxo e futilidade que leva ao lado de outras tantas
meninas da sua idade nesse mês em Nova York. É uma narradora que sonha para si
– mesmo não se sentindo integrada ao modus vivendi oferecido – a
posição de sua chefe de redação, a feia Jota Cê ou que sonha desinteressadamente
com a possibilidade de ganhar a vida como escritora, projeto que antes do
sucesso significa fugir da vidinha de Boston e das implicâncias da mãe, uma
professora de taquigrafia que sempre cobra da filha à dedicação a um curso do
tipo a fim de garantir sua independência financeira.
O fato é que
a vidinha sem esforço em Nova York acabará por entregá-la ao comodismo e a cada
vez mais o afastamento do tipo de mulher que é quando vive em Boston e logo o
apagamento de seus melhores interesses. A extensa agenda de burguesa, quase
sempre enfadonha, tolda-lhe as expectativas de, conquistar seu sonhado lugar ao
sol, como sempre foi treinada a fazer: ao relembrar o tempo escolar, por
exemplo, Esther é sempre a mais centrada e a melhor das alunas, não porque seja
perspicaz e inteligente, mas dedicada e interessada nas escolhas que faz.
A distância
do modelo de vida para o qual lhe entregam e da situação de ser sempre a
melhor, seja porque não encontra sentido aí, seja porque tudo aos poucos se
torna enfadonho e repetitivo, garante à personagem uma aguda visão sobre
o american way of life e, logo, uma crítica feroz a ele. Sobretudo,
na maneira como essa sociedade enxerga e trata as mulheres, o que, por sua vez,
se afirmará como a revelação sobre a hipocrisia do discurso veiculado sobre os
direitos e a independência da mulher.
Aos olhos de
Esther, na sociedade da ampla liberdade, o papel reservado às mulheres é uma
repetição de outra maneira das mesmas condições e modelos forjados pela cultura
falocêntrica: as mulheres são fúteis, devem ser educadas para atividades e
preocupações de igual natureza, e, ainda são as que devem escolher bons
partidos para casarem-se, serem boas donas de casa e mães – estes são,
inclusive, os subsídios para os conteúdos das tais revistas femininas ou de
escolas e universidades voltadas para mulheres. A única coisa que parece fugir
um pouco dessa necessidade de manutenção de um statos quo são as
profissões ligadas ao uso da escrita. Ainda assim, as atividades de escrita
estão diretamente ligadas à compreensão burguesa sobre o ócio e a este a
dedicação é acertadamente feminina. A cultura do consumo forjou, então, o
discurso feminista de libertação das mulheres pela prisão delas num círculo
vicioso e ainda mais danoso que o machismo selvagem porque as fizeram presas
numa ideologia que ora repetem os modelos de sempre ora ressignificam o que
ditavam as maneiras de ser mulher. Isto é, as novas estruturas estão muito
assemelhadas com as do auge do patriarcado.
A sociedade
de Esther é a marcada pela moda, pela execução e exposição da aparência, pela
obsessão com os corpos. Nesse ínterim, é notória a maneira como a personagem
descreve as figuras que cruzam seu caminho: sempre atenta ao detalhe de como estão
vestidas e sobretudo com o tom irônico sobre o corpo, numa obsessão quase
anoréxica de repreensão da silhueta disforme das pessoas. O contexto histórico
da narrativa de A redoma de vidro é o da capitalização da aparência
como novo ideal de saúde e de beleza das pessoas – algo que, como sabemos, só
se acentuará mais tarde.
Nessa
redoma, Esther estará sempre alheada ou interessada em fazer o contrário do
imposto por esse modelo social. Não é que seja uma revolucionária feminista,
mas porque é aquela com uma visão não-acomodada ou ingênua como as demais de
seu círculo. A personagem de Sylvia Plath é a que está sempre à procura de
outras possibilidades porque as oferecidas são as da mesmidade. Vale citar, a
decisão de, no meio de um engarrafamento no trânsito, abandonar o táxi que
levava ela e amiga para uma das festas da agenda da revista que precisavam
cumprir, a fim de prolongar com um desconhecido a conversa encetada por ele
depois de ir ao encontro delas em meio dos carros.
O alheamento
a conduzirá sempre para o isolamento e deste para a decepção porque ao estar no
outro lugar desejado é sempre o vazio, a mortal solidão e o abandono o que lhe
resta. É assim que se sente no bar, depois de perceber que a dedicação do tal
desconhecido era somente com sua amiga enquanto para ela resta o mais
insignificante dos homens. Mais tarde, tudo só piora: ao acompanhar a amiga e
o affair ao apartamento dele, restará a Esther apenas o papel de
cúmplice do envolvimento entre os dois. Desfechos como esses serão corriqueiros
e forjará, pelo acúmulo de situações, no levantamento das fronteiras de um
espírito preso num mundo próprio cuja atmosfera não é a da revolta mas a da
pesada melancolia que culminará com a visão desencantada e do sem-sentido que
domina o segundo livro.
O alheamento
é fio condutor do estranhamento: aos olhos de Ester todos os homens são
estranhos ou ridículos ou mesmo misóginos – vale atentar para o discurso sobre
os corpos ou quando Buddy, o amigo com quem melhor se envolve porque com ele
desenvolve uma estreita proximidade, coloca-se nu à sua frente ou ainda a
maneira como fareja tipos predadores como Marco; não lhe passa pela cabeça que
a mecânica do sexo, marcadamente dominada pela força do macho, seja algo capaz
de lhe servir de prazer ou libertação do corpo; da mesma maneira, não se vê,
como as amigas, seduzidas pelo ambiente do lar e pela maternidade – aqui vale
sublinhar a maneira como observa, cética e criticamente, um parto ao lado do
amigo para quem sempre pedia histórias e situações de grande relevância.
A obsessão
pela experiência é um dos fatores denunciadores da visão desencantada e
transita entre lugares diversos na narrativa de A redoma de vidro: ora na
incapacidade para a escrita, quando Esther vê-se incomodada por não saber o que
escrever e se destacar como escritora porque suas experiências são
insignificantes perante a vida, diferentemente de outras suas contemporâneas;
ora no encerramento do mundo e dedicação exclusiva para consigo ao limite do
encantamento pelo trágico e pelo suicídio.
Essa
obsessão é, como dissemos, o mote para o segundo livro. Aqui, Sylvia Plath
enterra toda a riqueza temática que se abria no início do romance. Ao menos é o
que se evidencia em grande parte dos capítulos a partir do décimo; aí, parece
que não sobra nada se não as tentativas falidas de suicidar-se. Marcadamente
repetitiva, o leitor encontra apenas um jogo de enredamento entre a personagem
e os planos silenciosos de entrega à morte. Isto é, o desnudamento de todas as
forças instintivas e culturais de autopreservação do corpo e da vida.
É por essa
razão que este texto fala sobre a existência de dois livros e, por conseguinte,
dois contextos, que dão forma à narrativa de A redoma de vidro. Também não
é só a violenta mudança de tema; é a mudança de tom da linguagem. No primeiro,
estamos ora entre olhar movido pelo encantamento como se um explorador num novo
mundo, ora entre certo tom de denúncia, marcado pela observação deslocada do eu
ante seu mundo; no segundo, é sempre o constante olhar de desapego, negação, e
progressivo desencanto ante tudo. É simbólica, a transição entre a visão da
mulher sonhadora para a mulher angustiada quando a Esther joga fora todas as
roupas que ganhou ou comprou na estadia em Nova York, antes do retorno para
casa.
Fragmentado
e sempre interessado em revelar objetivamente o desfecho das situações – tal
como acontece nos nove primeiros capítulos – a independência do chamado segundo
livro não é uma dominante. A internação de Esther num manicômio e depois sua
retirada para uma casa de repouso graças à intervenção da mesma senhora que
custeia a bolsa de permanência da personagem em Nova York, reanima o fôlego
temático dominante no primeiro livro. É quando o tema da loucura se insere como
se uma constante feminina, realinhando a narrativa com a antiga história que
reservou sempre as mulheres o perfil de alucinadas, histéricas, visionárias e
capazes de toda sorte de atitudes porque sua natureza estaria condicionada pelo
gênio do mal.
A maneira
como Sylvia Plath relata esse itinerário entre manicômios e casas de repouso
para mulheres é a prova de que esta outra dominante dos períodos da infância da
humanidade parece sobreviver, novamente, de maneira mais acentuada, no seu
tempo. É que todo aquele caráter místico que alguma vez fez das mulheres
criaturas mediadoras entre o terreno e divino – e logo seres especiais –, por
exemplo, é tornado em condição condenatória e, logo, em justificativa para a
prisão e a condenação com os tratamentos baseados na docilização forçada dos corpos.
Engenhosamente,
Plath une duas pontas de um mesmo barbante: o da negação do lugar social das
mulheres. E é essa a constante capaz de garantir a unidade entre as duas partes
virtuais de A redoma de vidro. A diversidade que assinala a visão de dois
livros num só é apenas uma maneira de registro entre o sonho e sua falibilidade
– montanha-russa da vida e situação comum a todo indivíduo interessado dotado
do interesse de se indispor contra o destino. No mais, tanto no mundo chamado
são como no mundo doente, às mulheres, constata a escritora, sempre são
reservadas o pior das condenas. A saída dessa redoma parece nunca ser
espontânea e nem em sua totalidade porque passa pela ruptura de ideologias. O
mal é que se se rompe com uma fatalmente se cai em outra.
Nota:
* Este texto foi publicado antes num projeto que iniciei paralelamente às colaborações com o Letras; o trabalho, incapaz de ser conduzido por enquanto, foi pausado indeterminadamente. Grande parte dos textos publicados em A bodega de livros circulou no Letras, outros, como este sobre A redoma de vidro, são inéditos. A pausa e possível suspensão do projeto levaram-me à ideia de copiá-los aqui. O caso do romance de Sylvia Plath é ainda singular. Meu texto foi escrito há três anos e, em março de 2019, o selo Biblioteca Azul (Globo Livros), publicou uma nova edição do livro.
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